sábado, 8 de janeiro de 2011

UMA FESTA DE INTELECTUAIS

SHAKESPEARE E O DENTISTA

Sobravam no ambiente elegância e refinamento. Angelina Soares declamou a poesia “Congresso no Polígono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista)”, de João Cabral de Melo Neto. A seguir, os líricos Beniamino Prior e Katia Ricciareli, que então visitavam o Rio de Janeiro, cantaram, à capela, “Parigi, o cara, noi lasceremo”, da Traviata. Completando, houve um torneio de mágicas, muito divertido, e até hoje não sei explicar por quê, nem como, a dama de ouros, dividida em quatro, foi parar, toda reconstituída, na bolsa da Valéria Castegliani.

Mais divertido, porém, foi o sorteio para escolher quem iria propor um enigma relacionado com Shakespeare e suas personagens, ficando a impressão de que quase todos estavam com suas histórias muito bem preparadas. A sorteada foi uma escritora chamada Alice Ben-dov. A história que narrou era sobre um dentista do Leblon, o qual certo dia recebeu uma carta para lá de esquisita:

“Silvestrini, você não passa de um dentista idiota, pois ignora sua própria história. Se desejar conhecê-la, almoce amanhã no Humphrey’s, exatamente à uma. Como você está familiarizado com Shakespeare, se olhar para baixo, saberá o porquê... Tiago Lessone.”


Eis o que Silvestrini pensou dessa carta: “Sou idiota, como não, e muito obrigado por manifestar sua abalizada opinião. Ignoro a minha história? Almoçar à uma, no Humphrey’s? Ora, pois! Como conheço Shakespeare, só por isso, basta olhar para baixo... Para ver a rua? Alguma sorveteria do Hamlet, com picolés da Dinamarca, ou o Rei Lear, com seus bolinhos de bacalhau e geladeiras de segunda mão? Muito barulho por nada? Algum mercador de bugigangas importadas? Ou será a jaqueira do nosso playground? Peço-lhe, querido bardo, a gentileza de informar ao senhor Tiago Lessone, seja ele quem for, que olhei para baixo e, para minha grande surpresa e desorientação, lá estavam os meus pés, em número de dois, calçando sapatos pretos de tamanho 41, assentados tranquilamente sobre o chão do meu consultório, e, mais abaixo, adiante, uma avenida dividida por um canal ornado de flores e de garças elegantes. Peço-lhe, mais, que informe ao Lessone que não tenho nenhum tempo, nem disposição, para comparecer ao Humphrey’s”.

Dias depois, o dentista recebeu outra carta:


“Silvestrini, você não deu importância à minha carta e não compareceu ao Humphrey’s. Sua história não lhe interessa? Segunda chance, amanhã, no Humphrey’s, às 13 horas. Olhe para baixo! Tiago Lesst.”


Havia uma mudança, logo percebida pelo Silvestrini, pois o sobrenome, Lessone, fora trocado para Lesst. Pela segunda vez decidiu não fazer nada. Houve, poucos dias depois, uma terceira carta, recomendando mais uma vez que comparecesse ao Humphrey’s. Só que desta vez a assinatura mudara para Tiago Lessfirst.

No Humphrey's

Tudo muito esquisito... Silvestrini pensou longamente nos três sobrenomes do Tiago, entendeu o recado e decidiu comparecer ao Humphrey’s na hora sugerida pela terceira carta. E lá encontrou sua mulher abraçada com um amante. O dentista não é um homem de grandes explosões, mas acabou separando-se da mulher.

- Por que Silvestrini atendeu à terceira carta?, eis o enigma, arrematou Alice, dirigindo-se aos presentes.


Os convidados tinham trinta minutos para desvendar a história. Houve, no início, muito palpite, desorientação e manifestações equivocadas. Depois, todos permaneceram em silêncio, e tão longa foi a pausa que tive a impressão de que ninguém chegaria à solução. Quando já se encerrava o prazo, entretanto, Susana de Malta, que é tradutora juramentada e mora na Aristides Espínola, apresentou a solução do enigma:

- A instrução de olhar para baixo tinha a ver com o sobrenome cambiante. Não era para olhar os sapatos ou para a rua, mas a parte de baixo da carta, ou seja, a assinatura do Tiago. Tiago “Lessone” é Tiago sem “one”; Tiago “Lesst” é Tiago sem “T”; e Tiago “Lessfirst” é Tiago sem a inicial. Três informações na mesma direção, pois Tiago sem a inicial é Iago. Sim, Iago, a personagem pérfida que insinua para Otelo que Desdêmona tem um romance secreto com Cássio. Na tragédia de Shakespeare, Otelo acredita na intriga e, possuído pelo demônio do ciúme, estrangula Desdêmona e se suicida.


Kiri Te Kanawa, como Desdêmona

- Compreendemos muito bem, ou seja, uma recorrência shakespeariana como forma de alertar sobre a mulher. Silvestrini só entendeu, afinal, porque conhecia a obra de Shakespeare, o que significa que cultura, entre outras nobres finalidades, também serve aos maridos enganados.

- Serve muito, observou Alice. Silvestrini teve mais bom senso que Otelo. Quero dizer, foi menos radical...


- Só que no caso do Silvestrini a denúncia era verdadeira, ao contrário do que ocorre na tragédia de Shakespeare.

- Mais uma agravante contra Otelo. Esse Humphrey’s deve ser um lugar elegante...

- Sim, os clientes fazem as reservas com antecedência, o que permitiu as cartas antecipadas do Tiago sem T para o dentista. E tem mais...O Tiago sem T, se não for o gerente responsável pelas reservas, tem acesso a elas, creio eu.


- E, além disso, conhece Shakespeare...


- Tudo é possível numa história virtual...

Alice e Susana receberam xilogravuras do Scliar, como prêmio. A festa ainda prosseguiu e encerrou-se depois de algumas projeções coloridas do sítio arqueológico de Epidauro, um santuário situado a nordeste do Peloponeso.

Peloponeso, no sul da Grécia

-May...

- Vai me perguntar onde fica o Peloponeso?

- Não, não. Quero apenas dizer que essa turma sabe se divertir.

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