Pelo calçadão do Leblon
Sei apenas que preciso estudar mais, porque essa coisa de só saber Física inferioriza e dificulta minha vida perante as pessoas. Meu só caminho é padecer sobre os livros, de todos os assuntos, devorando-os, em vez de ficar prevaricando ou malbaratando meu ócio por aí.
Foi o que pensei quando conheci May, e decidimos caminhar pelo calçadão do Leblon. Ela é egiptóloga, eu que nem desconfiava da existência dessa atividade.
- E você, Carlinhos, qual a sua profissão?
- Engenheiro malsucedido, pois abandonei o ofício e decidi fazer um doutorado de Física. Engenharia é profissão corriqueira e até meio óbvia. Mas, egiptóloga, que faz exatamente uma egiptóloga?
- Bem, atualmente estou envolvida num projeto internacional relacionado com o faraó Tutancâmon, do século XIV a. C., coordenado pelo Museu de Ciência de Londres. Sua tumba, descoberta em 1922, em Tebas, no Vale dos Reis, continha uma quantidade extraordinária de joias e é considerada um dos maiores tesouros arqueológicos de todos os tempos.
- Museu de Ciência, lá em Londres?
Perguntei o que ela já me informara, nada menos edificante. Fazer o quê, dizer o quê? Tinha até me esquecido que existiu alguém chamado Tutancâmon, e essa palavra não escutava havia bem uns vinte anos. E, se me lembro, o que o meu professor de História dizia era "Tutancamôn", e não "Tutancâmon".
- Estamos reconstituindo a verdadeira face de Tutancâmon, que não tinha os lábios grossos e o rosto triangular sugerido pela máscara mortuária que se encontra reproduzida nos livros de História. Na verdade seus lábios eram finos, dentro de um rosto largo, que, além do mais, se caracterizava por sobrancelhas grossas e olhos pequenos.
- A reconstituição facial de uma pessoa que morreu há tanto tempo há de ser muito complicada, observei, fazendo força para não ficar calado todo o tempo.
- Morreu há 34 séculos. Posso dizer que envolve técnicas de raios X, processos e efeitos especiais e programas de computador, capazes de compatibilizar a face que se quer reconstituir com os ossos do crânio encontrados no sarcófago.
- Muito interessante.
- Suspeita-se que tenha recebido um violento golpe na cervical enquanto dormia. A ferida não lhe causou a morte de imediato, e sua agonia se prolongou durante dois meses de terrível sofrimento.
- Onde você entra, nessa história, como egiptóloga?
- Tudo que faço é colaborar com informações históricas, pois não sou habilitada nessas técnicas de reconstituição facial. Por exemplo, houve certa vez uma discussão sobre a idade com que morreu Tutancâmon, e fui chamada a dar a minha opinião.
- Com que idade ele morreu?
- Para mim, morreu quando tinha 18 anos, mas esse não é um ponto completamente decidido. Subiu ao trono com nove anos, sendo conhecido como o faraó-menino.
- Os egípicios eram precoces...
- Eram, de fato. Cleópatra chegou ao poder com apenas 18 anos. Isso cerca de 1.400 anos depois de Tutancâmon .
- Só sei que Cleópatra gostava de seduzir imperadores romanos, como César e Marco Antônio. Mais não sei dizer, nem vi aqueles filmes apoteóticos...
- Cleópatra foi muito mais do que uma colecionadora de maridos ou uma mulher sedutora num filme do Cecil B. de Mile. Para além de se destacar pela sua beleza, falava vários idiomas e patrocinava as artes e as ciências. Lembre-se de que governava o Egito a partir de Alexandria, capital cultural da Antiguidade...
- Portanto, uma senhora rainha.
- Ela era filha de tios, veja você.
- Filha de tios? Pode isso?
- Cleópatra era filha de Ptolomeu Aulete e Cleópatra Trifena, que eram irmãos. Ptolomeu Aulete era pai de Cleópatra, mas seu tio, por parte de mãe; Cleópatra Trifena era sua mãe, mas também tia, por parte de pai. Filha dos tios, portanto.
- Assim não vale!
- Vale, sim, pois ela própria se casou com dois de seus irmãos mais jovens. Um de cada vez, bem entendido.
- Uma promiscuidade familiar.
- E real.
Ela, culta e bonita, egiptóloga, veja só! E eu, idiota que sou, pagando o preço de não poder contribuir para o assunto e, mais ainda, concorrendo decisivamente para a banalização dos diálogos: “muito interessante”, “os egípcios eram precoces” "uma senhora rainha" e “com que idade ele morreu?”
- Os filmes do Cecil B. de Mile, a minha eterna subcultura!
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
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