sábado, 12 de novembro de 2011

PLANO B

BOLA FORA

Devo fingir que sou intelectual, sem errar nem pestanejar, antes que Pascale se levante da minha cama, decida ir embora e me deixe no ora-veja. O negócio é manter a calma, Estevinho, e falar com naturalidade e sem afetação. Tudo bem, mas falar sobre o quê? René Clair e Truffaut... não, não, que ela é francesa, e disso deve saber muito mais do que eu. Quem sabe aquele assunto dos buracos negros? As Vésperas Sicilianas, de Verdi? Demônio de Maxwell?

- Estevinho, você se formou em quê?

Ela foi mais rápida, ou seja, falhei... Não posso confessar que meu pai me abandonou e fugiu para Cremona, depois de dar um desfalque na Central do Brasil. Com quem fiquei, aos oito anos de idade? Fiquei sozinho, pois minha mãe foi-se com ele, e só não morri de fome porque o acaso, que é irmão e cúmplice do tempo, zela pela sobrevivência dos desamparados. Na Febem quiseram me encaçapar, porque eu tinha cara de filhinho de papai. Escapei pela tangente e me tornei vendedor de livros: Jorge Amado, literatura de cordel, receitas de dona Benta, como fazer amigos e influenciar pessoas. Pois é, um dia encalhou nas minhas mãos o livro, glorioso, que ensinava a vencer na vida fazendo força na direção certa, que decidi ler por falta de programa melhor. Nele aprendi que as benesses são desigualmente distribuídas, segundo critérios que é inútil discutir. Basta empolgar o seu espaço, cara pálida. Conclua a Inacabada de Schubert, invente o motor de combustão externa, procure libelático no dicionário, plante uma bananeira no alto do Himalaia, compre o bilhete que será contemplado com o grande prêmio, aprenda a cabecear no ângulo, dedique-se à alta costura. Segui os ensinamentos à risca e achei um caminho.
Mas não me formei em nada,
eis o problema, só me restando recorrer ao Plano B.


Marconi

- Pascale, não me formei em nada. E explico por quê: as universidades nada têm para ensinar, neste tempo de internet e globalização. Reconheço que foram instituições importantes em tempos remotos, talvez na época de Galileu e Newton. Veja que...

- Uma afirmativa contrária ao senso comum.


- Marconi nunca frequentou escola nenhuma, foi o inventor do rádio e obteve em 1909 o Prêmio Nobel de Física, ele que se baseou nas teorias de Hertz e Branly, que aprendeu nos livros, e não na universidade.

Sem parar de falar, Estevinho pôs-se a fazer o jantar. Mergulhou a lagosta numa panela funda, contendo court bouillon fervente, e deixou cozinhar, esperando que a carapaça ficasse bastante vermelha. Enquanto isso, refogou a cebola, até que se tornasse dourada, e adicionou-lhe caldo de carne e vinho bordeaux. Em seguida, retirou a carne da cauda e da garra da lagosta, manuseando o garfo e a faca com habilidade. Serviu a sopa de cebola em cumbuca refratária, com queijo bruyère
ralado, e, após, a lagosta, acompanhada de chablis Fourchaume.

- Claro, não sou nenhum Marconi, mas tudo que sei aprendi sozinho, lendo, comparando, experimentando. Quando soube das joint-ventures, comecei a estudar por conta própria, importei livros, frequentei congressos, consultei especialistas. Por quê, se esse negócio de joint-ventures não existia no Brasil? A resposta eu dei quando se fez a opção pela globalização da nossa economia. As companhias internacionais chegaram indagando sobre quem entendia de joint-ventures no Brasil. Só havia uma convergência: José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, o Estevinho.

Pascale deliciou-se com o fígado verde e cremoso da lagosta.

Fermat

- Você é um excelente cozinheiro, além de bom contador de histórias. Mas não concordo com essa tese sobre as universidades.

- Outro exemplo é o de Pierre de Fermat, que, não sei se você sabe, foi o maior matemático do século XVII, pois com ele começou o cálculo diferencial, o cálculo das probabilidades e até a geometria analítica, que desenvolveu ao mesmo tempo que Descartes. Ficou popular por causa do famoso “Último Teorema de Fermat”, cuja demonstração representou um desafio de 300 anos para os matemáticos de todo o mundo.

- Para os matemáticos e não-matemáticos, por causa de um prêmio de um milhão de marcos, oferecido pela Universidade de Göttingen. Fermat era natural de Toulouse, onde já residi, por acaso a cidade do Carlos Gardel. O cálculo das probabilidades foi desenvolvido em colaboração com Pascal. Você ousa dizer que ele nunca frequentou nenhuma faculdade?

- Frequentou, claro que sim, mas uma faculdade de direito, que nada tem a ver com matemática.

- E então?

- No caso do Fermat, houve um apreciável desperdício de tempo na universidade...


- Nada disso. A universidade deu-lhe todas as condições, e ele se tornou um destacado juiz. Lembre-se que Fermat não era matemático profissional, tanto que, entre os matemáticos, foi considerado "o Príncipe dos Amadores".

- Marconi e Fermat ilustram a minha tese...

- Há centenas de universidades no mundo, milhares de pessoas em múltiplos países pesquisando sobre todos os temas e dando impulso à humanidade, e você as refuta com duas exceções, dois exemplos de algibeira. Você faz estatística com pequenos números, além de ignorar completamente a realidade que se opõe às suas conclusões. Muito bizarro...

Displicentemente


Execrar a universidade para justificar a mediocridade
, o Plano B, meu papo oblíquo que sempre funciona muito bem, foi desta vez a minha perdição. Isso, exatamente isso, joguei e perdi....

- Ciao

Pascale não quis que a acompanhasse, tomou um táxi e voou para a França. Nada mais tinha a tratar comigo. Sobre a mesa, o cartão que ela me deixou, displicentemente:

"Pascale Duvivier, professeur honoraire des Universités de France, Paris"

Eu, veja só, palhaço das perdidas ilusões.

Nenhum comentário: