quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

VERSOS RIDÍCULOS

Adeus para nunca mais!

Mesmo longe de May, estava levando a sério o propósito de adquirir um pouco de cultura, tanto que me inscrevi num curso sobre filósofos pré-socráticos e decidi ler alguns poucos autores de primeira linha, como Schopenhauer e Machado de Assis. Lia devagar e escassamente, por falta de tempo, mas cheguei a Albert Camus, que, ao contrário daquele seu estrangeiro, repudia a depressão e ama a vida:

- Amo a vida, eis minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não seja vida.


Também amo a vida, pensei, e minha vida está ligada à May. Naquele momento decidi telefonar para ela. Tanto tempo passado, quase quatro semanas, e esgotado o ressentimento, não se recusaria a me atender. Camus seria o pretexto. Sabe, May, não é por nada não, mas queria lhe perguntar sobre Camus, pois ando pensando naquele filme do estrangeiro e quero discutir com você sobre os livros dele. Afinal, há tanto tempo não nos falamos. Não sei, isto é, não sei mesmo... Quem gosta de física está irremediavelmente ligado ao drama do Giordano Bruno, pobre dele, que não se retratou, e teve essa história do senhor Meursault, que também não se retratou. Retratação, não; arrependimento, também não. Quero ver se compreendo o Giordano pela discussão e entendimento do Meursault. Acho, nem sei se acho, que o senhor Meursault não passa de uma triste metáfora. Você pode me ajudar?

Giordano Bruno

- Na hora sairia melhor... Pois uma coisa era certa: meu desempenho cresce, e muito, quando estou sob pressão.

Meu coração acelerou quando perguntei se ela podia me atender.

- May? Ela se despediu do Museu há cerca de dez dias.

- Despediu-se do Museu? Demitida?

- Não, não, pediu demissão. Ela se mudou para Londres, acompanhando o Kurtis.

- Londres? Kurtis, quem é Kurtis?


- Sim, Kurtis, o professor da Economia.

O telefone quase me caiu das mãos. Onde estou, meu Deus? Não ciciam mais os buritis, às noites seguem-se os dias, mais forte que o tufão, meu filho, é Deus... Os rios correm pressurosamente para o mar, sigam-me os que forem brasileiros, Deus não criou o mundo, mas emanou-o, um burro coça o outro, tudo se afirma, se nega e se supera, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste, a discórdia é a peste e a tolerância, o remédio, ridendo castigat mores, não existe amor sem sexo, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, amar foi minha ruína, os brutos também amam, o encouraçado Potenkim, como era verde o nosso vale, ninguém assistiu ao enterro da tua última quimera.



- Ninguém assistiu ao enterro da tua última quimera, idiota!

Fazer o quê? Escafeder-me, evaporar, gritar viva a Rainha Elisabeth II e abaixo as três leis de Newton, admitir que de solidão morrem os crisântemos amarelos e confessar que odeio a palavra arrebol e seus termos cognatos, antes de reconhecer que, afinal e definitivamente, sou o maior cretino de toda a história da humanidade, não importa como, quando ou por quê, seja em Araxá, Veneza ou Tegucigalpa.
Foi para a Inglaterra, com um tal de Kurtis!
Lembrei-me naquele momento de um verso do Fernando Pessoa: como a dobrada à moda do Porto, o amor não é prato que se coma frio. Nem hoje nem sábado, acrescento eu. E o idiota, aqui, idiota ao quadrado, e de gravata borboleta, fazendo versinhos, bonitinhos, metrificadinhos, cheios de riminhas. Comendo dobradas a frio, com chá de capim cidreira!


- E dizer que pensei em ir ao Museu, de poesia em punho, ora essa! Versos ridículos, decididamente ridículos!

Sobrevida

- Adeus, para nunca mais!

May ainda sobreviveu em mim por algum tempo. Muitas vezes interrompi os estudos para lembrar os momentos bons ou para ruminar minha decepção com o esdrúxulo desenlace. Passadas algumas semanas, engraçado que seja, subitamente meus sentimentos mudaram completamente. Após uma noite de sono profundo, acordei mais tarde do que habitualmente, consultei-me alma adentro, espreguiçando-me demoradamente: senti que May já não era importante para mim. Tudo fora maravilhoso, com saldo positivo, mas a partir daquele instante ela deixou de ter significado, como se nunca tivesse existido. E em voz alta repeti várias vezes o verso da Última Canção do Beco, de Bandeira: "Adeus, para nunca mais".

- Adeus, para nunca mais!

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