sábado, 29 de outubro de 2011

CONVERSA JOGADA FORA

Enxugando gelo

Era sábado, e o correio estava fechado. Só faltava essa, pensou, atirando a carta na lata do lixo. Sentou num banco da praça, a esmo. Eu tenho o dobro da idade que tu tinhas quando eu tinha a idade que tudo tens; falta a segunda equação e, portanto, falta tudo. Quem diabo foi Bartolomeu Mitre? Visconde de Albuquerque? Ataulfo de Paiva?

- Esta praça poderia muito bem chamar-se Carlos Drummond de Andrade, ora se, mas pouca gente percebeu isso. Estou sem mulher, estou sem discurso, estou sem teogonia, hoje beijo, amanhã não beijo e segunda-feira ninguém sabe o que será.

Tinha de fazer alguma coisa, em vez de ficar ali, enxugando gelo, e decidiu caminhar até o barbeiro.

Poente do Leblon

- Godô, cabelo e barba, por favor.

- Deixa comigo, doutor.

O barbeiro, como sempre, assumiu a conversa em caráter de exclusividade, falando tudo e coisa nenhuma. Sou Flamengo, no verão as mulheres ficam mais bonitas, não tenho ido a Itaperuna, Barack Obama não é como o Bill Clinton, que não respeitava nem papagaio embriagado, os melhores chopes do Leblon são os do Bracarense, Jobi e Clipper e, na cidade, o do Bar Luís, o Ney Matogrosso, que tem tudo para não ser tão modesto, corta cabelo aqui, o João Ubaldo Ribeiro também, o Alceu Valença mora aqui na rua, mas não corta cabelo em lugar nenhum, um dia ainda saberei o que significa crise cambial, a palavra mais sugestiva que conheço é bunda, amanhã vou bater uma bola federal...

- Você joga bola aos domingos?


Jogava. Todos os domingos, disputava duas ou três partidas
no campinho da Pavuna, tomava dez latas de cerveja, comia duas horas de feijoada com muita caipirinha e dormia até a manhã de segunda-feira. Estevinho ponderou que era um hábito perigoso, bom seria consultar um cardiologista, fazer um teste ergométrico, pois os atletas de fim-de-semana muitas vezes se surpreendem, vítimas de enfarto, e podem morrer durante o jogo.

- Ora, doutor, faço isso desde os 18 anos, estou com 38, nem sei se tenho coração. Esse negócio de médico não é necessário quando o cabra é macho. Meu pai jogou até os 60 anos e mais não joga porque tem um problema no joelho.

Na saída, dei uma gorjeta generosa e ainda acrescentei, alto e bom som:


- Se fosse você, Godô, só jogaria após exame médico e autorização de um cardiologista, pois você pode morrer em pleno campo.

Trinta e Três...
Claire Danes
Havia um pouco de show-offismo nas minhas palavras, mas disse aquilo de boa fé. O Godô estava falando sem parar havia vinte minutos, e eu, absolutamente calado. Sei lá... De vez em quando é necessário falar também, interessar-se, ser solidário. Mas, diabo... Por que não interrompi quando o assunto foi Bill Clinton? Ney Matogrosso? João Ubaldo era também um tema adequado, pois gosto muito daquela do cachorro que se chamava Logoeudigo. Cachorro ou gato? Claire Danes, Jessica Biel... Mas eu decidi dar conselho, cacete.

Angústia e libertação

Na segunda-feira recebi a notícia: Godô faleceu jogando futebol, no domingo. Toda a barbearia e a Rita Ludof inteira atestaram que o barbeiro não morrera espontaneamente. Jogava desde os 18 anos e nunca tinha acontecido nada. Aí veio o tal de Estevinho e disse: você pode ter um ataque cardíaco em pleno jogo.

- Todo mundo ouviu, o Ricardinho, o Miranda, o Ernani, o Pintinho e o Zeca Torres. O Quincas não ouviu porque tinha ido à farmácia. Nossos outros clientes, o doutor Zé Moacir, o Terêncio Marques, o Antônio Maciel, todos, todos mesmo, podem confirmar: ele matou o Godô.


- Agourento de uma figa!

Mau-olhado

O Quincas garantiu que em Baependi tem um alfaiate que bota mau-olhado: se ele olha um passarinho na gaiola, o passarinho amanhece morto, não há escapatória. Se disser vai chover amanhã, sai de baixo que amanhã vem temporal, enchente, desabamento, aflição e morte. Certa vez o celerado afirmou que era certo faltar carne em Baependi, e no mesmo dia os bois de corte comeram ração envenenada e morreram.


- Gente com essa qualidade gosta de fazer o mal, e somente o mal.


- Olho vivo, seu Venâncio, olho vivo.


Seu Venâncio ficou impressionado e, para salvar o negócio, mandou vir o padre, que benzeu a barbearia e derramou água benta na cadeira do Godô. De mãos dadas, todos rezaram com redobrado fervor um Padre-Nosso e um Salve-Rainha.

Depois do episódio, Estevinho mudou de barbearia e não teve
mais coragem de passar pela Rita Ludolf. A morte de um ciclista, matar ou morrer, morte em Veneza, morte e vida severina, os vivos e os mortos, a morte passou por perto, as sete máscaras da morte, a morte do caixeiro-viajante, disque M para matar, quem matou Baby Jane?

