O CRÉDITO DE CADA UM
Júlia preside a sessão e neste momento apresenta o conferencista William Bird, ela que se empenhou para garantir-me este lugar na plateia. Essa gentileza me comete a responsabilidade de me interessar pelo assunto.
-Quem sabe vão ensinar a arte de ganhar dinheiro na Bolsa de Valores?
Sorte que esse Bird, professor de Harvard e colunista do Washington Post, já morou no Brasil e fala Português sem nenhum sotaque. Li uma vez que foi dele o primeiro artigo sobre o uso das curvas de utilidade na avaliação econômica dos projetos de risco. Uma fraude requintada, que descaracteriza a responsabilidade pelas decisões assumidas. Pois, ocorrendo o prejuízo, a falha será do projeto, pertinaz e refratário, e de suas insuficientes e traiçoeiras probabilidades. Nesse caso, consumado o desastre, bastará você dizer para os acionistas, com toda a modéstia e humildade:
- Lamento muito... Prevaleceu o risco embutido no valor monetário esperado.
Se, entretanto, o improvável ocorrer e o projeto for bem-sucedido, você será reconhecido como um gênio, assim humilde, a circular generosamente entre os mortais e sério candidato a uma recompensa estabelecida pelo conselho de administração, nas avaliações anuais de desempenho.
- Bônus de desempenho para o super-homem da utilidade destemida.
Adam Smith
William Bird começa com a pergunta que dá o tom da conferência:
- Por que não faltam técnicos nas plataformas geladas do Mar de Behring, nem embaixadas em Guiné-Bissau ou arroz em Nova York?
A resposta será dada pela aula, ou seja, nada de Bolsa de Valores. Por que contrataram um professor americano para ensinar sobre isso? Tenho para mim, muito para mim, que esse negócio de Adam Smith todo mundo sabe, o pipoqueiro, a prostituta, o corredor de meia-maratona, o agrônomo, o estalajadeiro e a prima da tia da Cláudia Cardinale. Estudei isso superficialmente no primeiro ano da faculdade, junto com estatística, logística dos transportes, perfumaria e outras generalidades.
- Por que há uma mão invisível, a do mercado, que coloca arroz e frangos em Nova York e embaixadas em Guiné-Bissau. Exatamente isso, nem mais, nem menos do que isso. Para qualquer bem ou serviço, há uma curva de quantidade demandada, a verde, que se assemelha ao ramo positivo de uma hipérbole equilátera, e uma curva de quantidade ofertada, a vermelha, de sentido contrário, a fazer-lhe o contraponto. Num mercado em funcionamento, as duas curvas se cruzam. E é bom que o façam, pois, do contrário, o mercado desaparece e... adeus bem ou serviço! O ponto de encontro das duas curvas define e o preço e a quantidade realmente negociada do bem ou serviço em questão, não importa se sal de cozinha, sanduíche de mortadela, apartamentos de cobertura ou perfume francês.
A linguagem dos economistas é cheia de louçanias, belas como uma tela de Matisse. Ramo positivo de uma hipérbole equilátera, quantidade demandada, lei dos rendimentos decrescentes, necessidades geométricas de Malthus...
- Os fatores da produção são a natureza, o trabalho e o capital, prossegue o professor. Num certo sentido, porém, esses fatores reduzem-se a dois, natureza e trabalho, com a exclusão do capital, pois este resulta do trabalho em face da natureza, da capacidade de prever o futuro e da vontade de poupar e fazer provisão.
- Os fatores de produção são sempre remunerados?
- Numa economia livre, certamente. Tudo que se recebe a título de remuneração do trabalho, do capital e da natureza forma a renda nacional. Nesse sentido, alguns cuidados são essenciais, conforme alertou sensatamente Hubert Védrine, ministro francês, em recente discurso perante a Comunidade Econômica Europeia. Ele o fez jocosamente, provocando o riso das autoridades presentes.
- Na Comunidade Europeia, jocosamente?
- Sim, muito jocosamente. Há, há, há! Védrine lembrou que é impatriótico casar com a governanta, pois um salário é imediatamente cancelado, diminuindo a renda nacional.
Todos riem. Não sei por quê, as pessoas, quando em grupo, têm mais disposição para o riso, e todos os chistes são bem-sucedidos. É aí que entra o Freud: sozinho sou uma coisa, no grupo sou outra diferente, e na multidão sou uma gota dentro de uma nuvem. Choverei também, se a decisão for a de promover uma tormenta.
- Estão rindo? Será que vocês ousariam pedir recibos às suas mulheres? Se o fizessem, poderiam abater suas mesadas dos rendimentos tributáveis, mas elas teriam de fazer declaração de renda!
- Boa idéia, professor, boa idéia! Piada de economista é sempre assim, magnificar a renda nacional, não casar com a governanta, deduzir a mulher no imposto de renda...
Terminada a aula, Bird é aplaudido entusiasticamente, como se tivesse cantado uma ária de Nabucco ou formulado uma das leis de Newton. Ele, o Bird, embolsou seis mil dólares, um “fee” nada desprezí (zá) vel, livre de impostos e despesas de qualquer natureza. Ou, como escreveu na carta em que aceitou o convite de Júlia, “free of taxes and expenses whatsoever”.
Júlia enriqueceu seu portfólio. Os assistentes, quase todos doutorandos, receberam créditos universitários e menções curriculares. E eu? Isso mesmo, e eu, que faço aqui?
- Acho que estou apaixonado pela Júlia.
(Trecho, adaptado, de "O Homem Horizontal")
sábado, 30 de julho de 2011
quarta-feira, 27 de julho de 2011
SACAÇÕES RECIPROCADAS
Há muitos Zés por aí
Eu nem me lembrava do teste, quando Ingrid me acudiu com a notícia.
- Você arrebentou!
- Minha preferência e opinião foram aprovadas?
- O departamento de pessoal, o Depes, viu muita cultura na sua frase preferida e uma formulação extraordinária na questão opinativa.
- Formulação extraordinária, como assim?
- Ninguém contrapôs Fernando Pessoa a Einstein, antes de você.
- Mas eu não contrapus...
- Contrapôs, sim, com toda a propriedade. O DI...
- DI?
- Departamento de Inteligência. O DI deu um parecer reconhecendo que você tem toda a razão, pois o Livro do Desassossego e a Teoria da Relatividade constituem as duas sacações reciprocadas mais importantes do século XX.
- Sacações reciprocadas?
- Sim, Frank. O Livro do Desassossego é o contraponto literário da Teoria da Relatividade. Veja só esta passagem do Pessoa: "tudo que é alto passa alto e passa; tudo que é de apetecer está longe e passa longe". Não tem cara de relatividade poética e de poesia relativística?
Não posso deixar prosperar esse julgamento incompetente, que me supervaloriza, pois adiante me cobrarão por isso. Muita coisa errada há nesssa avaliação, extrapolando perigosamente todos os limites razoáveis.
- Não sei se o DI está de gozação, ou se falando sério. Apenas disse despretensiosamente, e sob a pressão de parecer que tinha uma opinião, que Fernando Pessoa e Albert Einstein eram grandes pensadores, mas não me ocorreu sugerir nenhum contraponto à Teoria da Relatividade, muito menos um contraponto literário. Não tenho capacidade, nem embocadura, nem aptidão, para fazer correlações dessa magnitude. A bem da verdade, nunca ouvi falar em sacações reciprocadas.
- Ora, Frank...
- Se há sacação reciprocada entre Einstein e Pessoa, trata-se de um caso típico de serendipidade, exatamente como nas descobertas da penicilina e do viagra.
- Serendipidade, qual nada, mérito seu. Não seja assim modesto. Outra coisa: quem é Zé?
Houve por aí o Zé da Zilda, o Zé Alencar e o Zé de Alencar, o Zé de Anchieta, o Zequinha de Abreu, tanto quanto o Zé de Abreu, o Zé do Patrocínio, o Zé Maria lateral, o Zé Kéti, o Zé Bonifácio de Andrada e Silva, o Zé Boquinha, o Zequinha Sarney, o Zé Trindade, o Zé de Arimatéia, o Zé Bové, a Maria José, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José e inúmeros outros Zés, notórios e qualificados. Quem vai se interessar por um Zé que foi somente Zé? O melhor é dizer que o Zé é um modelo, um protótipo, encerrando o assunto sem maiores tergiversações.
- Ingrid, é melhor esquecer o Zé.
- Esquecer?
- Esquecer, pois o Zé é um arquétipo, não um indivíduo em particular. Quis apenas fazer uma modesta homenagem aos homens inteligentes, grandes pensadores, que atravessam a existência no mais puro anonimato e perdem-se na primeira esquina do tempo. Ou, por outra, foi uma maneira de manifestar que houve numerosos grandes pensadores e que nomear três, sobre arriscado, não deixa de ser uma temeridade e, mais que isso, uma injustiça com milhares de pessoas extraordinárias cujos nomes simplesmente desconhecemos.
- Sem dúvida.
