quarta-feira, 17 de março de 2010

UMA MULHER ESPECIAL

AS DOAÇÕES RECUSADAS

Todo o tempo Cecília esteve sob minha proteção econômica, pois eu, que recebia uma elevada remuneração na WED, representava o seu seguro. A cujas coberturas, a bem da verdade, nunca precisou recorrer, pois fez nesses oito anos uma carreira vitoriosa, tanto do ponto de vista profissional como financeiro. Ela percebe as oportunidades e administra seus projetos de forma sempre competente, o que, aliás, explica amplamente por que uma arquiteta interessada em modas decidiu tomar cursos de estatística e de econometria no Department of Business da Universidade do Texas.
Cecília planeja, controla, coordena e comanda tudo, como se fosse um Ford, um Fayol, sei lá. Esforço e muito talento igual a êxito, eis uma lei que justifica muito bem os vencedores do mundo.
Em pouco tempo, era natural, passou a ganhar mais do que eu.

Sempre haverei de reconhecer, com exemplos fartos, que Cecília é uma pessoa diferenciada, e ganhar dinheiro com maestria e dedicação é apenas uma das muitas manifestações da sua inteligência superior. Ela prepondera, esta palavra diz tudo, não importa se a causa é grande, influindo na conta bancária ou no destino das pessoas, ou se irrelevante, como na escolha de um guarda-chuva ou na elaboração de uma lista de convidados.
Com muito dinheiro afluindo de ambos os lados, compramos a mansão do Itanhangá e assumimos uma vida de muito conforto material, que incluía carros importados e constantes viagens à Europa. O importante, porém, é que nós nos bastávamos, pois tudo em volta parecia ser, e era, mero complemento na paisagem colorida da nossa existência.

Itanhangá

Cecília sempre terá a minha admiração. Lembro-me, e muito bem, da madrugada inesquecível de Veneza, do colar de Ouro Preto e da vitória do Full Advantage, aquela vez no Jóquei Clube.
Ah, houve também a história dos cobertores, inesquecível... Os que não morreram tentavam salvar suas miudezas, que a correnteza ia arrastando de maneira decidida. As pessoas, se quisessem ajudar, poderiam enviar dinheiro ou levar suprimentos e agasalhos ao depósito da Rua da Constituição, lá no centro da cidade.

- Vamos ajudar essa gente, Carlinhos.


Compramos dez dúzias de cobertores, que, de carro e com algum embaraço no trânsito, levamos à Rua da Constituição. Tivemos uma recepção fria e burocrática, quase grosseira, e fomos instruídos a deixar os cobertores num pátio muito sujo, onde desordenadamente se amontoavam outros donativos. Tudo seria removido para um depósito nos fundos e distribuído aos flagelados, mas a seu tempo.
Um mês depois, superada a urgência da catástrofe, Cecília quis voltar à Rua da Constituição.

- Tenho ordens para abrir o depósito, disse ela ao vigia.

- Abrir o depósito? Ordens de quem?

- Do general Esperantino Tinoco.

Esperantino Tinoco

Lá dentro estavam os nossos cobertores, embrulhados como os deixáramos no dia da tragédia. Por ordem do general Tinoco, nós os resgatamos e os encaminhamos a uma instituição de caridade.


- Não conheço esse general Tinoco, Cecília.

- Nem seria possível conhecê-lo, simplesmente porque ele não existe. Foi a minha maneira de pressionar o vigia.

- Ótima, essa. Por que será que pediram donativos e não os enviaram para as vítimas?

- Esse o ponto. Embolsaram o dinheiro piedoso, esquecendo-se do resto, pois não tinham intenção nenhuma de ajudar ninguém; os suprimentos só entravam na história para dar
credibilidade ao apelo.

- Agora entendo; os outros donativos não lhes interessavam.

- Mas há os chatos, como nós, Carlinhos.

E, entre estes, os espertos, como Cecília.



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