- Eu, Estevinho Pastasciutta, matei o barbeiro.

Arrastando o peso

Foram semanas de provação. Por fora, os que tomaram conhecimento da morte do Godô o estigmatizavam como agourento e portador de mau-olhado; por dentro, pior ainda, o remorso o consumia, pois aos poucos foi aceitando que suas palavras haviam, de fato, causado aquela morte injusta e desnecessária.
Quase se mudou do Leblon, deixou de circular e passou a ler tudo o que aparecia à sua frente. Às vezes, isolado, dedicava-se a pesquisas idiotas, como a dos nomes do bairro. Cultura inútil, das redondas e consagradoras: Ataulfo de Paiva foi um grande jurista e intelectual fluminense do século XIX, que ocupou a cadeira 25 da Academia Brasileira de Letras; o general Venâncio Flores, o presidente do Uruguai que se aliou ao Brasil, na Guerra do Paraguai; o general Artigas, um militar que se tornou o grande herói da independência do Uruguai; o general Urquiza, o primeiro presidente constitucional da Argentina, empossado em 1854. Minha ambição era chegar a Aristides Espínola, talvez outro general.

- Até que um dia recebi uma carta do Terêncio Marques, um dos que assistiram à cena com o Godô. Recorrera uma vez aos meus serviços profissionais e ainda guardava o endereço do meu escritório. Era uma carta salvadora e liberatória, cujo texto jamais poderei esquecer.

Quae sera tamen

“ Você está sofrendo por um crime que não cometeu. Por ter desaparecido da barbearia e da Rita Ludolf, não tomou conhecimento da verdade, que não demorou a surgir: o Godô não morreu enfartado, mas envenenado pela mulher. A policia exigiu a autopsia, constatou o envenenamento e obteve a confissão da criminosa.”

Safava-me, assim, da refrega, com apenas alguns arranhões e ferimentos leves, após tanta angústia e aborrecimento. Viva eu cá na terra sem remorso!

Visconde de Albuquerque

- Você tem de fazer o que tem de fazer, e somente isso, dizia meu avô, o velho Lionheart Pastasciutta, que era muito chegado às tiradas acacianas e tautológicas. Portanto, nunca dê conselhos!

Ah, o Visconde de Albuquerque foi derrotado pelo Padre Feijó, na eleição nacional para Regente Único, na minoridade de D. Pedro II, em 7 de abril de 1835. Apurados os votos dos cidadãos "ativos" de todo o País, verificou-se que o paulista Diogo Antônio Feijó contara com a preferência de 2.826 votantes, contra os 2.251 que preferiram o nome do pernambucano Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Albuquerque. Feijó renunciou em dois anos, após enfrentar um grave período de agitação no País (Cabanagem, no Pará; Sabinada, na Bahia; Balaiada, no Maranhão; e Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul).

- Sábio
Lionheart!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

HARÉM DE PICKERING

MULHERES GENIAIS

Em 1877
o Observatório Astronômico de Harvard, dirigido por Edward Charles Pickering, iniciou um ambicioso programa de fotografia celeste. Decepcionado com a falta de concentração e incapacidade dos homens para dar atenção aos detalhes, Pickering acabou por convocar para auxiliá-lo na empreitada uma numerosa equipe de mulheres, que, para ele, eram mais responsáveis, pontuais e meticulosas.

Williamina Fleming

Lideradas pela escocesa Williamina Fleming, as mulheres engajadas nesse projeto formaram o que ficou conhecido como o "Harém de Pickering", encarregando-se de examinar as fotos colhidas pelos telescópios e fazer os cálculos relacionados com os dados observados.
As mulheres corresponderam plenamente à expectativa de Pickering. Duas delas, em particular, extrapolaram suas atribuições de simples computadoras de dados de estrelas e passaram a ocupar lugar de destaque na história da Astronomia: Annie Jump Cannon e Henrietta Leavitt.

Annie Jump Cannon (1863 - 1941)

Annie Jump Cannon, antes uma professora de Física, ingressou no Harém de Pickering em 1896, onde passou a catalogar cerca de 5 mil estrelas por mês, separando-as por cor, brilho e localização. Ela compensava sua surdez quase total com um extraordinário aumento do sentido da visão. De fato, seu “olho” para estrelas não foi jamais igualado e lhe permitiu examinar cerca de 400.000 estrelas, num trabalho absolutamente individual.

Annie Jump Cannon

É dela a divisão das estrelas, por massa e luminosidade, em sete classes espectrais - O, B, A, F, G, K e M - uma seqüência que gerações de astrônomos americanos desde muitos anos memorizam mediante utilização de uma célebre frase mnemônica “Oh, Be A Fine Girl - Kiss Me!”. Isso equivale a qualquer coisa como “Ó, Seja Uma Garota Bacana - Beije-Me!”.
Annie foi uma campeoníssima no quesito “primeira mulher”, pois foi a primeira mulher a receber um doutorado honorário da Universidade de Oxford, a primeira mulher a receber um título de membro da Sociedade Astronômica Americana e a primeira mulher a receber a Medalha de Ouro Draper, da Academia Americana de Ciências.