- É impossível saber qual pessoa pensou mais, não é óbvio? Como ter certeza de que não pensou mais o homem primitivo que primeiro pôs-se de pé ou aquele que usou pela primeira vez um pedaço de osso para defender-se? Ou o que percebeu a conveniência de usar o pedaço de osso como alavanca, para remover obstáculos e levantar pesos? E o outro, na imensidão do passado, que inventou a roda, combinando-a com a alavanca para formar o veículo, ou seja, a máquina de transportar? Como descartar os homens que inventaram o papel, a máquina a vapor, o guarda-chuva, os números indo-arábicos e o zero, a luz elétrica, o automóvel, a regra de Chió, o avião, o rádio, a bola de bilhar, o crivo de Eratóstenes, a semana inglesa, o computador, a curva de Gauss, o pedal da bicicleta, a televisão, o cordão dos sapatos, o teorema de Tales e o quadro-negro?
- E então?
- Digamos que o "Zé" é o meu genérico; toda vez que me ocorrer um grande pensador da humanidade, dele direi que é um ótimo Zé, eximindo-me do remorso de tê-lo omitido no teste da Maria Moretson.
- Zé Genérico, sim, senhor, você é muito prevenido!
Eu nem me lembrava do teste, quando Ingrid me acudiu com a notícia.
- Você arrebentou!
- Minha preferência e opinião foram aprovadas?
- O departamento de pessoal, o Depes, viu muita cultura na sua frase preferida e uma formulação extraordinária na questão opinativa.
- Formulação extraordinária, como assim?
- Ninguém contrapôs Fernando Pessoa a Einstein, antes de você.
- Mas eu não contrapus...
- Contrapôs, sim, com toda a propriedade. O DI...
- DI?
- Departamento de Inteligência. O DI deu um parecer reconhecendo que você tem toda a razão, pois o Livro do Desassossego e a Teoria da Relatividade constituem as duas sacações reciprocadas mais importantes do século XX.
- Sacações reciprocadas?
- Sim, Frank. O Livro do Desassossego é o contraponto literário da Teoria da Relatividade. Veja só esta passagem do Pessoa: "tudo que é alto passa alto e passa; tudo que é de apetecer está longe e passa longe". Não tem cara de relatividade poética e de poesia relativística?
Não posso deixar prosperar esse julgamento incompetente, que me supervaloriza, pois adiante me cobrarão por isso. Muita coisa errada há nesssa avaliação, extrapolando perigosamente todos os limites razoáveis.
- Não sei se o DI está de gozação, ou se falando sério. Apenas disse despretensiosamente, e sob a pressão de parecer que tinha uma opinião, que Fernando Pessoa e Albert Einstein eram grandes pensadores, mas não me ocorreu sugerir nenhum contraponto à Teoria da Relatividade, muito menos um contraponto literário. Não tenho capacidade, nem embocadura, nem aptidão, para fazer correlações dessa magnitude. A bem da verdade, nunca ouvi falar em sacações reciprocadas.
- Ora, Frank...
- Se há sacação reciprocada entre Einstein e Pessoa, trata-se de um caso típico de serendipidade, exatamente como nas descobertas da penicilina e do viagra.
- Serendipidade, qual nada, mérito seu. Não seja assim modesto. Outra coisa: quem é Zé?
Houve por aí o Zé da Zilda, o Zé Alencar e o Zé de Alencar, o Zé de Anchieta, o Zequinha de Abreu, tanto quanto o Zé de Abreu, o Zé do Patrocínio, o Zé Maria lateral, o Zé Kéti, o Zé Bonifácio de Andrada e Silva, o Zé Boquinha, o Zequinha Sarney, o Zé Trindade, o Zé de Arimatéia, o Zé Bové, a Maria José, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José e inúmeros outros Zés, notórios e qualificados. Quem vai se interessar por um Zé que foi somente Zé? O melhor é dizer que o Zé é um modelo, um protótipo, encerrando o assunto sem maiores tergiversações.
- Ingrid, é melhor esquecer o Zé.
- Esquecer?
- Esquecer, pois o Zé é um arquétipo, não um indivíduo em particular. Quis apenas fazer uma modesta homenagem aos homens inteligentes, grandes pensadores, que atravessam a existência no mais puro anonimato e perdem-se na primeira esquina do tempo. Ou, por outra, foi uma maneira de manifestar que houve numerosos grandes pensadores e que nomear três, sobre arriscado, não deixa de ser uma temeridade e, mais que isso, uma injustiça com milhares de pessoas extraordinárias cujos nomes simplesmente desconhecemos.
- Sem dúvida.
- É impossível saber qual pessoa pensou mais, não é óbvio? Como ter certeza de que não pensou mais o homem primitivo que primeiro pôs-se de pé ou aquele que usou pela primeira vez um pedaço de osso para defender-se? Ou o que percebeu a conveniência de usar o pedaço de osso como alavanca, para remover obstáculos e levantar pesos? E o outro, na imensidão do passado, que inventou a roda, combinando-a com a alavanca para formar o veículo, ou seja, a máquina de transportar? Como descartar os homens que inventaram o papel, a máquina a vapor, o guarda-chuva, os números indo-arábicos e o zero, a luz elétrica, o automóvel, a regra de Chió, o avião, o rádio, a bola de bilhar, o crivo de Eratóstenes, a semana inglesa, o computador, a curva de Gauss, o pedal da bicicleta, a televisão, o cordão dos sapatos, o teorema de Tales e o quadro-negro?
- E então?
- Digamos que o "Zé" é o meu genérico; toda vez que me ocorrer um grande pensador da humanidade, dele direi que é um ótimo Zé, eximindo-me do remorso de tê-lo omitido no teste da Maria Moretson.
.- Se Platão vier com alguma reclamação...
- Reclamação justa e pertinente. Eu lhe diria: não o esqueci de forma alguma, senhor Platão, pois você é o Zé, cuspido e escarrado.
sábado, 23 de julho de 2011
Oaristo ou aoristo?
Os espelhos e a cópula
Chego à sala de convenções ainda em estado de perplexidade. Seja o que for, e como for, prefiro sair da refrega com ferimentos leves e não ser humilhado, pois em mim horror ao vexame é cláusula pétrea.
- Senhora Moretson... Queria dizer que não sabia do teste, muito menos sobre a natureza dos seus assuntos.
- Não anunciar o teste faz parte de uma estratégia. Os assuntos escolhidos são palavras cruzadas, uma questão preferencial e uma questão opinativa.
- Até que mando alguma coisa em palavras cruzadas, mas nunca ouvi falar de questões preferenciais e opinativas.
- Não se preocupe. Vamos às palavras cruzadas.
- Sim, mas, sei lá...
- Aratu.
- Moeda de Zâmbia?
- Cuacha.
- Oaristo e aoristo.
- Pássaro que só canta enquanto constrói o ninho?
- Muito bem.
Sou atravessado por uma confortadora sensação de bem-estar. Na veia! Na veia! Eu tinha dentro de mim, cá no íntimo, que as palavras cruzadas ainda me seriam úteis, utilíssimas, e não me enganei! Que ela me pergunte mais, pois sei inúmeros clichês, acumulados em muitos anos de decidida e consolidada solidão. Profícua solidão! Venha de lá, dona Moretson, que Lara é a ilustre casa de Castela, Galápagos, o habitat natural das tartarugas gigantes, Eris, a deusa da discórdia, ser, o verbo de Hamlet, origma, o abismo de Atenas onde se lançavam os criminosos...
Questão preferencial
- Muito bem, mesmo. Mas o que vale realmente neste teste são as duas questões a seguir, a preferencial e a opinativa.
Continuo sem entender nada...
- Questões preferenciais e opinativas, que quer dizer com isso, afinal?
- São aquelas respondidas com preferências e opiniões.
- Já sei, dou minha preferência e minha opinião, e a senhora decide se estou certo ou errado, é isso?
- Claro que não. Queremos ter uma noção da sua visão, abrangência e alcance.
Para mim, quem tem alcance é canhão, mas posso estar errado, o que, tratando-se de mim, não configura nenhuma novidade.
- Uma frase qualquer?
Jamais pensei numa questão desse tipo e continuo achando tudo muito esquisito. Penso, isto é, sofro, porque pensar é um processo que dói, muito e fundamente.O Lamarck tem uma frase excelente, mas qual é mesmo a frase do Lamarck? Que se dane o Lamarck, mais uma vez. Sete anos de pastor Jacó servia a Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prêmio pretendia. Não, não, não, nada disso, pois trata-se de uma fofoca da Bíblia, não obstante Camões. Por sua inaptidão para o trabalho, meu filho Charles Darwin será uma vergonha para si mesmo e para toda a família. Também não, que isso é um curto-circuito, não uma frase. E se eu citar, de Jack Welch, que até os elefantes podem dançar? Ou, de Lorde Keynes, que a longo prazo estaremos todos mortos?Ou, de Freud, que a noção do impossível não existe para um indivíduo que faz parte de uma multidão?
