Na boate, Estevinho deparou-se com Regininha, a moça mais bonita da General Artigas. Dançaram como se fossem velhos parceiros, os corpos num só corpo. Aí, deu aquela de fresco:
- Você é deslumbrante, Regininha. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.
Ficou nisso, que Estevinho era assim mesmo, derramado, mesmo quando não estava a fim.
- Vou me casar no sábado. Isto é, eu me caso se você assim decidir.
- Não estou entendendo, Regininha.
- Vou me casar no sábado, com Ernesto Augusto de Vidigal, se você autorizar. Você autoriza?
- Olha, a brincadeira é até divertida, mas estou muito ocupado e vou desligar.
- Então, você autoriza?
- Que mané autoriza não-sei-o-quê.
- Ciao.
- Ciao.
No sábado Regininha foi encontrada morta. Ao lado, a carta alucinada.
"Devo informar aos meus familiares, à polícia e a quem mais interessar que fui assassinada por José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, conhecido como Estevinho, que mora no 800 da Visconde de Albuquerque."
Sacana, que Deus a tenha. Revólver na mão, quarto fechado por dentro, tudo indicava suicídio irrevogável e irretratável, dos categóricos e inapeláveis. Mas a carta, como explicar a carta? Meu nome nos jornais, aquele trabalhão para provar a inocência, a revista interminável do apartamento, os numerosos comparecimentos à delegacia, os risinhos do escrivão, o mau humor do delegado, as despesas impossíveis. Citações, agravo de instrumento, apelação, habeas data, mandado de injunção, preclusão, certidões. Só não me exigiram incunábulos, nem palimpsestos, que vai ver nem se aplicam nesses casos.
- Inocência putativa, sentenciou o juiz.
Inocente, mas culpado, passei a viver o sobressalto de ser incomodado a qualquer momento. Tudo porque dei uma de babaca:
- Você é deslumbrante, Regininha. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.
No bar
Estevinho dava sorte com mulheres bonitas, talvez porque estivesse sempre disponível. Foi num bar da Dias Ferreira que conheceu Pascale.
- José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta?
- Sei que é um nome vasto e complicado, mas tem sua explicação. Meus ancestrais, em Cremona, dedicaram-se desde muitos séculos à fabricação de espaguete, talharim, ravióli e canelone. O nome da família - Ticiani- foi paulatinamente substituído por Pastasciutta. Um nome que me enche de orgulho, pois, longe de ser uma folha ao vento, tem passado e futuro, história e substância. Como todo italiano, meu pai tinha muito orgulho de sua terra, particularmente de Cremona, o mais importante centro mundial de fabricação de instrumentos de corda, segundo uma tradição que começou com Nicola Amati, no século XVII, continuou com Giuseppe Guarnerius e Antonio Stradivarius, no século XVIII, e se estende até os dias de hoje. Cremona é a terra natal de Claudio Monteverdi, violista e criador da ópera italiana. Quando nasci, recebi um nome que homenageava toda essa gente ilustre de Cremona. Carrego um penduricalho, mas um penduricalho histórico!
Pascale se encantou com a desenvoltura de Estevinho, a maneira simpática de explicar suas excentricidades. Como imaginar alguém carregando um nome ligado à história de Cremona?
A surpresa
Do bar diretamente para a cama, Estevinho e Pascale acabaram vivendo um tórrido romance de fim de semana. Era francesa, uma mulher elegante, inteligente e sensível, quase uma dádiva, naquela fase de carência e insegurança de Estevinho.
Ao vê-la deitada no sofá da sala, assim nua e magnífica, Estevinho olhou-a com ternura, e não se conteve:
Pascale
- Você é deslumbrante, Pascale. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.
- Exatamente o que você disse para a Regininha, Estevinho.
Há entre o céu e a terra coisas para além do que supõe a nossa filosofia, meu caro Estevinho. Bebi muito? Essa Pascale existe mesmo? Estou sonhando? Regininha está viva, e quem morreu fui eu? Onde estou? Por quem os sinos dobram?
Os sinos não dobram, estou no apartamento da Visconde de Albuquerque, estou vivo, morta está a Regininha, Pascale existe mesmo e está na minha poltrona, bebi muito e há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. O negócio é ficar calmo, fingir naturalidade e mostrar interesse a meio pau.