Henrietta Leavitt (1868 - 1921)

A exemplo de Annie Jump Cannon, Henrietta Leavitt era totalmente surda, o que lhe dificultava disputar oportunidades no mercado de trabalho. Em 1895 ela se ofereceu para trabalhar, sem nenhuma remuneração, no Observatório Astronômico de Harvard, onde executou tarefas simples até 1902, quando foi admitida como assessora permanente, com o salário de 30 centavos de dólar por hora.

Henrietta Leavitt

Henrietta Leavitt interessou-se por estrelas variáveis, que são estrelas que aumentam e diminuem de brilho regularmente, como a estrela de Algol, na Constelação de Perseu, por isso mesmo chamada, às vezes, de Demônio Piscante.

Perseu

Henrietta descobriu mais de 2.400 estrelas variáveis, cerca de metade do total então conhecido. Entre as estrelas variáveis, estão as Cefeidas, que variam entre brilho máximo e brilho mínimo em um intervalo de tempo constante; depois de muito pesquisar, ela fez uma descoberta revolucionária, correlacionando o brilho de uma Cefeida com o logaritmo do tempo em dias entre o brilho aparente máximo e o brilho aparente mínimo da Cefeida considerada.
Bastava determinar o período que decorre entre brilho máximo e brilho mínimo, por inspeção visual, para ter o brilho real de uma Cefeida mediante a utilização da correlação obtida por Henrietta, em contraposição ao seu brilho aparente percebido desde a Terra.

Essa descoberta permitiu aos astrônomos, a partir da década de 1920, calcular a exata distância que nos separa de qualquer estrela Cefeida e, em conseqüência, descobrir que nossa galáxia não era a única do Universo, mas apenas uma no meio de uma centena de bilhões de galáxias, pois há Cefeidas em todas as galáxias.

- São dez bilhões de trilhões de estrelas!

Homenagem tardia é melhor do que nenhuma

Henrietta Leavitt morreu de câncer em 1921, quase sem ser percebida, mas hoje muitos a consideram a “mais brilhante mulher que já passou por Harvard”. Onde, é bom repetir, trabalhou cerca de sete anos sem receber nenhum salário, assoberbada por problemas de saúde e pelas suas obrigações domésticas.
As denominações do Asteróide 5383 Leavitt e da Cratera Lunar Leavitt foram dadas em sua homenagem.


sábado, 22 de outubro de 2011

OURO NAS ESTRELAS

BOLA FORA

Nebulosa Carina
(Telescópio Hubble, 2009)


Augusto Comte (1798-1857) manifestou em seu "Curso de Filosofia Positiva", escrito entre 1830 e 1842, a opinião de que nunca seríamos capazes de estudar a estrutura química e mineralógica das estrelas. Poderíamos conhecer, se tanto, seus movimentos, distâncias e características geométricas, como volume, forma e tamanho.

- Comte subestimou a ciência.

Augusto Comte

Em 1859, dois anos após a morte de Comte, os alemães Robert Bunsen e Gustav Kirchoff inventaram um instrumento que recebeu o nome de espectroscópio, capaz de decompor a luz proveniente das estrelas nas suas cores e projetá-las numa figura característica. A cada cor corresponde um comprimento de onda, sendo a luz da estrela uma mistura de muitas cores, isto é, de suas ondas de luz individuais.

Gustav Kirchoff e Robert Bunsen

O espectroscópio faz com a luz de qualquer estrela uma decomposição parecida com a decomposição da luz do Sol pelas gotas de chuva, no tão familiar fenômeno do arco-íris.
Cada estrela tem sua luz, e portanto o seu particular espectro de luz, que depende apenas da sua composição química. Como se fosse uma impressão digital ou um código de barras, que se chama de “linhas de Fraunhofer”; basta ter as linhas de Fraunhofer da estrela para conhecer inteiramente a sua constituição química e minerológica.


- Isto é, podem ser obtidas de forma prática e até corriqueira as informações que Comte considerou fora do nosso alcance para sempre!

Joseph von Fraunhofer

As estrelas estão a distâncias espetaculares, mas sua luz é a mensagem que nos enviam sobre sua composição química detalhada. Ficamos sabemos desse modo que elas são feitas dos mesmos materiais existentes na Terra. As linhas de Fraunhofer de uma estrela também nos informam sobre sua temperatura, pressão e tamanho.
Devemos notar, porém, que a espectrografia não se presta para conhecer a composição química, nem qualquer outro dado, da Lua ou dos planetas, que são astros iluminados e sem luz própria.


Fraunhofer demonstrando o espectroscópio

Como trazer ouro das estrelas

O alemão Gustav Robert Kirchoff (1824 - 1887) destacou-se em vários segmentos da Física, sobretudo no campo da eletricidade e dos estudos energéticos relacionados com as radiações do corpo negro. Conta-se que se tornou muito popular e conhecido, pois era o cientista que procurava metais nas estrelas. Certa vez um vizinho debochado perguntou-lhe sobre a utilidade das suas pesquisas:

- De que vale procurar ouro no Sol, se você não vai conseguir trazê-lo para a Terra?


Muitas vezes laureado pelas academias científicas, Kirchoff recebeu certa vez uma medalha de ouro como prêmio por uma das suas pesquisas.

Ouro colhido nas estrelas

Consta que Kirchoff procurou o vizinho petulante para mostrar-lhe a recompensa:


- Eis aqui o ouro das estrelas!

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

SONHO DE ESPECULADOR (1/1)

De Grace Kelly a Julia Roberts

- Em menos de 24 horas?

Sou um vitorioso de Wall Street. Ninguém entende mais do que eu de ações e de Índice Filadélfia de Semicondutores, nem de Nasdaq, mercado futuro, margens, opções e derivativos. Adivinhei que a Cisco e a Juniper iriam dar a grande virada e por isso, só por isso, acabo de ganhar doze milhões e trezentos e dezessete mil dólares, em menos de 24 horas. Em menos de 24 horas, senhoras e senhores!

- Show me the money! Show me the real money!


Saio da Bolsa de Nova York e caminho, quase no automático, até o 696 da Madison Square, o restaurante Nello. Acomodo-me na mesa mais discreta, recebo um cumprimento de Grace Kelly, e peço ao maître que ofereça vinho e destilados às mesas mais próximas. Gosto de sentir a alegria do povo.

- Oferecer, como?

- Ofereça, senhor, ofereça.

- Até para Al Pacino?, indaga-me o maître, apreensivamente, mas cheio de curiosidade.

- Não sei quem é Al Pacino, respondo, mas pode servir à vontade.

Os clientes percebem que sou um ganhador. Dinheiro para esse cara é artigo abundante, como areia na praia. Enquanto uns optam pelo Lafite Rothschild 1982, outros pedem o Chateau Margaux 1995.

- São vinhos de mais de mil dólares a garrafa, observa o maître.

- Sirva a dezessete graus Celsius, por favor.

-Dezessete graus Celsius?

- Sim, equivalentes a pouco mais de 62 graus Fahrenheit.

Todos me olham perplexos e agradecidos, mas não lhes dou atenção.

- E para o senhor?

- Peito de frango grelhado, legumes na água e sal e uma garrafa de água mineral, sem gás. De sobremesa, uma fatia de mamão bem maduro. Sim, papaia, sim, sim.

Terminada a refeição, assino um cheque em branco. Acho que a Julie Delpy está flertando comigo.

- Preencha-o no valor da conta, acrescentando-lhe uma gorjeta de vinte mil dólares.

- Vinte mil dólares? Nem o Rockfeller dá gorjetas assim...

- Rockfeller, só conheci um, o John, que tinha o péssimo hábito de discutir a conta do almoço com o garçom.
O problema dele foi a Lei Shermann. Pobre John...

- Sim, senhor.

- Tenho a lei a meu lado e não me humilho com ridicularias.

Antes de sair, sou efusivamente cumprimentado por Alberto de Mônaco, que é ruim de mulher e sempre paquera por aqui, e dou um autógrafo para Julia Roberts, que, se não me engano, faz tudo por dinheiro. Menos beijar na boca...

sábado, 15 de outubro de 2011

ENTENDA O NOBEL DE FÍSICA DE 2011

Saiba, primeiro, sobre matéria escura e energia escura

Saul Perlmutter, Brian Schmiddt e Adam Riess

A matéria luminosa do Universo - que "vemos" porque emite radiação eletromagnética, a saber, luz, ondas de rádio, raios X e raios gama - é uma fração insignificante do seu conteúdo total,
este sobretudo constituído de “matéria escura” e de “energia escura”, das quais ainda se conhece muito pouco.

Matéria escura


Foi descoberta a partir de 1930, quando o astrônomo suíço Fritz Zwick notou que as galáxias do aglomerado de Coma moviam-se muito rapidamente, o que era incompatível com as leis de Newton.

- Algo estranho... A velocidade excessiva do movimento deveria desmanchar o aglomerado, declarou Zwick.

Em 1962 a astrônoma Vera Rubin observou que a Via Láctea girava tão rapidamente que, se não houvesse uma força agrupadora, deveria desintegrar-se imediatamente. Era a mesma conclusão de Zwick, mas agora em relação à nossa própria galáxia.

- Como a desintegração não ocorre, pelas leis de Newton nossa galáxia teria de ser dez vezes mais pesada do que se supõe.

A própria Vera Rubin, prosseguindo nas suas observações, percebeu o mesmo comportamento em outras onze galáxias, segundo trabalho publicado em 1978; nesse mesmo ano, o radioastrônomo holandês Albert Bosma reportou um comportamento análogo em dezenas de outras galáxias.

-Um verdadeiro paradoxo, que ficou conhecido como "the galaxy rotation problem"
, pois as galáxias estariam a girar de maneira conflitante com as leis da Física.

Vera C. Rubin

Girando muito depressa, como pode?

Para explicar essa anomalia, chegou a ser proposta uma "dinâmica newtoniana modificada" (MOND), que não prosperou. A explicação hoje aceita pelos cientistas é a de que há uma matéria invisível no entorno das galáxias, a "matéria escura", dez vezes mais pesada do que as próprias estrelas, e cuja intensa gravidade explica o comportamento acelerado de cada galáxia.