Não, nenhuma dessas. A um só tempo recuo de Welch, Keynes e Freud, nada de elefantes, de mortos, de multidões enfurecidas ou de pais equivocados. Até que me ocorre escrever a frase de Borges, que repasso para Maria Moretson:
Jorge Luís Borges
Chego à sala de convenções ainda em estado de perplexidade. Seja o que for, e como for, prefiro sair da refrega com ferimentos leves e não ser humilhado, pois em mim horror ao vexame é cláusula pétrea.
- Senhora Moretson... Queria dizer que não sabia do teste, muito menos sobre a natureza dos seus assuntos.
- Não anunciar o teste faz parte de uma estratégia. Os assuntos escolhidos são palavras cruzadas, uma questão preferencial e uma questão opinativa.
- Até que mando alguma coisa em palavras cruzadas, mas nunca ouvi falar de questões preferenciais e opinativas.
- Não se preocupe. Vamos às palavras cruzadas.
- Sim, mas, sei lá...
- Pássaro da Nova Zelândia?
- Moa.
- Crustáceo cinzento dos mangues?
- Moa.
- Crustáceo cinzento dos mangues?
- Aratu.
- Despesa total?
- Sumpto.
- Sumpto.
- Moeda de Zâmbia?
- Cuacha.
"Amantes", de Picasso: oaristo
- Diálogo entre amantes e modo verbal grego?- Oaristo e aoristo.
- Pássaro que só canta enquanto constrói o ninho?
- Uirapuru.
- Muito bem.
Sou atravessado por uma confortadora sensação de bem-estar. Na veia! Na veia! Eu tinha dentro de mim, cá no íntimo, que as palavras cruzadas ainda me seriam úteis, utilíssimas, e não me enganei! Que ela me pergunte mais, pois sei inúmeros clichês, acumulados em muitos anos de decidida e consolidada solidão. Profícua solidão! Venha de lá, dona Moretson, que Lara é a ilustre casa de Castela, Galápagos, o habitat natural das tartarugas gigantes, Eris, a deusa da discórdia, ser, o verbo de Hamlet, origma, o abismo de Atenas onde se lançavam os criminosos...
Questão preferencial
- Muito bem, mesmo. Mas o que vale realmente neste teste são as duas questões a seguir, a preferencial e a opinativa.
Continuo sem entender nada...
- Questões preferenciais e opinativas, que quer dizer com isso, afinal?
- São aquelas respondidas com preferências e opiniões.
- Já sei, dou minha preferência e minha opinião, e a senhora decide se estou certo ou errado, é isso?
- Claro que não. Queremos ter uma noção da sua visão, abrangência e alcance.
Para mim, quem tem alcance é canhão, mas posso estar errado, o que, tratando-se de mim, não configura nenhuma novidade.
John Maynard Keynes
- Vamos à primeira questão; escreva uma frase que seja da sua preferência, não importa o assunto.- Uma frase qualquer?
Jamais pensei numa questão desse tipo e continuo achando tudo muito esquisito. Penso, isto é, sofro, porque pensar é um processo que dói, muito e fundamente.O Lamarck tem uma frase excelente, mas qual é mesmo a frase do Lamarck? Que se dane o Lamarck, mais uma vez. Sete anos de pastor Jacó servia a Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prêmio pretendia. Não, não, não, nada disso, pois trata-se de uma fofoca da Bíblia, não obstante Camões. Por sua inaptidão para o trabalho, meu filho Charles Darwin será uma vergonha para si mesmo e para toda a família. Também não, que isso é um curto-circuito, não uma frase. E se eu citar, de Jack Welch, que até os elefantes podem dançar? Ou, de Lorde Keynes, que a longo prazo estaremos todos mortos?Ou, de Freud, que a noção do impossível não existe para um indivíduo que faz parte de uma multidão?
Não, nenhuma dessas. A um só tempo recuo de Welch, Keynes e Freud, nada de elefantes, de mortos, de multidões enfurecidas ou de pais equivocados. Até que me ocorre escrever a frase de Borges, que repasso para Maria Moretson:
Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.
Jorge Luís Borges
Questão opinativa
- Vamos à segunda questão, sentencia a Moretson, guardando na pasta a frase que lhe entreguei. Na sua opinião...
- Modesta opinião.
... quais os três maiores pensadores de todos os tempos?
- Os maiores pensadores de todos os tempos, de que serve a minha opinião?
- Basta dizer as três pessoas que no seu entendimento pensaram mais que as outras, abrangendo toda a trajetória da humanidade.
- As pessoas que pensaram mais que todas as outras, na história da humanidade? Nunca me ocorreu pensar nessas pessoas, que isso é um voo para além do meu alcance. Quem sabia sobre isso era o Paulo Francis.
- Queremos sua opinião, não a do Paulo Francis.
Só a minha opinião interessa, mas quem podia nesse tema era mesmo o Francis. Numa varredura mental apressada e sem compromisso, e de nenhum balizamento, consulto os luminares de todos os tempos, para frente, para trás e lateralmente, vivos, mortos, no purgatório, no céu, no inferno, na História, na Geografia, no Deserto de Saara, na Tosca e na Força do Destino, ao longo da Linha Maginot, em Canudos, no Rei Lear, em Aracaju, Caxias e Tegucigalpa. Nomes abundantes acodem à minha mente, Leonardo da Vinci, Dostoiévski, Teresa de Calcutá, Johann Sebastian Bach, Slobodan Milosevic, Mahatma Ghandi, Errol Flynn, Maomé, Corneille, Sílvio Santos, Marconi, Sócrates, Ésquilo, Maurice Chevalier, Rembrandt, Torquemada, Tycho Brahe, Avicena, Zélia Cardoso de Melo, Gauss, Zé Bové, Adam Smith, Anaxágoras, Madame de Sevigné, Richelieu e Elisete Cardoso. Tanta gente, e eu, aqui, sem saber quais seriam os três. Preciso parir uma opinião, provisória ou desimportante que seja, eu que nunca tenho opinião sobre nada. Uma opinião, todo o meu reino daria por uma humilde opinião!
Subitamente sou invadido por uma sensação de ousadia e decido dizer que opiniões são opiniões, e não teoremas.
- Os que desejam o certo, Maria Moretson, vão ao dicionário ou perguntam ao Bill Gates.
- Como?
- Na minha opinião, os maiores pensadores foram Albert Einstein, Fernando Pessoa e o Zé.
- O Zé?
Ela me olha com surpresa, mas dá o teste por encerrado. Vou me retirando da sala de convenções, muito confiante, sem saber exatamente por quê, e só agora reparo na beleza extraordinária de Maria Moretson. Será que está flertando comigo?
- Vamos à segunda questão, sentencia a Moretson, guardando na pasta a frase que lhe entreguei. Na sua opinião...
- Modesta opinião.
... quais os três maiores pensadores de todos os tempos?
- Os maiores pensadores de todos os tempos, de que serve a minha opinião?
- Basta dizer as três pessoas que no seu entendimento pensaram mais que as outras, abrangendo toda a trajetória da humanidade.
- As pessoas que pensaram mais que todas as outras, na história da humanidade? Nunca me ocorreu pensar nessas pessoas, que isso é um voo para além do meu alcance. Quem sabia sobre isso era o Paulo Francis.
- Queremos sua opinião, não a do Paulo Francis.
Só a minha opinião interessa, mas quem podia nesse tema era mesmo o Francis. Numa varredura mental apressada e sem compromisso, e de nenhum balizamento, consulto os luminares de todos os tempos, para frente, para trás e lateralmente, vivos, mortos, no purgatório, no céu, no inferno, na História, na Geografia, no Deserto de Saara, na Tosca e na Força do Destino, ao longo da Linha Maginot, em Canudos, no Rei Lear, em Aracaju, Caxias e Tegucigalpa. Nomes abundantes acodem à minha mente, Leonardo da Vinci, Dostoiévski, Teresa de Calcutá, Johann Sebastian Bach, Slobodan Milosevic, Mahatma Ghandi, Errol Flynn, Maomé, Corneille, Sílvio Santos, Marconi, Sócrates, Ésquilo, Maurice Chevalier, Rembrandt, Torquemada, Tycho Brahe, Avicena, Zélia Cardoso de Melo, Gauss, Zé Bové, Adam Smith, Anaxágoras, Madame de Sevigné, Richelieu e Elisete Cardoso. Tanta gente, e eu, aqui, sem saber quais seriam os três. Preciso parir uma opinião, provisória ou desimportante que seja, eu que nunca tenho opinião sobre nada. Uma opinião, todo o meu reino daria por uma humilde opinião!
Subitamente sou invadido por uma sensação de ousadia e decido dizer que opiniões são opiniões, e não teoremas.
- Os que desejam o certo, Maria Moretson, vão ao dicionário ou perguntam ao Bill Gates.
- Como?
- Na minha opinião, os maiores pensadores foram Albert Einstein, Fernando Pessoa e o Zé.
- O Zé?
Maria Moretson
- Sim, o Zé.Ela me olha com surpresa, mas dá o teste por encerrado. Vou me retirando da sala de convenções, muito confiante, sem saber exatamente por quê, e só agora reparo na beleza extraordinária de Maria Moretson. Será que está flertando comigo?
quarta-feira, 20 de julho de 2011
ESTREPEI-ME!
