quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ROSAS VERMELHAS PARA RITA HAYWORTH (parte 4/4)

Respeito Ao Leitor

O bilhete sobre a mesa era do secretário do jornal, convocando-a para uma entrevista. Agora? As coisas começavam a se complicar. Marta caminhou até o elevador com apreensão, pois nunca havia sido solicitada para uma entrevista individual com o chefe.

Que será?

Positivamente um dia estranho, atípico. Primeiro, rosas. Depois, cartas amarelas, asseverando que praga domina setor. E agora, esse encontro. Teria a ver com as rosas? Com as cartas amarelas, ou seja, com o método pouco ortodoxo de "Morangos Silvestres"?

Paradigma da modernidade

O secretário fez-lhe um pequeno relato sobre as novas diretrizes que pretendia introduzir para orientar os trabalhos da redação, tendo em vista a missão e os objetivos permantentes do jornal e a necessidade de estimular o desenvolvimento organizacional e a gestão pela qualidade total. A qualidade como fator básico de diferenciação do jornal, como paradigma da modernidade e forma de respeito ao leitor.


- Não há profissionalismo sem o mais absoluto respeito ao leitor, agora e sempre a razão de ser do jornal.

Marta não teve dúvida. Ele estava preparando o terreno para demiti-la. Com certeza tudo fora descoberto... Não conseguiu controlar-se, sentiu-se mal e quase desfaleceu, ali na frente do superior.

- Que está acontecendo?

- Nada, nada. É que eu não dormi bem esta noite.

- Tudo bem, disse o secretário, não irei incomodá-la mais. Achei que deveria colocá-la a par do nosso planejamento estratégico, antes de informar-lhe o motivo da entrevista. A senhora merece toda a consideração do jornal. Mandei chamá-la para comunicar-lhe, pessoalmente, que o conselho de administração aprovou um aumento de cem por cento nos seus vencimentos, depois de considerada, em todas as avaliações, como a melhor colaboradora do jornal neste semestre. Aliás, a promoção sobre "Morangos Silvestres" foi nossa principal iniciativa em todo o ano. A senhora será apontada pela administração como exemplo a ser seguido por todos que trabalham no jornal. Meus parabéns, meus parabéns!

Marta dirigiu-se apressadamente para sua mesa. Ao invés de alegre, estava triste. Não era para menos, pois quase desmaiara na frente do executivo número um do jornal, no momento em que recebia a notícia mais importante da sua vida profissional. Um vexame. Tudo por causa dessas malditas cartas amarelas.

A mesma pessoa

Demóstenes a aguardava.

- "Praga Domina Setor" é um anagrama de "A Grande Impostora".

- A grande impostora? E "Heli Dutra Visconsi"?

-
"Heli Dutra Visconsi", outro anagrama, corresponde ao nome russo "Issur Danielovitch".

Issur Danielovitch! A grande impostora! Deus, meu Deus... Muito interessante, meu Deus, muito interessante. Issur Danielovitch era o nome civil de Kirk Douglas, autoproclamado judeu russo de Nova York. Ou seja, as rosas vermelhas, de Kirk Douglas, e as cartas amarelas, de Heli Dutra Visconsi, haviam sido enviadas pela mesma pessoa. Essa pessoa sabia que ela era uma grande impostora, não a melhor empregada do jornal.

Inesquecível

Voltou, mais forte, o descontrole, e Marta começou a chorar convulsivamente, sem notar a gente que aos poucos foi se reunindo discretamente a seu redor.

- Por que chora a nossa Rita Hayworth?

- De alegria, pois acabou de receber um generoso aumento de salário, em razão de uma avaliação superior pelo conselho de administração.

Deu-se então que Jorginho Estafa, o rapaz boa praça que distribuía a correspondência, puxou as primeiras palmas. O redator de economia cessou o "Veste la giubba" e bateu palmas também. Seguiram-se as adesões da Tatiana, do produtor de eventos musicais, da Maizé e do Armando Rozário. Ah, não esquecer Maria Thereza Noronha, poeta maior. Em poucos segundos, toda a redação aplaudia, com entusiasmo emocionado, a moça de vestido azul, que chorava abraçada àquelas maravilhosas rosas vermelhas e era digna de todos os aplausos. Um dia simplesmente inesquecível.
(fim)

Um comentário:

Ivo Korytowski disse...

Sou fã de Maria Thereza Noronha e faço de tudo para divulgá-la (você pode me ajudar)! Uma coletânea de poemas geniais dela:

Poemas de Maria Thereza Noronha

Cores

A dama em preto e branco nos cinzentos
domingos. A amarelinha nos azuis.
Papagaios carmim rosa magenta
levantados no céu, braços em cruz.