-Invisível, porque escura, e escura porque não interage com a luz.

Uma hipótese é, de fato, que a matéria escura seja formada por estrelas marrons, estrelas de nêutrons, buracos negros e outras estruturas invisíveis, constituídas de nêutrons e prótons (“matéria bariônica”), mas há os que afirmam tratar-se de neutrinos (matéria não-bariônica) muito quentes.
A matéria escura pode ser medida pela maneira por que faz curvar a luz das estrelas, como consequência da sua gravidade. Muito recentemente, foram elaborados mapas de distribuição da matéria escura no Universo, tomando por base as fotografias colhidas pelo telescópio espacial Hubble, em 1998. Segundo esses estudos, a matéria escura compõe 23 % do conteúdo total de matéria e energia do Universo.

Energia escura
Telescópio Hubble

Por outro lado, a observação distante, que permite ver os corpos celestes como eram bilhões de anos atrás, conduziu à descoberta de energia escura. Além de matéria escura, há também energia escura! De fato, o telescópio espacial Hubble, em 1998, observou as supernovas (explosões de estrelas em sua fase terminal) que existiram no Universo primordial, o que levou à descoberta de que o Universo no passado remoto se expandia menos do que atualmente.

- Ou seja, o Universo está se acelerando! Todos pensavam que estava se desacelerando!

A concepção de que o Universo estaria se desacelerando era atribuída à ação da gravidade, atuando em caráter exclusivo, com os corpos celestes a se atraírem e freiando a expansão.
Mas agora, depois de 1998, foi necessário ressuscitar a constante cosmológica de Einstein.
Conforme proposta, a constante cosmológica seria uma pressão inerente ao espaço, uma energia do vácuo, desprezável em distâncias curtas, mas significativa nas imensas distâncias do Universo, capaz de neutralizar a gravidade e de ser por esta neutralizada; por isso o Universo haveria de ser estático, como supunha Einstein, no início da discussão.

- Para Einstein, força de expansão = força de atração.

Viva a constante cosmológica!

Nos anos 1930, quando se provou que o Universo não era estático, mas que se expandia, é que se supôs que a expansão do Universo estava se desacelerando, com base nas concepções de Friedmann. Decretou-se a falência da constante cosmológica, quando Einstein declarou:

- A constante cosmológica foi o maior erro da minha vida...

Pois bem, a aceleração do Universo, como observado em 1998, traz de volta a constante cosmológica. Não como Einstein imaginou, apenas capaz de contabalançar a gravidade, mas com muito mais poder e importância: passou-se a admitir uma energia de vácuo que justifica a aceleração do Universo.


- Enfatizando: força de expansão maior que força de atração, por causa de uma constante cosmológica maior do que a sugerida por Einstein.

- Ou seja, uma volta triunfal da constante cosmológica, depois de décadas de ostracismo.

A energia da constante cosmológica, que é a energia do espaço vazio, corresponde exatamente ao que se chama de "energia escura", cuja quantidade total é proporcional ao volume do Universo.
Os cálculos dos cientistas indicam que a energia escura compõe 73 % de toda a matéria e energia do Universo.

Uma vida muito acelerada
Em resumo

(a) A matéria escura explica a velocidade de rotação das galáxias.
A matéria responde por 27 por cento do conteúdo do Universo, sendo 23 por cento de matéria escura e apenas 4 por cento de matéria convencional (matéria visível e matéria iluminada).

(b) A energia escura explica a aceleração do Universo. Responde por 73 por cento do conteúdo do Universo.


Prêmio Nobel de Física de 2011

Pelos estudos que comprovararam a aceleração do Universo pela ação da energia escura, três cientistas dividiram o Prêmio Nobel de Física de 2011: Saul Perlmutter, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley e da Universidade da Califórnia, Brian Schmidt, do Universidade Nacional Australiana, e Adam Riess, da Universidade Johns Hopkins, situada em Baltimore, Maryland.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ROSAS VERMELHAS PARA RITA HAYWORTH (parte 4/4)

Respeito Ao Leitor

O bilhete sobre a mesa era do secretário do jornal, convocando-a para uma entrevista. Agora? As coisas começavam a se complicar. Marta caminhou até o elevador com apreensão, pois nunca havia sido solicitada para uma entrevista individual com o chefe.

Que será?

Positivamente um dia estranho, atípico. Primeiro, rosas. Depois, cartas amarelas, asseverando que praga domina setor. E agora, esse encontro. Teria a ver com as rosas? Com as cartas amarelas, ou seja, com o método pouco ortodoxo de "Morangos Silvestres"?

Paradigma da modernidade

O secretário fez-lhe um pequeno relato sobre as novas diretrizes que pretendia introduzir para orientar os trabalhos da redação, tendo em vista a missão e os objetivos permantentes do jornal e a necessidade de estimular o desenvolvimento organizacional e a gestão pela qualidade total. A qualidade como fator básico de diferenciação do jornal, como paradigma da modernidade e forma de respeito ao leitor.


- Não há profissionalismo sem o mais absoluto respeito ao leitor, agora e sempre a razão de ser do jornal.

Marta não teve dúvida. Ele estava preparando o terreno para demiti-la. Com certeza tudo fora descoberto... Não conseguiu controlar-se, sentiu-se mal e quase desfaleceu, ali na frente do superior.

- Que está acontecendo?

- Nada, nada. É que eu não dormi bem esta noite.

- Tudo bem, disse o secretário, não irei incomodá-la mais. Achei que deveria colocá-la a par do nosso planejamento estratégico, antes de informar-lhe o motivo da entrevista. A senhora merece toda a consideração do jornal. Mandei chamá-la para comunicar-lhe, pessoalmente, que o conselho de administração aprovou um aumento de cem por cento nos seus vencimentos, depois de considerada, em todas as avaliações, como a melhor colaboradora do jornal neste semestre. Aliás, a promoção sobre "Morangos Silvestres" foi nossa principal iniciativa em todo o ano. A senhora será apontada pela administração como exemplo a ser seguido por todos que trabalham no jornal. Meus parabéns, meus parabéns!

Marta dirigiu-se apressadamente para sua mesa. Ao invés de alegre, estava triste. Não era para menos, pois quase desmaiara na frente do executivo número um do jornal, no momento em que recebia a notícia mais importante da sua vida profissional. Um vexame. Tudo por causa dessas malditas cartas amarelas.

A mesma pessoa

Demóstenes a aguardava.

- "Praga Domina Setor" é um anagrama de "A Grande Impostora".

- A grande impostora? E "Heli Dutra Visconsi"?

-
"Heli Dutra Visconsi", outro anagrama, corresponde ao nome russo "Issur Danielovitch".

Issur Danielovitch! A grande impostora! Deus, meu Deus... Muito interessante, meu Deus, muito interessante. Issur Danielovitch era o nome civil de Kirk Douglas, autoproclamado judeu russo de Nova York. Ou seja, as rosas vermelhas, de Kirk Douglas, e as cartas amarelas, de Heli Dutra Visconsi, haviam sido enviadas pela mesma pessoa. Essa pessoa sabia que ela era uma grande impostora, não a melhor empregada do jornal.

Inesquecível

Voltou, mais forte, o descontrole, e Marta começou a chorar convulsivamente, sem notar a gente que aos poucos foi se reunindo discretamente a seu redor.

- Por que chora a nossa Rita Hayworth?

- De alegria, pois acabou de receber um generoso aumento de salário, em razão de uma avaliação superior pelo conselho de administração.

Deu-se então que Jorginho Estafa, o rapaz boa praça que distribuía a correspondência, puxou as primeiras palmas. O redator de economia cessou o "Veste la giubba" e bateu palmas também. Seguiram-se as adesões da Tatiana, do produtor de eventos musicais, da Maizé e do Armando Rozário. Ah, não esquecer Maria Thereza Noronha, poeta maior. Em poucos segundos, toda a redação aplaudia, com entusiasmo emocionado, a moça de vestido azul, que chorava abraçada àquelas maravilhosas rosas vermelhas e era digna de todos os aplausos. Um dia simplesmente inesquecível.
(fim)

sábado, 8 de outubro de 2011

ROSAS VERMELHAS PARA RITA HAYWORTH (parte 3/4)

Mentir, se necessário

Marta espreguiçou, deixando-se alongar suave e demoradamente, disposta a não acusar o golpe, nem permitir-se nenhum constrangimento ou remorso. "Morangos Silvestres"... O concurso, que tinha sido uma iniciativa secundária e despretensiosa, inesperadamente atraíra 1.300 concorrentes, rendendo um material de duas mil páginas. Três vezes o"Dom Quixote", cuja leitura vinha adiando havia dez anos. Considerava as críticas de cinema, as dos outros, um exercício de chatice e alienação. Que dizer então de mil e tantas críticas, amadoras, sobre um único filme? Por que, meu Deus, tanta gente se considerava habilitada a criticar Bergman? Uma idéia infeliz, esse concurso!

Calhamaço

Sortear uma das cartas e publicá-la, fosse qual fosse, fora a alternativa viável, sensata, porque indolor e absolutamente inofensiva.
E equânime, é bom acrescentar.
Embora, verdade seja dita, um prêmio estivesse em causa...
Marta, a carta amarela nas mãos, invocou Maquiavel, Richelieu e Cícero, essa gente que, bem usada, defende-nos de mordimentos e inquietações.

Richelieu

A mentira essencial, onde o erro?
É permitido mentir, se necessário, pois devemos fazer tudo que for ditado pela necessidade, não importa se a ação é iníqua ou virtuosa. A carta amarela, desse Heli Dutra Visconsi, era um libelo incompetente, e inútil, que nada significava em face de milhares de leitores que, não tendo se manifestado, concordaram com o desfecho da promoção. Não gostou do resultado? Paciência...Leitores calados, agora e sempre os bons leitores.
Olhou para o envelope e examinou novamente o texto. Nenhum endereço. Marta atirou a carta impertinente na lata do lixo. O problema saía do seu âmbito e passava à jurisdição da Comlurb...

- Mas que diabo seria "Praga Domina Setor?"

Apertou contra o peito as rosas vermelhas. Não se incomodava de ser a Rita Hayworth da redação. Se a turma do esporte tivesse perguntado sobre "O Mágico de Oz", teria se tornado a Judy Garland. "Se Viva Zapata!", um Marlon Brando... de saias?


Exercício de Permutações

Jorginho Estafa, que, de tão apressado, nem reparou naquelas rosas, depôs sobre a mesa outro envelope amarelo. Abriu-o, nervosa, e leu:

"Praga Domina Setor.
Atenciosamente,
Heli Dutra Visconsi"

Outra vez? Ainda bem que o dia começara com as rosas gentis, pois duas cartas amarelas azedam o humor de qualquer um. Foi à lista telefônica e procurou por Heli Dutra Visconsi. Encontrou Visconte e Visconti, muitos, muitos, mas nenhum Visconsi. Esse Heli Dutra Visconsi não existia, isso mesmo, não existia. Existia, porém, uma pessoa que usara esse nome. Duas vezes. Pensou em ameaças codificadas, criptogramas. Cheia de temor, foi à lata do lixo, recolheu a primeira carta e guardou-a na bolsa.
Especialista em logogrifos e rébus, Demóstenes era responsável pelas palavras cruzadas e quebra-cabeças do jornal. Marta procurou-o, lá no fundo da redação. Queria decifrar "Praga Domina Setor" e "Heli Dutra Visconsi", mas não explicou a origem dos enigmas, nem o porquê da sua inquietação.

Demóstenes, a cara epentética e apocopada de charada novíssima, começou imediatamente seu exercício de permutações, com aquela indefectível certeza de que podia decifrar todo e qualquer enigma que envolvesse combinação de letras e conceitos presentes nos dicionários.
(continua)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

ROSAS VERMELHAS PARA RITA HAYWORTH (parte 2/4)

NEM TUDO SÃO FLORES

O prestígio de Marta rapidamente ultrapassou as fronteiras da redação, pois logo se espalhou que ela sabia tudo de cinema e da vida dos astros, de Greta Garbo a Al Pacino e de Clark Gable a Grace Kelly. Que podia falar sobre os carros verdes de Darryl Zanuck, as farras de Orson Welles e Grande Othelo, os filmes americanos que tiveram música de Ari Barroso, o orçamento de "Quando Voam as Cegonhas", de Michel Kalazotov. Todos a ouviam sobre as dificuldades d
e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e os percalços de "Casablanca" ou como Stanley Cramer, que produziu "Matar ou Morrer", tornou-se o produtor que dirigia diretores.

Prestígio gera prestígio. Por mais esdrúxulo que possa parecer, representantes do prefeito procuraram-na para saber das preferências sexuais de Anthony Quinn, que seria o convidado especial do Carnaval. Nenhuma oportunidade para o inesperado, ou seja, risco zero. Quem não se lembrava do episódio da bela Ilka Soares, humilhada, ao lado de Rock Hudson?
Marta explicou-lhes que o caso de Anthony Quinn era diferente, citando seus romances com Maureen O´Hara, Susan Ball, Irene Papas, Ingrid Bergman, Pia Lindstrom e Estelle Taylor, a mulher de Jack Dempsey, este, o temido campeão mundial dos pesos-pesados, sim, senhor.

- Mas Ingrid Bergman não era a mãe de Pia Lindstrom?

- Exatamente. Elas faziam uma espécie de revezamento no leito do mexicano...



Marta, que fora contratada para trabalhar na internacional porque sabia inglês, era agora a responsável no jornal por tudo que se referisse a cinema. Cinema, a paixão assumida desde que vira "Ladrões de Bicicletas", não uma, mas vinte vezes. Vinte vezes chorara na cena da cartomante.

- Se non la trova subito, non la trova più.

O êxtase incontido diante de filmes como "Amarcord", "No Tempo das Diligências", "Milagre em Milão", "O Salário do Medo", "A Um Passo da Eternidade", "Sindicato dos Ladrões", "As Grandes Manobras", "Oito e Meio", "O Ano Passado em Marienbad", "A Grande Ilusão"... A irresistível compulsão de só estudar cinema, o mestrado na Califórnia, as biografias de tantos astros lidas na vigília impossível, as pesquisas sobre os divórcios escandalosos de Hollywood, tudo isso lhe valia agora, pois trabalhava cheia de alegria, ganhava bem e era admirada pelo que fazia.

Não que estivesse perfeitamente adaptada à redação, que isso não era essencial, nem possível, a bem da verdade. Pois ali acontecia de tudo, tudo mesmo, até comércio de importados, exibição de cães amestrados e campeonato de pingue-pongue. Como esquecer do redator pedante que lia sua crônica de inutilidades em voz alta, todos a ouvi-lo, como se tivesse produzido um sermão de Vieira ou um soneto de Camões? E o caso do Presidente, que recebeu tapinhas nas costas e foi constrangido a comprar rifa de radinho de pilha, ou, ainda, a inacreditável desfaçatez do Porfírio, repórter policial e assaltante de bancos, que um dia apareceu com uma mala transbordando de dinheiro e pediu demissão, alegando circunstâncias extraordinárias?
Claro, havia também pequenas e adoráveis gentilezas, o encanto de trabalhar com pessoas solidárias e gentis.
Capazes de rosas vermelhas, que, lindas, falavam diretamente ao seu coração.