Entrou areia
Estou no empreendimento, a desfrutar de todas as mordomias, por obra e favor da minha namorada, Ingrid Saint-Louis de Grevi. Em dois meses, ninguém exigiu nada de mim, tendo bastado minha presença, com, apenas, total disponibilidade para o amor. Daí a surpresa, e desorientação, quando Ingrid me informou que eu teria de comparecer à sala de convenções, imediatamente, para uma entrevista com Maria Moretson.
- Acho que você será submetido a um teste, agora, por determinação do conselho de diretores.
- Teste, como teste? Conselho de diretores? Agora? Sobre o quê?
- Não sei, mas você vai se sair bem, tenho certeza. É só caprichar...
- Caprichar, como, se nem sei de que se trata? Eu lhe disse, Ingrid, não sei se você se lembra, que fui reprovado no vestibular. Além de não ser nenhuma sumidade, sempre me dei muito mal nas provas.
- Não seja tão modesto...
Dirijo-me à sala de convenções arrastando-me lentamente. Tudo ia tão bem. Entrou areia... A porta do barraco era sem trinco; você partiu de madrugada, não me disse nada, isso não se faz; eu sei que vou te amar, por toda a minha vida, vou te amar; boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço a minha nova inscrição; eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar; se você não me queria, não devia me procurar; perdão foi feito para a gente pedir; caminhemos, talvez nos vejamos depois; eu não mereço a comida que você pagou para mim; interesseira, não amas ninguém; tinha cá para mim que, agora sim, eu vivia, enfim, um grande amor, mentira!
Teoria da Evolução
O que faz uma pessoa numa prova? Exibe-se, e quem se exibe melhor tira nota maior. Exibir-me ou soçobrar, eis a questão... Discuta a teoria da evolução, esse o tema da prova, e o Sidrônio, que desconhecia completamente o assunto, teceu vastas considerações sobre a palavra "evolução" e suas conotações. Citou Malthus, Jéan Renoir e Fernão de Magalhães, incluiu no arrazoado inconsequente as façanhas carolíngias de Pepino o Breve, explicou como Demóstenes superou suas deficiências de orador, evoluindo de maneira importante, analisou a diferença entre academia e ateneu, outra evolução, e dissertou longamente sobre a esfera de Schwarzschild e as geometrias não-euclidianas, pois em tudo está presente a evolução, tanto que até as Escolas de Samba evoluem! Charles Darwin, um evolucionário de primeira linha, que seria dele e da Origem das Espécies, se não tivesse evoluído, e muito, nas longas e tediosas horas a bordo do Beagle?
Páginas e páginas de boas incongruências seguiu produzindo o Sidrônio, sandices e inutilidades, e tantas eram que o adequado seria atribuir-lhe um zero acachapante e definitivo. Qual foi a sua nota, com efeito? Oito e meio, conceito A, pois o Sidrônio sempre foi um exibido competente. Ele sabia, como ninguém, que o importante é ir ao infinito, gozando cada palavra, subjugando-a, para suprir a ausência de conhecimento e impor o continente sem nenhum conteúdo.
Vieira
Quem me dera ser o Sidrônio, uma vez que fosse...
Perguntam-me sobre os Sermões, de Antônio Vieira, que hei de fazer? Deixar correr a pena com desembaraço e falar sobre paz, amizade, amor, fraternidade, lealdade, generosidade, caridade, esperança e fé, muita fé, essas coisas que cultivamos nos discursos, apenas neles, e que nos emocionam até as últimas lágrimas. E, na sequência, afirmar categoricamente que ninguém pode duvidar de que Vieira, talvez o maior escritor português do século XVII, tenha sempre se pautado pelos melhores valores, na luta insana pela plenitude e eternidade do homem. Quem persistir na dúvida que leia os Sermões, pois, sobre razões sólidas e decisivas, desfrutará do estilo colorido, inconsútil, coerente e vigoroso, a inconfundível marca do mestre Vieira...
Eu conseguiria talvez um sete, quem sabe um sete, vírgula quatro?
Inconsútil? Não, não, retiro esse "inconsútil" pretensioso e sem sentido, pois todo mundo irá perceber que nunca li nada de Vieira.
Estrepei-me
Mas a coisa não é rotunda, assim. Infelizmente vão exigir de mim respostas desimportantes sobre coisas objetivas, ou melhor, respostas objetivas sobre coisas desimportantes, como o papa que em boa hora instituiu a missa do galo, a origem dos vertebrados, os anos de Margareth Tatcher no poder, em que cidade existiu um streetcar chamado Desejo, a cor da ametista, a importância dos capacitores nas instalações industriais, a deusa à qual foi dedicado o Paternon, a capital da Carolina do Norte, além de questões sobre equações trigonométricas, estátuas de Dorífero, econometria, línguas faladas em Vaduz, que é capital do Liechtenstein, teorema das forças vivas e os conjuntos transfinitos do matemático alemão George Cantor, o qual, pelo que sei e depreendo, não cantava em conjunto nenhum.
Você sabe o que é quiáltera?
Como se chama o estreito que liga o Mar Egeu ao Mar de Mármara?
Ah, Mogadíscio é capital de qual país africano?
Não sei nada disso, ou, para dizer numa palavra tudo: estrepei-me.
- Estrepei-me!
Estou no empreendimento, a desfrutar de todas as mordomias, por obra e favor da minha namorada, Ingrid Saint-Louis de Grevi. Em dois meses, ninguém exigiu nada de mim, tendo bastado minha presença, com, apenas, total disponibilidade para o amor. Daí a surpresa, e desorientação, quando Ingrid me informou que eu teria de comparecer à sala de convenções, imediatamente, para uma entrevista com Maria Moretson.
- Acho que você será submetido a um teste, agora, por determinação do conselho de diretores.
- Teste, como teste? Conselho de diretores? Agora? Sobre o quê?
- Não sei, mas você vai se sair bem, tenho certeza. É só caprichar...
- Caprichar, como, se nem sei de que se trata? Eu lhe disse, Ingrid, não sei se você se lembra, que fui reprovado no vestibular. Além de não ser nenhuma sumidade, sempre me dei muito mal nas provas.
- Não seja tão modesto...
Dirijo-me à sala de convenções arrastando-me lentamente. Tudo ia tão bem. Entrou areia... A porta do barraco era sem trinco; você partiu de madrugada, não me disse nada, isso não se faz; eu sei que vou te amar, por toda a minha vida, vou te amar; boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço a minha nova inscrição; eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar; se você não me queria, não devia me procurar; perdão foi feito para a gente pedir; caminhemos, talvez nos vejamos depois; eu não mereço a comida que você pagou para mim; interesseira, não amas ninguém; tinha cá para mim que, agora sim, eu vivia, enfim, um grande amor, mentira!
Teoria da Evolução
O que faz uma pessoa numa prova? Exibe-se, e quem se exibe melhor tira nota maior. Exibir-me ou soçobrar, eis a questão... Discuta a teoria da evolução, esse o tema da prova, e o Sidrônio, que desconhecia completamente o assunto, teceu vastas considerações sobre a palavra "evolução" e suas conotações. Citou Malthus, Jéan Renoir e Fernão de Magalhães, incluiu no arrazoado inconsequente as façanhas carolíngias de Pepino o Breve, explicou como Demóstenes superou suas deficiências de orador, evoluindo de maneira importante, analisou a diferença entre academia e ateneu, outra evolução, e dissertou longamente sobre a esfera de Schwarzschild e as geometrias não-euclidianas, pois em tudo está presente a evolução, tanto que até as Escolas de Samba evoluem! Charles Darwin, um evolucionário de primeira linha, que seria dele e da Origem das Espécies, se não tivesse evoluído, e muito, nas longas e tediosas horas a bordo do Beagle?
Páginas e páginas de boas incongruências seguiu produzindo o Sidrônio, sandices e inutilidades, e tantas eram que o adequado seria atribuir-lhe um zero acachapante e definitivo. Qual foi a sua nota, com efeito? Oito e meio, conceito A, pois o Sidrônio sempre foi um exibido competente. Ele sabia, como ninguém, que o importante é ir ao infinito, gozando cada palavra, subjugando-a, para suprir a ausência de conhecimento e impor o continente sem nenhum conteúdo.
Vieira
Quem me dera ser o Sidrônio, uma vez que fosse...
Perguntam-me sobre os Sermões, de Antônio Vieira, que hei de fazer? Deixar correr a pena com desembaraço e falar sobre paz, amizade, amor, fraternidade, lealdade, generosidade, caridade, esperança e fé, muita fé, essas coisas que cultivamos nos discursos, apenas neles, e que nos emocionam até as últimas lágrimas. E, na sequência, afirmar categoricamente que ninguém pode duvidar de que Vieira, talvez o maior escritor português do século XVII, tenha sempre se pautado pelos melhores valores, na luta insana pela plenitude e eternidade do homem. Quem persistir na dúvida que leia os Sermões, pois, sobre razões sólidas e decisivas, desfrutará do estilo colorido, inconsútil, coerente e vigoroso, a inconfundível marca do mestre Vieira...
