A partir da palavra “SALMO”, Estevinho queria chegar à palavra “LINHA”, transitando por palavras intermediárias, cada uma diferindo da anterior por uma letra, e somente uma. Verbos, melhor não... Pensou depois nas questões indecidíveis, que não admitem solução. Numa pequena cidade, o único barbeiro barbeia todas as pessoas que não se barbeiam a si mesmas, e apenas estas. Quem barbeia o barbeiro? Jamais me associaria a um clube que tivesse a insensatez de me aceitar como sócio. O cretense Epimênides afirmou que todos os cretenses são mentirosos. Está na Bíblia...
- Garçom, mais um black and white. Oito anos, por favor.
Sentiu a mão no ombro. Era a moça de preto.
- Posso sentar? - Por favor.
- Peço que não estranhe a ousadia. Estava a observá-lo e senti uma vontade irresistível de conversar com você.
- Não seja por isso. Muito prazer em conhecê-la.
- Não sei, não, mas você me parece muito angustiado. - Estou pensando no paradoxo do mentiroso e curtindo um pouco a solidão.
- Solidão cheia de manias: “garçom, mais um black and white. Oito anos.” Nunca vi black and white que não fosse oito anos... - Nem eu. Mas não gosto de correr nenhum risco...
- Muito engraçado!
Pascale. Olhou-a atentamente. Era olhos e boca, como uma mulher de Manuel Bandeira. Quem sabe francesa? Há francesas que abordam homens nos bares, falam Português e tomam banho. Aos 34 anos, Estevinho vivera todas as situações: casara-se, desquitara-se, casara-se novamente, divorciara-se, juntara-se algumas vezes. Mulheres que partiam, mulheres que chegavam. Algumas, de férias, por prazo definido, ou, como dizia, mulheres dia três, que vão embora no dia quatro, para Porto Alegre, Munique, Juiz de Fora, Florença, Houston ou Além Paraíba. Pois é necessário retornar ao trabalho ou aos braços de um noivo impaciente e cheio de saudade.
- Aceita um uísque?
- Só se for oito anos...
Na cama
Um homem e uma mulher que tomam uísque juntos, no Leblon, são cúmplices de um ideal inexorável: a cama. Quanta obra-prima existe, livros, filmes, peças e canções, sobre mesas, pianos, luvas, colares, retratos e outros variados objetos, usados como metáfora do amor ou de sua ausência. Há um texto de Rubem Braga exaltando o guarda-chuva. Sobre cama, todavia, tudo que Estevinho conhecia era a história de um homem traído, que, ao separar-se da mulher, doou-lhe tudo, absolutamente tudo, menos a cama. Pois se a cama fosse com ela, além da mulher, teria perdido a própria alma. Pois é, minha pátria é minha cama, pensou Estevinho, quando viu Pascale, deitada a seu lado. Nua assim, deitada assim, magnífica assim. Simplesmente deslumbrante! Uma mulher bonita começa pelos olhos, continua nos lábios, alteia-se em montes soberbos, estende-se por vales insondáveis e acaba... não acaba não, isso mesmo, uma mulher bonita não acaba nunca. A mulher é a perfeição. Se Aristóteles não disse isso, eis uma imperdoável omissão de Aristóteles.
Volúpia, entrega, prazer, apoteose à primeira potência, apoteoses ao quadrado, apoteoses ao infinito, eis o enredo do amor, que é a melhor das capacidades humanas. Um instante de amor, Estevinho, vale por uma boa eternidade.
Dia três
Muito esperta, a Pascale. Não levou nem cinco minutos para sair de ”SALMO” e chegar a “LINHA”:
SALMO, PALMO, PALMA, PALHA, PILHA, PINHA, LINHA
Pois é, como sempre, mulher dia três: Pascale é casada, muito bem casada, e professora de História da Filosofia numa importante universidade francesa.
Fazer o quê, Estevinho?
Um comentário:
Deixando para outras pessoas comentarem, despeço-me do autor, com um abraço da conterrânea.
Até qualquer dia desses onde futuramente novas linhas serão traçadas.
Maria das Graças.
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