- Valeu, redação, valeu muito. Vocês são muito lisonjeiros, e as rosas, maravilhosas. Um dia me explicarão como souberam que eu hoje estaria vestida de azul.


Cartas amarelas


Jorginho Estafa vivia apregoando que Marta só não recebia mais correspondência do que a seção de "Cartas dos Leitores". Pré-estréias, ingressos para festivais, convites, conferências, mesas-redondas, roteiros, tentativas de roteiros, congratulações, sugestões. No meio de tudo, quase junto das rosas, estava a carta amarela, protestando sobre o resultado de "Morangos Silvestres":

"Você deu um tratamento pífio à promoção, premiando alguém que entendeu muito pouco do filme de Bergman. Um amontoado de tolices, disparates, ridicularias e afirmações absolutamente desconexas. O leitor premiado deve ter visto as Mil e Uma Noites, de Pasolini, quem sabe o Mandarim, e não Morangos Silvestres. Praga domina setor.

Atenciosamente,

Heli Dutra Visconsi."
(continua)

sábado, 1 de outubro de 2011

ROSAS VERMELHAS PARA RITA HAYWORTH (parte 1/4)

Pequenas gentilezas

Naquele dia inesquecível, Marta Preghiera Gonçalves encontrou sobre a mesa de trabalho um arranjo de rosas vermelhas, com o cartão misterioso:

"Você está mais Rita Hayworth do que nunca, e nupcial, nesse maravilhoso vestido azul. Kirk Douglas"

Rita Hayworth, nupcial, vestido azul, Kirk Douglas... Mais uma brincadeira, pensou, pois a redação é pródiga em pequenas surpresas de autoria absolutamente inalcançável. Ou será alguém preparando alguma proposta...decente? Em torno, o pauteiro, de bermudas e suspensórios, a velhota especializada em acompanhamento de licitações públicas, a editora de moda e o redator de economia, que vivia da inflação e só trabalhava cantando, ou alguma ópera de Verdi ou as estagiárias do jornal. Bem no centro da redação, a querida e encantadora Maizé, responsável pela diagramação, e o Armando Rozário, circunspecto, com suas fotografias carregadas de emoção.

Rita Hayworth
Casamentos oficiais, vestido azul. Todos sabiam que, dos amantes, Kirk Douglas era um dos escassos sobreviventes, mas não se lembrava de haver mencionado na redação o vestido azul dos casamentos com Orson Welles e Aly Khan.

Kirk Douglas

Um leito compartilhado por estrelas, Joan Crawford, Rita Hayworth, Marilyn Monroe, Gene Tierney, Pier Angeli, Anne Buydens. Imaginou-se escorraçando Anne Buydens e convocando Michael, Eric, Joel e Peter para conhecer as novas regras na mansão da Califórnia. E administrando, com mão de ferro, os 200 milhões de dólares que o velho Kirk, o filho do trapeiro, ganhou como proprietário do roteiro de "Um Estranho no Ninho".
O lado ruim da fantasia era o Kirk Douglas Preghiera Gonçalves já ter ultrapassado os 80 anos, que a perfeição definitivamente não existe.

- Tenho cara de viúva lacrimosa, encarregada de destruir o marcapasso e recolher as cinzas?

A redação

Contemplou mais uma vez as rosas magníficas e pensou, com palavras de Rubem Braga: um belo gesto da terra. Estava no melhor momento de sua vida, uma trajetória que começou com o trabalho do jornal sobre Heleno de Freitas, o elegante, eficiente e temperamental centroavante alvinegro, que os adversários, despeitados, apelidaram de "Gilda". O pessoal do futebol precisava de informações sobre Rita Hayworth, e ela, caloura na redação, afirmou que poderia ajudar. Foram dois dias respondendo na editoria de esportes que Edward Judson, o primeiro marido, oferecia Rita Hayworth de bandeja aos executivos de Hollywood; que ela teve 18 amantes, ou 19, se houver a decisão de dar crédito ao soi-disant Jorginho Guinle; que, tendo ficado decrépita, aos 56 anos não se lembrava de "Sangue e Areia", nem de "Gilda", "Salomé" e "Madame Xangai". Enfim, todos aqueles pormenores, que tanto enriqueceram a matéria esportiva.
Saiu do episódio com o apelido de Rita Hayworth e, melhor, transferida da internacional para a editoria de cinema.

Os Vivos e os Mortos

Logo depois, outra sorte, o seminário sobre John Huston, na PUC. Marta, lá da platéia, socorreu o palestrante e citou a parte final do roteiro de "Os Mortos e os Vivos", filme baseado num conto dublinense de James Joyce:

- Gabriel olhava a neve cair suave através do Universo, cair brandamente sobre todos os vivos e todos os mortos, como se lhes descesse a hora final.

Essa intervenção ocasional e despretensiosa rendeu-lhe um elogio público de Anselmo Duarte e referências abonadoras em textos de Hector Babenco e Rubens Ewald Filho.
(continua)