Eu conseguiria talvez um sete, quem sabe um sete, vírgula quatro?
Inconsútil? Não, não, retiro esse "inconsútil" pretensioso e sem sentido, pois todo mundo irá perceber que nunca li nada de Vieira.
Estrepei-me
Mas a coisa não é rotunda, assim. Infelizmente vão exigir de mim respostas desimportantes sobre coisas objetivas, ou melhor, respostas objetivas sobre coisas desimportantes, como o papa que em boa hora instituiu a missa do galo, a origem dos vertebrados, os anos de Margareth Tatcher no poder, em que cidade existiu um streetcar chamado Desejo, a cor da ametista, a importância dos capacitores nas instalações industriais, a deusa à qual foi dedicado o Paternon, a capital da Carolina do Norte, além de questões sobre equações trigonométricas, estátuas de Dorífero, econometria, línguas faladas em Vaduz, que é capital do Liechtenstein, teorema das forças vivas e os conjuntos transfinitos do matemático alemão George Cantor, o qual, pelo que sei e depreendo, não cantava em conjunto nenhum.
Você sabe o que é quiáltera?
Como se chama o estreito que liga o Mar Egeu ao Mar de Mármara?
Ah, Mogadíscio é capital de qual país africano?
Não sei nada disso, ou, para dizer numa palavra tudo: estrepei-me.
- Estrepei-me!
sábado, 16 de julho de 2011
MEU PROFESSOR DE INGLÊS
VACA-RAPAZ
Não me lembro de nenhum professor especialmente preparado, nem de colegas muito inteligentes. Éramos, de fato, uma assembleia de mediocridades, considerados ambos os lados da mesa. Eu, pobre de mim, sempre gostei de problemas de aritmética, palavras cruzadas e quebra-cabeças e tinha um desempenho saliente em Inglês, o que não chegava a ser nenhuma façanha, nem podia ser avaliado, pois o professor era daqueles que traduziam “cowboy” por “vaca-rapaz” e “what does he do?” por “que faz ele fazer?”
- Doutor Vacaria, não seria melhor traduzir “cowboy” por “vaqueiro” e “what does he do?” por “o que ele faz?”
Como o professor nada respondeu, entendi que havia sido grosseiro e inconveniente. Mais uma vez, sim, mais uma vez. Para minha surpresa, porém, ele voltou ao assunto na aula do dia seguinte, embora de forma indireta e metafórica. Elogiou o padre Eleutério, que sempre se penitenciava dos seus erros, a inteligência de Santo Agostinho, que na fé conheceu a razão e a felicidade, e a humildade de Francisco de Assis, que se dedicou a um ideal de pobreza e por isso recebeu os estigmas das chagas de Cristo.
- À estupidez sempre há de contrapor-se o discernimento, e só os idiotas não mudam. Prevaleçam, pois, a razão e a verdade, mas também a inteligência, para reconhecer os equívocos, e a humildade, para proclamá-los sem nenhum constrangimento. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
A custo consegui entender que Yrves Vacaria de Bastos Viamão estava aceitando a minha sugestão. Desde então “vaca-rapaz” e “o que faz ele fazer?” perderam a vez para “vaqueiro” e “o que ele faz?”, nas aulas de Inglês de Barro Verde. E, mais, fui dispensado dos exames finais e aprovado com nota oito, vírgula três. Assim foi. Acho, porém, um exagero a afirmativa de que sou o responsável pelo epíteto de "professor Vaca-Rapaz" que foi atribuído a Yrves Vacaria.
O resto é silêncio
Disseram-me anos depois que minha intervenção, um show-offismo banal que ajudou a corrigir os rumos anglo-saxônicos dos meus estudos ginasiais, despertou a ternura da Bianca Averróis, conforme na ocasião andou confessando às suas amigas mais íntimas. Ela, que era a moça mais bonita da minha adolescência, viria a ser a musa de todas as colunas sociais, depois que se casou com o milionário Richard Lloyd.
- Apaixonada por mim! E eu sem saber de nada, na inocência dos meus 15 anos...
Sempre foi assim, pois um dos meus defeitos fundamentais tem sido a de desconhecer todas as oportunidades. Elas existem, e eu, o desatento, navegando nas águas profundas da minha ingenuidade. Dizer o quê? Nada.
- The rest is silence.
Não me lembro de nenhum professor especialmente preparado, nem de colegas muito inteligentes. Éramos, de fato, uma assembleia de mediocridades, considerados ambos os lados da mesa. Eu, pobre de mim, sempre gostei de problemas de aritmética, palavras cruzadas e quebra-cabeças e tinha um desempenho saliente em Inglês, o que não chegava a ser nenhuma façanha, nem podia ser avaliado, pois o professor era daqueles que traduziam “cowboy” por “vaca-rapaz” e “what does he do?” por “que faz ele fazer?”
- Doutor Vacaria, não seria melhor traduzir “cowboy” por “vaqueiro” e “what does he do?” por “o que ele faz?”
Como o professor nada respondeu, entendi que havia sido grosseiro e inconveniente. Mais uma vez, sim, mais uma vez. Para minha surpresa, porém, ele voltou ao assunto na aula do dia seguinte, embora de forma indireta e metafórica. Elogiou o padre Eleutério, que sempre se penitenciava dos seus erros, a inteligência de Santo Agostinho, que na fé conheceu a razão e a felicidade, e a humildade de Francisco de Assis, que se dedicou a um ideal de pobreza e por isso recebeu os estigmas das chagas de Cristo.
- À estupidez sempre há de contrapor-se o discernimento, e só os idiotas não mudam. Prevaleçam, pois, a razão e a verdade, mas também a inteligência, para reconhecer os equívocos, e a humildade, para proclamá-los sem nenhum constrangimento. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
A custo consegui entender que Yrves Vacaria de Bastos Viamão estava aceitando a minha sugestão. Desde então “vaca-rapaz” e “o que faz ele fazer?” perderam a vez para “vaqueiro” e “o que ele faz?”, nas aulas de Inglês de Barro Verde. E, mais, fui dispensado dos exames finais e aprovado com nota oito, vírgula três. Assim foi. Acho, porém, um exagero a afirmativa de que sou o responsável pelo epíteto de "professor Vaca-Rapaz" que foi atribuído a Yrves Vacaria.
O resto é silêncio
Disseram-me anos depois que minha intervenção, um show-offismo banal que ajudou a corrigir os rumos anglo-saxônicos dos meus estudos ginasiais, despertou a ternura da Bianca Averróis, conforme na ocasião andou confessando às suas amigas mais íntimas. Ela, que era a moça mais bonita da minha adolescência, viria a ser a musa de todas as colunas sociais, depois que se casou com o milionário Richard Lloyd.
- Apaixonada por mim! E eu sem saber de nada, na inocência dos meus 15 anos...
Sempre foi assim, pois um dos meus defeitos fundamentais tem sido a de desconhecer todas as oportunidades. Elas existem, e eu, o desatento, navegando nas águas profundas da minha ingenuidade. Dizer o quê? Nada.
- The rest is silence.
quarta-feira, 13 de julho de 2011
CONFISSÕES DE UM VISIONÁRIO
Sucessos de agosto
A terceira e última guerra mundial ocorrerá num 17 de agosto. Guerra instantânea, total, datilográfica, como explicava o doutor Crisóstomo, nas suas elucubrações intermináveis. Um datilógrafo apertará a tecla "Londres", simplesmente isso, e Londres derreterá. E, assim, sem deferências nem contemplações, Rio de Janeiro, Paris, Moscou, Roma, Berlim, Espera Feliz, Tegucigalpa e Nova York.
- Perderá a guerra menos rapidamente quem se apresentar com melhores datilógrafos e máquinas de belo consolo e retrocesso decidido.
16 de agosto.
Amanhã teremos um encontro inevitável com o desenlace. Somos quase sete bilhões de morituros, ávidos de viver, nessas (nossas) 24 horas. É preciso viver, viver muito, enquanto não chega o canhoneio alucinado. Cada segundo terá de durar uma boa eternidade. Entremos, pois, no melhor restaurante, assistamos ao melhor teatro e descansemos no melhor apartamento. Deitemos fora os termômetros, as pastas de engraxar que lustram sem ressecar, os pregadores de gravatas, os oito primeiros números da série de Fibonacci, os abridores de latas e os carnês de prestações a juros favorecidos.
- Hoje eu não vou fazer a barba.
- Tum-tum, escatungararibê, escatungatinga. Soê, sooê, ererebá, escatungararibê, escatungatinga!
- Quer dançar comigo?
Aqueles que tiverem bom gosto subirão comigo ao Pão de Açúcar, e juntos lançaremos aviões de papel sobre a Baía da Guanabara. Depois, nós nos consumiremos de amor. Por favor, não nos fale de Bush, nem de Bin Laden, que estes estarão fugindo de si mesmos e de suas biografias, as quais serão todas não autorizadas, agora e sempre.
- Não desembuche o debuxo do bruxo.
Nesse (nosso) dia todo discurso será absolutamente desnecessário. O poliglota, dançando conosco a infatigável valsa da despedida, gritará para as pessoas:
- Folks!
