sábado, 23 de julho de 2011

Oaristo ou aoristo?

Os espelhos e a cópula

Chego à sala de convenções ainda em estado de perplexidade. Seja o que for, e como for, prefiro sair da refrega com ferimentos leves e não ser humilhado, pois
em mim horror ao vexame é cláusula pétrea.

- Senhora Moretson... Queria dizer que não sabia do teste, muito menos sobre a natureza dos seus assuntos.

- Não anunciar o teste faz parte de uma estratégia. Os assuntos escolhidos são palavras cruzadas, uma questão preferencial e uma questão opinativa.


- Até que mando alguma coisa em palavras cruzadas, mas nunca ouvi falar de questões preferenciais e opinativas.


- Não se preocupe. Vamos às palavras cruzadas.

- Sim, mas, sei lá...


Uirapuru

- Designação genérica dos vegetais?

- Caá.

- Pássaro da Nova Zelândia?

- Moa.

- Crustáceo cinzento dos mangues?

- Aratu.

- Despesa total?

- Sumpto.

- Moeda de Zâmbia?

- Cuacha.
"Amantes", de Picasso: oaristo
- Diálogo entre amantes e modo verbal grego?

- Oaristo e aoristo.


- Pássaro que só canta enquanto constrói o ninho?


- Uirapuru.

- Muito bem.

Sou atravessado por uma confortadora sensação de bem-estar. Na veia! Na veia! Eu tinha dentro de mim, cá no íntimo, que as palavras cruzadas ainda me seriam úteis, utilíssimas, e não me enganei! Que ela me pergunte mais, pois sei inúmeros clichês, acumulados em muitos anos de decidida e consolidada solidão. Profícua solidão! Venha de lá, dona Moretson, que Lara é a ilustre casa de Castela, Galápagos, o habitat natural das tartarugas gigantes, Eris, a deusa da discórdia, ser, o verbo de Hamlet, origma, o abismo de Atenas onde se lançavam os criminosos...

Questão preferencial

-
Muito bem, mesmo. Mas o que vale realmente neste teste são as duas questões a seguir, a preferencial e a opinativa.

Continuo sem entender nada...

- Questões preferenciais e opinativas, que quer dizer com isso
, afinal?

- São aquelas respondidas com preferências e opiniões.

- Já sei, dou minha preferência e minha opinião, e a senhora decide se estou certo ou errado, é isso?

- Claro que não. Queremos ter uma noção da sua visão, abrangência e alcance.

Para mim, quem tem alcance é canhão, mas posso estar errado, o que, tratando-se de mim, não configura nenhuma novidade.

John Maynard Keynes

- Vamos à primeira questão; escreva uma frase que seja da sua preferência, não importa o assunto.

- Uma frase qualquer?

Jamais pensei numa questão desse tipo e continuo achando tudo muito esquisito.
Penso, isto é, sofro, porque pensar é um processo que dói, muito e fundamente.O Lamarck tem uma frase excelente, mas qual é mesmo a frase do Lamarck? Que se dane o Lamarck, mais uma vez. Sete anos de pastor Jacó servia a Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prêmio pretendia. Não, não, não, nada disso, pois trata-se de uma fofoca da Bíblia, não obstante Camões. Por sua inaptidão para o trabalho, meu filho Charles Darwin será uma vergonha para si mesmo e para toda a família. Também não, que isso é um curto-circuito, não uma frase. E se eu citar, de Jack Welch, que até os elefantes podem dançar? Ou, de Lorde Keynes, que a longo prazo estaremos todos mortos?Ou, de Freud, que a noção do impossível não existe para um indivíduo que faz parte de uma multidão?
Não, nenhuma dessas. A um só tempo recuo de Welch, Keynes e Freud, nada de elefantes, de mortos, de multidões enfurecidas ou de pais equivocados. Até que me ocorre escrever a frase de Borges, que repasso para Maria Moretson:

Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.

Jorge Luís Borges
Questão opinativa

- Vamos à segunda questão, sentencia a Moretson, guardando na pasta a frase que lhe entreguei. Na sua opinião...

- Modesta opinião.

... quais os três maiores pensadores de todos os tempos?

- Os maiores pensadores de todos os tempos, de que serve a minha opinião?

- Basta dizer as três pessoas que no seu entendimento pensaram mais que as outras, abrangendo toda a trajetória da humanidade.

- As pessoas que pensaram mais que todas as outras, na história da humanidade? Nunca me ocorreu pensar nessas pessoas, que isso é um voo para além do meu alcance. Quem sabia sobre isso era o Paulo Francis.

- Queremos sua opinião, não a do Paulo Francis.

Só a minha opinião interessa, mas quem podia nesse tema era mesmo o Francis. Numa varredura mental apressada e sem compromisso, e de nenhum balizamento, consulto os luminares de todos os tempos, para frente, para trás e lateralmente, vivos, mortos, no purgatório, no céu, no inferno, na História, na Geografia, no Deserto de Saara, na Tosca e na Força do Destino, ao longo da Linha Maginot, em Canudos, no Rei Lear, em Aracaju, Caxias e Tegucigalpa. Nomes abundantes acodem à minha mente, Leonardo da Vinci, Dostoiévski, Teresa de Calcutá, Johann Sebastian Bach, Slobodan Milosevic, Mahatma Ghandi, Errol Flynn, Maomé, Corneille, Sílvio Santos, Marconi, Sócrates, Ésquilo, Maurice Chevalier, Rembrandt, Torquemada, Tycho Brahe, Avicena, Zélia Cardoso de Melo, Gauss, Zé Bové, Adam Smith, Anaxágoras, Madame de Sevigné, Richelieu e Elisete Cardoso. Tanta gente, e eu, aqui, sem saber quais seriam os três. Preciso parir uma opinião, provisória ou desimportante que seja, eu que nunca tenho opinião sobre nada. Uma opinião, todo o meu reino daria por uma humilde opinião!
Subitamente sou invadido por uma sensação de ousadia e decido dizer que opiniões são opiniões, e não teoremas.

- Os que desejam o certo, Maria Moretson, vão ao dicionário ou perguntam ao Bill Gates.

- Como?

- Na minha opinião, os maiores pensadores foram Albert Einstein, Fernando Pessoa e o Zé.

- O Zé?
Maria Moretson
- Sim, o Zé.

Ela me olha com surpresa, mas dá o teste por encerrado. Vou me retirando da sala de convenções, muito confiante, sem saber exatamente por quê, e só agora reparo na beleza extraordinária de Maria Moretson. Será que está flertando comigo?

Nenhum comentário: