quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Já beócio não sou!

Gorki e Camus

Foi do Museu que May me ligou.

May

- Quero convidá-lo para ver uma peça.

- Peça, sobre o quê? Quando?

- "Pequenos Burgueses", de Máximo Gorki, hoje à noite. Sobre os Bessemenovs, uma família russa em decadência.

- Mas...

- Nem pense em recusar, pois já adquiri os ingressos.

Pequenos burgueses

Máximo Gorki

May, ao volante, tomou o rumo do Teatro Villa-Lobos. Foi durante o percurso que ela me explicou que Máximo Gorki teve uma vida miserável, trabalhando como lavador de pratos, pescador, vendedor de frutas, muitas vezes sobrevivendo até como vagabundo. Chegou a tentar o suicídio, no desespero de quem se sente perdido, no meio de muita gente corrupta e miserável. Ele se consagrou, porém, ao escrever os "Pequenos Burgueses", pois a decadência dos Bessemenovs, com todas as suas contradições, era uma amostra do que acontecia na Rússia que antecedeu a Revolução Comunista.
Tudo foi, para mim, um alumbramento:
o teatro, o ambiente, o ritual. E a peça, não sei se tinha visto alguma assim densa e interessante. Um pai arbitrário, uma filha deprimida, um filho pretensioso e Nill, o trombeta de Deus! Era a classe média assoberbada pelo tédio, numa sociedade em plena e decidida decomposição.

Modelo idiota

Saí do teatro ainda mais convencido de que era necessário introduzir o viés da cultura em minha vida, jogando na lata do lixo aquele modelo idiota em que eu só pensava em integrais, vetores, transformadas de Laplace, eletricidade e mecânica. Nesse processo de ruminar minha inferioridade, lembrei-me de Charles Percy Snow, o intelectual inglês para o qual poucos cientistas leem Charles Dickens ou uma peça de Shakespeare, e poucos artistas conhecem o Segundo Princípio da Termodinâmica.

- Assim, concluía Snow, fica muito difícil resolver os problemas do mundo.

- Fica mesmo, concordo, aqui do meu cantinho. Não que eu me considere um cientista na acepção integral da palavra, mas não posso continuar sendo um analfabeto cultural em plena cidade do Rio de Janeiro.

O estrangeiro

Uma semana depois May ligou-me novamente, sempre assumindo as iniciativas.

- Já tenho os ingressos.

- Mas qual o filme?

- Isso também é importante. "O Estrangeiro", baseado num romance de Albert Camus.

- Albert Camus?

Ora, pois. O senhor Meursault decide ir ao enterro da mãe, cuja idade desconhece. Sei lá, sessenta anos. Encontra-se depois com Marie Cardona e vê um filme de Fernandel; Mersault relaciona-se com um vizinho, Salamano, que tem um cachorro nojento; e com outro, Raymond Sintès, que é cafetão e tem o hábito de espancar a mulher até o sangramento.
No domingo, Meursault, Marie Cardona e Raymond vão para a casa de praia de Masson, um amigo de Raymond. Dois árabes atacam Raymond na praia, pois querem vingar-se da surra que ele deu na prostituta. São repelidos por Raymond e Masson, que, a seguir, voltam para casa.
Meursault passeia pela praia sozinho e avista um dos árabes, que exibe a faca, mas sem nenhuma atitude agressiva. Era só Meursault voltar também para casa, e tudo estaria terminado. Mas havia o sol na cara. Mersault atira, e o árabe tomba, fulminado. Depois atira mais quatro vezes contra o corpo inerte do homem caído.
O advogado, o juiz e o promotor tentam entender o gesto de Mersault, que, de fato, nunca se arrepende de nada porque é dominado pelo que vai acontecer.


- Foi o sol...

- Eu matei o árabe por causa do sol.

O capelão insiste em falar com o senhor Meursault, pois precisa conquistar sua alma de condenado à morte.

- Deus irá ajudá-lo, Meursault.

- Não quero que ninguém me ajude, e falta-me tempo para me interessar pelo que não me interessa.

Indiferença perante a vida. desdém por todas as circunstâncias. Uma obra de Camus, mostrando, numa reflexão sobre o absurdo, um homem que se estranha, estrangeiro de si próprio.

- Muito esquisito.

- Bota esquisito nisso, Carlinhos.

Minha opção

Ana Netrebko, uma Traviata

Dar mais atenção aos cadernos internos do jornal,

ler Proust, a Divina Comédia e o Dom Quixote,


ir ao Municipal,

ser capaz de reconhecer uma ária da Traviata ou uma sonata de Beethoven,

aprender Francês, que isso de só saber Inglês já está ficando ridículo, e
jogar bridge.

Ilíada, Finnegans Wake,

mitologia grega e escandinava,

Noberto Bobbio, Kierkegaard e Condillac.

E, claro, vinhos, filosofia e economia política.

Ficar atento às oportunidades culturais.

Manuel Maria Barbosa du Bocaje

E gritar, como um Bocage desvairado do Baixo Leblon:

- Gente ímpia, rasgai os meus versos e crede na eternidade, que já beócio não sou!

Ou não estarei à altura da May.

2 comentários:

querência disse...

Muito bom o teu conto. Como sempre,
aliás. De uma finesse...sem afetação! Muito gostoso de ler.
Dia desses, publicarei outro conto teu...!
Abs

Andi disse...

Gostei muito! Quem há de estar à altura de May? Um beijo