Todos entenderemos "Volks!". Mas ninguém quer saber de Volks porque há Mercedes sobrando. Mercedes e Marias sobrando.
- Ora, Volks!
Alguns, os corruptos (sempre os há), permanecerão graves, mas quase todos estarão se despedindo alegremente. Mães de uns e filhos de outras se abraçarão emocionados, os olhos absolutamente auspiciosos. Pois hoje, 16 de agosto, é o nosso domingo, dia dos pobres iguais aos ricos e dos ricos iguais a todos. Nem importa que a humanidade tenha uma sobrevida de apenas 24 horas - um instantezinho de felicidade é bastante para realizar a criação, humana e desumana, de uma só vez e completamente.
Primeiras informações adicionais
No dia 16 não haverá chaves, dinheiro valendo e família, porque chaves dinheiro valendo e família são entidades úteis nas coletividades que não esperam morrer amanhã, e apenas nestas. De minha parte, jogarei fora a doçura sem açúcar que não engorda e rasgarei, enfim, o soneto que tive vergonha de mostrar.
A felicidade foi ontem. Teremos hoje alucinações maiores que as do recoveiro de Púchkin, varridos da Terra pela nossa própria tecnologia. Que não penses que esta odisseia no chão (re-odisseia) é algum elevado ou shopping center caindo sobre tua cabeça. Pois é fim do mundo mesmo. Na hora da morte, homens e animais, apartamentos de cobertura da Delfim Moreira e falsos profetas vestidos de azul, tudo, absolutamente tudo, desmoronará num único baque.
Os nossos gritos serão abafados pelo troar infernal das bombas deles, e todos viveremos a enorme aventura, inerme, de morrer igualitariamente. É a expiação...
- Expiação?
- É a expiação, pelas nossas guerras convencionais, químicas, de quadrilhas, púnicas, de nervos, mundiais, santas, sem quartel, bacteriológicas, injustas, de preços, atômicas, frias, econômicas, de cem anos, localizadas, sujas, totais e de torcidas.
Outras informações adicionais
Na verdade, salvam-se um homem e uma mulher, que isso aqui é bom demais para ficar desabitado. O homem será escolhido por sorteio, essa a tua chance, caro amigo, mas da mulher serão exigidas qualidades várias, como a beleza da Jeanne Moreau, a coragem de Eneida de Morais e a inteligência da Dione. Engana-se quem pensou em Cláudia Cardinale, cuja não poderá ser salva, lamentavelmente.
- E a Vera Fischer?
- Também não...
A escolhida, uma latina, formará com outro latino um casal sem nenhuma propensão marginal, nem para consumir nem para guerrear. Uma história a ser contada, um dia, quem sabe...
Consolo
Não teremos missa de sétimo dia, mas nossos prótons são eternos.
A terceira e última guerra mundial ocorrerá num 17 de agosto. Guerra instantânea, total, datilográfica, como explicava o doutor Crisóstomo, nas suas elucubrações intermináveis. Um datilógrafo apertará a tecla "Londres", simplesmente isso, e Londres derreterá. E, assim, sem deferências nem contemplações, Rio de Janeiro, Paris, Moscou, Roma, Berlim, Espera Feliz, Tegucigalpa e Nova York.
- Perderá a guerra menos rapidamente quem se apresentar com melhores datilógrafos e máquinas de belo consolo e retrocesso decidido.
16 de agosto.
Amanhã teremos um encontro inevitável com o desenlace. Somos quase sete bilhões de morituros, ávidos de viver, nessas (nossas) 24 horas. É preciso viver, viver muito, enquanto não chega o canhoneio alucinado. Cada segundo terá de durar uma boa eternidade. Entremos, pois, no melhor restaurante, assistamos ao melhor teatro e descansemos no melhor apartamento. Deitemos fora os termômetros, as pastas de engraxar que lustram sem ressecar, os pregadores de gravatas, os oito primeiros números da série de Fibonacci, os abridores de latas e os carnês de prestações a juros favorecidos.
- Hoje eu não vou fazer a barba.
- Tum-tum, escatungararibê, escatungatinga. Soê, sooê, ererebá, escatungararibê, escatungatinga!
- Quer dançar comigo?
Aqueles que tiverem bom gosto subirão comigo ao Pão de Açúcar, e juntos lançaremos aviões de papel sobre a Baía da Guanabara. Depois, nós nos consumiremos de amor. Por favor, não nos fale de Bush, nem de Bin Laden, que estes estarão fugindo de si mesmos e de suas biografias, as quais serão todas não autorizadas, agora e sempre.
- Não desembuche o debuxo do bruxo.
Nesse (nosso) dia todo discurso será absolutamente desnecessário. O poliglota, dançando conosco a infatigável valsa da despedida, gritará para as pessoas:
- Folks!
Todos entenderemos "Volks!". Mas ninguém quer saber de Volks porque há Mercedes sobrando. Mercedes e Marias sobrando.
- Ora, Volks!
Alguns, os corruptos (sempre os há), permanecerão graves, mas quase todos estarão se despedindo alegremente. Mães de uns e filhos de outras se abraçarão emocionados, os olhos absolutamente auspiciosos. Pois hoje, 16 de agosto, é o nosso domingo, dia dos pobres iguais aos ricos e dos ricos iguais a todos. Nem importa que a humanidade tenha uma sobrevida de apenas 24 horas - um instantezinho de felicidade é bastante para realizar a criação, humana e desumana, de uma só vez e completamente.
Primeiras informações adicionais
No dia 16 não haverá chaves, dinheiro valendo e família, porque chaves dinheiro valendo e família são entidades úteis nas coletividades que não esperam morrer amanhã, e apenas nestas. De minha parte, jogarei fora a doçura sem açúcar que não engorda e rasgarei, enfim, o soneto que tive vergonha de mostrar.
A felicidade foi ontem. Teremos hoje alucinações maiores que as do recoveiro de Púchkin, varridos da Terra pela nossa própria tecnologia. Que não penses que esta odisseia no chão (re-odisseia) é algum elevado ou shopping center caindo sobre tua cabeça. Pois é fim do mundo mesmo. Na hora da morte, homens e animais, apartamentos de cobertura da Delfim Moreira e falsos profetas vestidos de azul, tudo, absolutamente tudo, desmoronará num único baque.
Os nossos gritos serão abafados pelo troar infernal das bombas deles, e todos viveremos a enorme aventura, inerme, de morrer igualitariamente. É a expiação...
- Expiação?
- É a expiação, pelas nossas guerras convencionais, químicas, de quadrilhas, púnicas, de nervos, mundiais, santas, sem quartel, bacteriológicas, injustas, de preços, atômicas, frias, econômicas, de cem anos, localizadas, sujas, totais e de torcidas.
Outras informações adicionais
Na verdade, salvam-se um homem e uma mulher, que isso aqui é bom demais para ficar desabitado. O homem será escolhido por sorteio, essa a tua chance, caro amigo, mas da mulher serão exigidas qualidades várias, como a beleza da Jeanne Moreau, a coragem de Eneida de Morais e a inteligência da Dione. Engana-se quem pensou em Cláudia Cardinale, cuja não poderá ser salva, lamentavelmente.
- E a Vera Fischer?
- Também não...
A escolhida, uma latina, formará com outro latino um casal sem nenhuma propensão marginal, nem para consumir nem para guerrear. Uma história a ser contada, um dia, quem sabe...
Consolo
Não teremos missa de sétimo dia, mas nossos prótons são eternos.
sábado, 9 de julho de 2011
MULHERES E ESPELHOS
Palavras cruzadas
Além de citar Borges, eu me saíra muito bem no teste das palavras cruzadas. Seja como for, hei de tratar essas coisas com cuidado, pois tenho medo de passar por impostor.
- Que conhecimento, hein, Frank?
- Vamos com calma, Ingrid... A palavra "conhecimento" não é apropriada quando o assunto é palavras cruzadas, pois no trato diligente o cruzadista o que faz é acumular grande volume de chavões e clichês.
- Não é um conhecimento?
- É uma prática divertida, mas apenas prática. Se você perguntar a um charadista qual o termo correspondente a "para barlavento", com toda certeza ele responderá: "aló". Perguntando depois o que significa "aló", ou "para barlavento", pode ser que não saiba que é uma expressão náutica que indica a direção de onde sopra o vento.
- É assim, é?
- O torneio não passa de uma troca de chumbo, entre quem propõe e quem decifra, maquinal e quase esquizofrênica. A arte de encaixar a palavra no diagrama, sem preocupação com o conteúdo dos encaixes.
- Desconcertante...
- Desconcertante?
- Não diga isso para o nosso vice-presidente, que pode ofender-se, pois vive se gabando de ter sido campeão do torneio cruzadístico de Poços de Caldas, lá pela década de 1990. Dos concorrentes, que vinham de todo o Brasil, foi o único a saber que "auriga" é o nome que se dava antigamente ao cocheiro das bigas.
- Tenho certeza de que sabe também que "nara" é o inferno dos malês, "Is", o "Absoluto", na filosofia indu, e "santir", um instrumento oriental de forma trapezoidal.