Verdes anos. Do rio as pardacentas
águas acalentavam corpos nus.
Mexericas e ameixas cismarentas
ao pôr-do-sol filtravam ouro e luz.

Da imprensa marrom não se sabia.
Laranja, só a fruta merecia
o nome. Na inocência iam as horas.

O bispo em sua roupa solferino.
Nos dedos andarilhos dos meninos
o roxo corrompido das amoras.

Do livro O verso implume

O profeta

Chegou sem deixar claro porque vinha.
Viveu ao Deus-dará, lírio do campo
coberto de esplendor, como convinha
a um servo de Deus. Um pirilampo

alumiava suas noites pardas.
Dizia-lhe bom-dia um rouxinol.
Algum lampejo em sua face tarda
à visão de uma garça ou um girassol.

Alimentou-se de ervas e raízes.
Não teceu nem fiou. Tentado, acaso,
rechaçou o demônio e seus matizes.

Partiu como chegou, ao fim do prazo.
E, por anos de vida tão felizes,
lavrou o seu recado em ferro e brasa.

Do livro A face dissonante

Luz e treva

Assim, ensolarado, o dia nasce
na lânguida mangueira. E a sebe ébria
de verde, em breve, reverbera. A face
da natureza é um solo que a celebra

em sonatas de luz. Embriagados,
os brincos-de-princesa, os brancos cardos
parecem levitar. E abreviados
sejam nossos suspiros nessas tardes.

Assim, ensimesmada, a noite túrgida
em sua negra túnica, ressurge
e, em trevas, entretece o brusco manto.

E encobre o trevo, a trova, o torvelinho
do trêfego pomar, e o desalinho
de nosso destramado e urgente canto.

Do livro A face dissonante

Imponderável

De onde tira a poesia sua lâmpada?
Onde lapida a pedra em que germina
o caroço da amêndoa, a casca fina
de cerejas colhidas numa estampa?

Como se torna o ímpeto na lânguida
maçã a se ofertar em purpurina
e seda, aos olhos presos na retina
desatados em asas de lavanda?

Como nasce do pântano a serena
flor, da náusea o canto, do ódio a pena
e da lâmina o corte sem vestígio

de sangue? E a rosa incerta na mandala
faz-se nítida à mão que a despetala
ou é a mão que a inventa, num prodígio?

Do livro Poesia em três tempos

Cruzadas

Cruzei palavras com o vento.
Suspiros e folhas secas
vieram na horizontal
desinências, dissonâncias
na vertical
sussurros e amendoeiras
sopraram em diagonal
anáforas e amor-perfeito
na transversal.

Cruzei palavras com o vento.
Vieram textos canônicos
na vertical
pássaros brancos em bando
na horizontal
sonetos camonianos
no original
e sapos bandeirianos
no Carnaval.

Cruzei palavras com o vento.
Cartas Chilenas chegaram
na horizontal
Castroalvinas flutuantes
espumas na vertical
sermões de Padre Vieira
no areal
Machado de Assis é Aires
no memorial.

Com o vento cruzei palavras.
Vieram folhas em branco
na vertical
vagas estrelas da Ursa
na horizontal
a roca sem fuso ou uso
no vendaval
e um poema esfacelado
na marginal.

Do livro Poesia em três tempos

No Tempo em Que a Canção



A música eletrônica me faz nervosa e insone
centopéia no ar gritando com cem pernas
queria envelhecer ao som do gramofone
no tempo em que a canção era abafada e terna.

O tempo onde o mocinho vencia o bandido
e a vida em preto e branco alternava mistérios
vivia-se e ninguém falava ao telefone
e o pai levava o filho a ver o trem de ferro.

Vivia-se e ninguém falava em Microsoft
e a vida, delicada, punha os pés na terra
queria envelhecer ao som de um foxtrote
no tempo em que a canção era abafada e terna.

Do livro O verso implume



Maria Thereza Noronha, mineira de Juiz de Fora, considerada por Ivan Proença "uma das melhores poetas do Brasil-hoje". Formou-se em Direito pela UFJF e trabalhou como advogada no BNH e Caixa Econômica Federal. Participou do Grupo Edições de Minas, de poetas de Juiz de Fora. É aluna da Oficina Literária Ivan Proença. Livros: A Face na água (edição da autora, 1990), Pedra de limiar (Edições de Minas, 1993), A Face Dissonante (Oficina do Livro, 1995), "Alaúde", parte do livro Poesia em três tempos (Editora Bom Texto, 2001), O verso implume (Oficina do Livro, 2005 - a ser lançado em 17 de maio próximo, a partir das 19 horas, na Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro). Reside no Rio de Janeiro, aposentada.