- Como você sabe que eu disse isso para a Regininha?
- Regininha era minha irmã gêmea.
Ora, diabo, essa foi de lascar! Atiro-me pela janela, escrevo uma carta para Marlene Dietrich, demonstro seis vezes o teorema de Pitágoras ou compro uma geladeira a prestações? Como se conjuga explodir na primeira pessoa? Calma, calma, deixa a Pascale desfazer o pacote e que não haja nele serpentes, nem explosivos.
- Agora sei por que você me parecia familiar: há no seu rosto muita coisa da Regininha!
- Nosso encontro não foi espontâneo, Estevinho. Procurei-o no bar para conversar sobre ela.
A chegada da verdade, pelo remorso da família, isso, exatamente isso. Filhas de pai francês e mãe brasileira, Pascale e Regininha tiveram uma infância abastada no Leblon. Quando os pais se separaram, Regininha e a mãe permaneceram no Rio de Janeiro, mas Pascale voltou com o pai para a França. Mãe e filha dissiparam tudo que o francês lhes deixara, com grandes complicações para ambas. A conseqüência foi que aos poucos Regininha se tornou garota de programa. Cobrava 500 dólares para passar uma tarde com executivos. Tudo lucrativo e reservado, pois era requisitada por gente que não economizava dinheiro e comportava-se com toda a discrição.
Quem diria, a Regininha, hein? Eu, morando aqui perto, não estava sabendo de nada. Prostituta, a Regininha Duvivier era prostituta!
- Aconteceu, porém, que a Regininha conheceu o Ernesto Augusto numa festa. Começaram a namorar e ficaram noivos. Ele é muito rico e decidiu promover um jantar de cerimônia para apresentá-la a seus amigos e parentes. Deu-se então que um dos convidados, o banqueiro Leopoldo, reconheceu a Regininha.
- Era um dos seus clientes?
- Isso, não menos que isso. Na manhã seguinte, o noivado foi rompido.
- Motivo pelo qual decidiu ligar para mim.
- Ligou para mim também. Você não havia dito que ela era a moça capaz de fazer a felicidade de qualquer homem? Morreu sem saber que você diz isso para todas as mulheres.
- Isso não é verdade!
- Usaria você como desculpa, a de que trocara o Ernesto pelo galante Estevinho.
- Como não me deixei seduzir, ficou sem saída e decidiu matar-se.
- Por aí.
- Por que a carta me incriminando?
- Uma atitude lamentável, que ninguém conseguiu explicar. Talvez um fato policial para despistar os amigos, os parentes e a vizinhança: perder a vida, mas salvar as aparências.
Se entendi corretamente, Regininha quis me usar como noivo. Não deu. Então me usou como boi de piranha (sem trocadilho, por favor), com grande sucesso. Sacana, mil vezes sacana. Tenho decididamente cara de panaca, aliás, de pastasciutta, mas, convenhamos, meu santo é forte.
Regininha fora a minha algoz, e Pascale, sua irmã gêmea, era agora o meu consolo.
Mais que consolo, uma recompensa.
Reuni todas as forças do meu coração, abracei-a e disse as palavras mais sinceras da minha vida:
- Exatamente o que você disse para a Regininha, Estevinho.
Há entre o céu e a terra coisas para além do que supõe a nossa filosofia, meu caro Estevinho. Bebi muito? Essa Pascale existe mesmo? Estou sonhando? Regininha está viva, e quem morreu fui eu? Onde estou? Por quem os sinos dobram?
Os sinos não dobram, estou no apartamento da Visconde de Albuquerque, estou vivo, morta está a Regininha, Pascale existe mesmo e está na minha poltrona, bebi muito e há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. O negócio é ficar calmo, fingir naturalidade e mostrar interesse a meio pau.
- Como você sabe que eu disse isso para a Regininha?
- Regininha era minha irmã gêmea.
Ora, diabo, essa foi de lascar! Atiro-me pela janela, escrevo uma carta para Marlene Dietrich, demonstro seis vezes o teorema de Pitágoras ou compro uma geladeira a prestações? Como se conjuga explodir na primeira pessoa? Calma, calma, deixa a Pascale desfazer o pacote e que não haja nele serpentes, nem explosivos.