- Instrumento musical ou agrícola?
- Não sei.
- Ah! Ah! Tudo bem... Como foi que você acumulou todos esses conceitos?
- Mediante um prolongado exercício de solidão.
- Outra coisa, Frank. Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens, você não acha isso, acha?
Até para citar Borges a gente tem de ter cuidado. Eu, amante profissional, falando mal da cópula e, desse modo, escarrando no leito generoso que me dá amor e me alimenta a vinho de seleção e caviar. Mas o autor citado é Borges, pô, e Borges devia pairar acima dessas susceptibilidades. Mas não paira, não paira, não paira, não.
- Você não acha isso, acha?
Qual a melhor maneira de voltar atrás, para consertar o estrago? É alegar que a palavra, qualquer palavra, não passa de uma fraude, que impede o ser humano de transmitir seus pensamentos com fidelidade? Que a palavra às vezes se opõe ao pensamento, ainda que acidentalmente, porque é mapa, e não território? Que a palavra "água" não molha, nem mata a sede? Que representa, mas às vezes representa mal? Não, não... Por aí, não, melhor não enveredar por esse caminho, que soa falso, soa indignidade e apelação. Apelação criminosa, execrar a palavra, que na verdade faz o diferencial do ser humano. Melhor tergiversar, que é a arte de afirmar, negando, e de negar, afirmando. Yes, but, usando a cintura. A cintura!
- Isso, de um lado, Ingrid. De outro, porém, os espelhos e a cópula são admiráveis porque multiplicam as mulheres. Além do mais, a cópula é simplesmente adorável quando se tem a ventura de uma parceira maravilhosa como você. Velázquez pensou na multiplicação dos homens quando fez a sua Vênus? Não, certamente não pensou. E decidiu fazê-la de frente para um espelho, que nada tem de abominável porque reproduz, maravilhosa, a sua criação genial: uma mulher, exatamentemente como você e tão Vênus de Velázquez quanto você.
- Como você é lisonjeiro...
- Borges falava metaforicamente. Pediram-me uma frase, não me perguntaram se eu estava de acordo com ela e da minha escolha não excluíram as metáforas. Ingrid, bendita a cópula, benditos os espelhos, bendita a frase do Borges...
Além de citar Borges, eu me saíra muito bem no teste das palavras cruzadas. Seja como for, hei de tratar essas coisas com cuidado, pois tenho medo de passar por impostor.
- Que conhecimento, hein, Frank?
- Vamos com calma, Ingrid... A palavra "conhecimento" não é apropriada quando o assunto é palavras cruzadas, pois no trato diligente o cruzadista o que faz é acumular grande volume de chavões e clichês.
- Não é um conhecimento?
- É uma prática divertida, mas apenas prática. Se você perguntar a um charadista qual o termo correspondente a "para barlavento", com toda certeza ele responderá: "aló". Perguntando depois o que significa "aló", ou "para barlavento", pode ser que não saiba que é uma expressão náutica que indica a direção de onde sopra o vento.
- É assim, é?
- O torneio não passa de uma troca de chumbo, entre quem propõe e quem decifra, maquinal e quase esquizofrênica. A arte de encaixar a palavra no diagrama, sem preocupação com o conteúdo dos encaixes.
- Desconcertante...
- Desconcertante?
- Não diga isso para o nosso vice-presidente, que pode ofender-se, pois vive se gabando de ter sido campeão do torneio cruzadístico de Poços de Caldas, lá pela década de 1990. Dos concorrentes, que vinham de todo o Brasil, foi o único a saber que "auriga" é o nome que se dava antigamente ao cocheiro das bigas.
- Tenho certeza de que sabe também que "nara" é o inferno dos malês, "Is", o "Absoluto", na filosofia indu, e "santir", um instrumento oriental de forma trapezoidal.
- Instrumento musical ou agrícola?
- Não sei.
- Ah! Ah! Tudo bem... Como foi que você acumulou todos esses conceitos?
- Mediante um prolongado exercício de solidão.
Metáforas
- Outra coisa, Frank. Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens, você não acha isso, acha?
Até para citar Borges a gente tem de ter cuidado. Eu, amante profissional, falando mal da cópula e, desse modo, escarrando no leito generoso que me dá amor e me alimenta a vinho de seleção e caviar. Mas o autor citado é Borges, pô, e Borges devia pairar acima dessas susceptibilidades. Mas não paira, não paira, não paira, não.
- Você não acha isso, acha?
Qual a melhor maneira de voltar atrás, para consertar o estrago? É alegar que a palavra, qualquer palavra, não passa de uma fraude, que impede o ser humano de transmitir seus pensamentos com fidelidade? Que a palavra às vezes se opõe ao pensamento, ainda que acidentalmente, porque é mapa, e não território? Que a palavra "água" não molha, nem mata a sede? Que representa, mas às vezes representa mal? Não, não... Por aí, não, melhor não enveredar por esse caminho, que soa falso, soa indignidade e apelação. Apelação criminosa, execrar a palavra, que na verdade faz o diferencial do ser humano. Melhor tergiversar, que é a arte de afirmar, negando, e de negar, afirmando. Yes, but, usando a cintura. A cintura!
- Isso, de um lado, Ingrid. De outro, porém, os espelhos e a cópula são admiráveis porque multiplicam as mulheres. Além do mais, a cópula é simplesmente adorável quando se tem a ventura de uma parceira maravilhosa como você. Velázquez pensou na multiplicação dos homens quando fez a sua Vênus? Não, certamente não pensou. E decidiu fazê-la de frente para um espelho, que nada tem de abominável porque reproduz, maravilhosa, a sua criação genial: uma mulher, exatamentemente como você e tão Vênus de Velázquez quanto você.
- Como você é lisonjeiro...
- Borges falava metaforicamente. Pediram-me uma frase, não me perguntaram se eu estava de acordo com ela e da minha escolha não excluíram as metáforas. Ingrid, bendita a cópula, benditos os espelhos, bendita a frase do Borges...
- Frank, eu te amo...
- Eu te amo também, doce Ingrid, e te amarei para sempre, com todas as forças do meu coração.
Falei muita besteira, mas funcionou. De outra vez, hei de ter mais cuidado na escolha das frases de minha preferência ou estarei novamente desempregado.
quarta-feira, 6 de julho de 2011
NOTAS DE UM GUARDA-LIVROS (III)
NHAMBIQUARAS
Outro dia, ao cruzar a Cinelândia, reencontrei o Ramiro, gênio capaz de uma Capela Sistina ou de uma Teoria da Relatividade. Não mudara quase nada, aquela cara trigonométrica e proparoxítona, com um sorriso que mais parecia uma hipotenusa. Engenheiro suma cum laudae da turma de 1966, adquirira grande experiência construindo túneis e viadutos e trabalhou, depois, na construção da... ponte Rio-Niterói. Bingo! Eu, lá atrás, entendia alguma coisa de futuro...
- Diga-me, indaguei, você usou os conhecimentos do professor Kakaze, os 1.512.000 agrupamentos, o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss?
- Não, nada disso foi necessário.
A obra havia dispensado a parte mateológica da sua inexcedível competência. Usara apenas ferragem, cimento, brita um, brita dois, brita três, tabelas, ábacos, thumb rules...
- O quê?
- Thumb rules, isso que se chama de "chutes"...
- Pombas!
Terminada a ponte, Ramiro engajou-se no desenvolvimento de campos de petróleo nas costas britânicas do Mar do Norte. Assentamento de plataformas e construção de sistemas flutuantes de produção, projetos que se justificam quando os preços do petróleo estão elevados, como agora.
- Está de férias?, perguntei-lhe, já em tom de despedida.
- Não, voltei de vez. Estou desempregado, mas decidido a conseguir uma ocupação sem grandes tardanças. Concorri ao cargo de engenheiro de manutenção numa fábrica de computadores em Maria da Graça, mas fui recusado no teste. Não soube responder o nome que se dá à unidade de elastância.
- É daraf, comentei, usando meus conhecimentos de palavras cruzadas. O daraf é o inverso do farad, que, por sua vez, é a unidade prática de capacitância.
- Estou, porém, na iminência de conseguir um emprego de oito salários mínimos, mais sobreaviso e periculosidade, numa hidrelétrica no norte de Mato Grosso, junto da reserva indígena dos nhambiquaras. Uma passagem de avião por ano, ida e volta, para visitar o Rio de Janeiro. Vou usar toda a minha experiência na construção de barragens, sem nenhuma agressão ao meio ambiente ou aos processos ecológicos essenciais.
Profissionais de mercado
Não consigo imaginar o Ramiro senão brilhando, o giz em riste, sob os aplausos entusiasmados do professor Kakaze. Mas essa questão dos nhambiquaras me desconcertou, desestabilizando as minhas memórias. Dos quais, nhambiquaras, sei, apenas e cruzadisticamente, que gostam de aaru, que é um bolo no qual se misturam carne de tatu e farinha de mandioca.
- Meu caro pitecantropo, o binômio de Newton é até citado nas poesias do Fernando Pessoa.