- Agora sei por que você me parecia familiar: há no seu rosto muita coisa da Regininha!
- Nosso encontro não foi espontâneo, Estevinho. Procurei-o no bar para conversar sobre ela.
A chegada da verdade, pelo remorso da família, isso, exatamente isso. Filhas de pai francês e mãe brasileira, Pascale e Regininha tiveram uma infância abastada no Leblon. Quando os pais se separaram, Regininha e a mãe permaneceram no Rio de Janeiro, mas Pascale voltou com o pai para a França. Mãe e filha dissiparam tudo que o francês lhes deixara, com grandes complicações para ambas. A conseqüência foi que aos poucos Regininha se tornou garota de programa. Cobrava 500 dólares para passar uma tarde com executivos. Tudo lucrativo e reservado, pois era requisitada por gente que não economizava dinheiro e comportava-se com toda a discrição.
Quem diria, a Regininha, hein? Eu, morando aqui perto, não estava sabendo de nada. Prostituta, a Regininha Duvivier era prostituta!
- Aconteceu, porém, que a Regininha conheceu o Ernesto Augusto numa festa. Começaram a namorar e ficaram noivos. Ele é muito rico e decidiu promover um jantar de cerimônia para apresentá-la a seus amigos e parentes. Deu-se então que um dos convidados, o banqueiro Leopoldo, reconheceu a Regininha.
- Era um dos seus clientes?
- Isso, não menos que isso. Na manhã seguinte, o noivado foi rompido.
- Motivo pelo qual decidiu ligar para mim.
- Ligou para mim também. Você não havia dito que ela era a moça capaz de fazer a felicidade de qualquer homem? Morreu sem saber que você diz isso para todas as mulheres.
- Isso não é verdade!
- Usaria você como desculpa, a de que trocara o Ernesto pelo galante Estevinho.
- Como não me deixei seduzir, ficou sem saída e decidiu matar-se.
- Por aí.
- Por que a carta me incriminando?
- Uma atitude lamentável, que ninguém conseguiu explicar. Talvez um fato policial para despistar os amigos, os parentes e a vizinhança: perder a vida, mas salvar as aparências.
Se entendi corretamente, Regininha quis me usar como noivo. Não deu. Então me usou como boi de piranha (sem trocadilho, por favor), com grande sucesso. Sacana, mil vezes sacana. Tenho decididamente cara de panaca, aliás, de pastasciutta, mas, convenhamos, meu santo é forte.
Regininha fora a minha algoz, e Pascale, sua irmã gêmea, era agora o meu consolo.
Mais que consolo, uma recompensa.
Reuni todas as forças do meu coração, abracei-a e disse as palavras mais sinceras da minha vida:
- Pascale, eu te amo!
Um comentário:
Encontros e Desencontros do Livro Hambeth e Macbeth foi muito inteligente do autor narrando ao mesmo tempo,onde descreve seus feitiches com a Regininha e Pascale,como também introduzindo, conhecimentos diversos da sua bagagem intelectual.
Indicar Cremona, perto de Milão,Bergamo e Bréscia, sonhos que todos alimentam de um dia conhecê-la com seus instrumentos musicais, onde Stradivarius nos presentiou com suas mãos de Mestre.
Narrando suas árvores genealógicas e indicando a cidade natal do autor de Aída.
Acrescentando Eça de Queirós, na Ilustre Casa de Ramires, onde Gonçalo aproveitando a situação depois sente com clareza a mesquinhez de seu caráter e de seus objetivos....(leiam o romance)
Entremeando com seus anseios:
_Como se fossem velhos parceiros, corpo num só corpo, fica a poesia inspirada no encontro e desencontro.
Encontros
clandestinos
Nas sombra da noite
Alegrias passageiras
Momento de sonho
Vividos intensamente
corpos suados
Prisioneiros da paixão.
Desencontros
de alma sentidas
Que se afastam
Culpa do destino
Capricho da razão
fica o vazio
Das promessas
Feitas de nada
Fica apenas
Na lembrança
Na recordação.
Maria das Graças.
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