Será que o Ramiro brilhava mesmo ou não passava de uma das minhas fantasias? O professor Kakaze citou realmente o Fernando Pessoa?
Veio então a ideia. É verdade que eu nunca dera importância à poesia e conhecia, se tanto, o Mal Secreto e alguns trechos bem condoreiros do Navio Negreiro. Seja como for, fui à livraria e comprei as obras completas de Fernando Pessoa, o poeta que, em sonhos, sonhos criou. Logo na introdução, fiquei sabendo que foi um homem do comércio, autor de textos para dirigentes de empresas, publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, de Lisboa, e de uma vasta Teoria e Prática do Comércio.
- Um profissional de mercado, exatamente como eu!
Li toda obra e encontrei o poema em Álvaro de Campos:
“O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. Players e observadores
Um exemplo de player: Vittorio Gassman, o homem que desfrutou o doce arroz amargo... Outros players: Costa e Silva, Rembrandt e Ramiro. Eles entendem de álgebras e metáforas e movem a história, para o bem ou para o mal, o êxito ou o infortúnio. Tentei ser player também, mas não passei de um mero observador.
- Resta-me o consolo de que, sem observadores, este universo não faria nenhum sentido.
Outro dia, ao cruzar a Cinelândia, reencontrei o Ramiro, gênio capaz de uma Capela Sistina ou de uma Teoria da Relatividade. Não mudara quase nada, aquela cara trigonométrica e proparoxítona, com um sorriso que mais parecia uma hipotenusa. Engenheiro suma cum laudae da turma de 1966, adquirira grande experiência construindo túneis e viadutos e trabalhou, depois, na construção da... ponte Rio-Niterói. Bingo! Eu, lá atrás, entendia alguma coisa de futuro...
- Diga-me, indaguei, você usou os conhecimentos do professor Kakaze, os 1.512.000 agrupamentos, o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss?
- Não, nada disso foi necessário.
A obra havia dispensado a parte mateológica da sua inexcedível competência. Usara apenas ferragem, cimento, brita um, brita dois, brita três, tabelas, ábacos, thumb rules...
- O quê?
- Thumb rules, isso que se chama de "chutes"...
- Pombas!
Terminada a ponte, Ramiro engajou-se no desenvolvimento de campos de petróleo nas costas britânicas do Mar do Norte. Assentamento de plataformas e construção de sistemas flutuantes de produção, projetos que se justificam quando os preços do petróleo estão elevados, como agora.
- Está de férias?, perguntei-lhe, já em tom de despedida.
- Não, voltei de vez. Estou desempregado, mas decidido a conseguir uma ocupação sem grandes tardanças. Concorri ao cargo de engenheiro de manutenção numa fábrica de computadores em Maria da Graça, mas fui recusado no teste. Não soube responder o nome que se dá à unidade de elastância.
- É daraf, comentei, usando meus conhecimentos de palavras cruzadas. O daraf é o inverso do farad, que, por sua vez, é a unidade prática de capacitância.
- Estou, porém, na iminência de conseguir um emprego de oito salários mínimos, mais sobreaviso e periculosidade, numa hidrelétrica no norte de Mato Grosso, junto da reserva indígena dos nhambiquaras. Uma passagem de avião por ano, ida e volta, para visitar o Rio de Janeiro. Vou usar toda a minha experiência na construção de barragens, sem nenhuma agressão ao meio ambiente ou aos processos ecológicos essenciais.
Profissionais de mercado
Não consigo imaginar o Ramiro senão brilhando, o giz em riste, sob os aplausos entusiasmados do professor Kakaze. Mas essa questão dos nhambiquaras me desconcertou, desestabilizando as minhas memórias. Dos quais, nhambiquaras, sei, apenas e cruzadisticamente, que gostam de aaru, que é um bolo no qual se misturam carne de tatu e farinha de mandioca.
- Meu caro pitecantropo, o binômio de Newton é até citado nas poesias do Fernando Pessoa.
Será que o Ramiro brilhava mesmo ou não passava de uma das minhas fantasias? O professor Kakaze citou realmente o Fernando Pessoa?
Veio então a ideia. É verdade que eu nunca dera importância à poesia e conhecia, se tanto, o Mal Secreto e alguns trechos bem condoreiros do Navio Negreiro. Seja como for, fui à livraria e comprei as obras completas de Fernando Pessoa, o poeta que, em sonhos, sonhos criou. Logo na introdução, fiquei sabendo que foi um homem do comércio, autor de textos para dirigentes de empresas, publicados na Revista de Comércio e Contabilidade, de Lisboa, e de uma vasta Teoria e Prática do Comércio.
- Um profissional de mercado, exatamente como eu!
Li toda obra e encontrei o poema em Álvaro de Campos:
“O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. Players e observadores
Um exemplo de player: Vittorio Gassman, o homem que desfrutou o doce arroz amargo... Outros players: Costa e Silva, Rembrandt e Ramiro. Eles entendem de álgebras e metáforas e movem a história, para o bem ou para o mal, o êxito ou o infortúnio. Tentei ser player também, mas não passei de um mero observador.
- Resta-me o consolo de que, sem observadores, este universo não faria nenhum sentido.
sábado, 2 de julho de 2011
NOTAS DE UM GUARDA-LIVROS (II)
COMO SE FAZ UM MILIONÁRIO
Queria ser engenheiro, mas faltou-me embocadura, ou seja, o assunto escapava ao meu entendimento. Não sabendo o que fazer, após um pequeno treinamento botei banca de guarda-livros, e, nesse mister, entre borradores e diários, muito me valeu o aforismo de Sparafucile de Pococô:
- O dinheiro é bolsípeto, pois, se sair de um bolso, entra necessariamente em outro bolso.
- Bolsípeto?
- Se na Física, a força centrípeta puxa para o centro, no mundo das finanças, a força bolsípeta empurra o dinheiro para o bolso. Para o bolso dos espertos, bem entendido...
No início faturava pouco, cobrando um salário mínimo por cliente. Depois, perdida a inocência, passei a exigir honorários cada vez mais elevados, certo de que os clientes não teriam como me opor nenhuma resistência.
-Impor o preço, na cartilha dos bem-sucedidos, implica um decisivo salto de qualidade...
-Impor o preço, na cartilha dos bem-sucedidos, implica um decisivo salto de qualidade...
Eu e a bolsa de valores
Foi nessa ocasião que entrei para a classe dos milionários de gabinete, quando gloriosamente me pus a especular na Bolsa de Valores, à sombra da Comissão de Valores Mobiliários, estimulado pela Fazenda, aplaudido, e muito, pelo Planejamento e convenientemente documentado pela Associação Nacional dos Analistas dos Mercados de Capitais. Ah, nunca me esqueça de dizer que naquela época tudo o que se amealhava nesse mercado gozava de isenção do imposto de renda.
- Um incentivo providencial, muito justo e conveniente...
Minha técnica era a de adquirir barato, e a termo, na adinamia do mercado, e enfiar caro, e à vista, nas fases de euforia. Em outras palavras, comprar quando todos queriam vender e vender quando decidiam voltar às compras, movidos pela ambição de violar princípios termodinâmicos e criar o moto contínuo de primeira espécie. Quem não se lembra de 1971, quando as pessoas trocavam suas casas por ações? O Plano Cruzado, esquecer quem há de?
- Eu, na outra ponta, vendia ações a mancheias...
Se é verdade que se pode perder muito (ou, o que dá no mesmo, ganhar milhões num dia e vê-los desaparecer no dia seguinte), o esperto geralmente se dá bem, muito bem, pois a Bolsa, convenientemente utilizada, pode ensejar um retorno muito superior ao esforço despendido.
- Um jogo desproporcional, desequilibrado, a favor dos... equipados.
- Engana-se o cruzadista que entender, na vida real que existe cá fora do diagrama quadriculado, que maná é apenas o alimento que Deus mandou em forma de chuva para socorro dos israelitas no deserto...
Arroz doce
Consumado o êxito das minhas especulações, desapareci completamente dos pregões, pois especular é atividade de gente pobre. Ou melhor, de gente ainda pobre. Comprei um apartamento de três andares, mais cobertura, na Avenida Vieira Souto, uma ilha em Cabo Frio e uma centena de salas nos melhores edifícios da Avenida Rio Branco. Passei a acionista majoritário de algumas empresas sólidas e rentáveis, engajadas em negócios de fertilizantes, bebidas e metalurgia, que meus prepostos administram com redobrado zelo e eficiência, na pressuposição e temor de que posso demiti-los a qualquer momento.
- Fiquei rico porque fui incapaz de aprender Matemática.
- Como o sacristão do O. Henry...
Do meu escritório, de frente para o pôster de Silvana Mangano, depois da surra na chuva e molhada de 18 anos, contemplo com nostalgia a obra de 13 quilômetros a cuja construção não tive acesso por não ter entendido a distribuição de Gauss, este o meu fracasso mais retumbante.
- Não me despojarei, porém, do mérito de tê-las antevisto, Silvana e a ponte, tamanhas, nas minhas premonições de adolescente...
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