quinta-feira, 24 de abril de 2008

O BOBO DA CORTE

A capivara
Tutu generoso e fecundo

- Digamos que você venda uma quantidade de ações da Petrobras por 100, para entregar no futuro; depois, a ação caindo, você recompra igual quantidade, por 40, por exemplo; como você vendeu e comprou a mesma posição, não precisa entregar nada. Um jogo, de créditos e débitos, onde não entram ações, que estas não interessam, mas apenas suas cotações. Mas há um troco de 60, entendeu? O qual é tutu generoso e fecundo no bolso da criança!

- Mas as ações da Petrobras vão cair?

- Sem nenhuma dúvida, Yorick, pois sei de fonte limpa que o balanço anual, no fim do mês, virá muito aquém da expectativa do mercado. Balanço ruim, as cotações correrão para baixo, uma tacada de mestre!

Faturando com a queda

Yorick não tinha nenhuma familiaridade com esses torneios vitoriosos da Bolsa de Valores, mas compreendeu a operação. Ouvira falar vagamente de mercado futuro e de gente que ganhou fortunas com esse tipo de especulação e acabou admitindo que aquela era a sua vez. Se tinha uma informação privilegiada, era usá-la para ganhar também.

- Anche io sono un figlio di Dio, pensou ele, assim mesmo, em italiano.

Procurou uma corretora de valores e negociou os maiores lotes que lhe permitiam seus recursos, pois, se tinha de entrar, que fosse de maneira decisiva. Ganhar o dinheiro da sua vida. Reuniu todas as suas disponibilidades, além de recorrer a empréstimos bancários, para fazer a margem, que era a garantia exigida na operação.

Restou-lhe, depois, aguardar, e Yorick foi acompanhando, ansioso, a evolução do mercado pelos jornais. As ações da Petrobras, como previsto, começaram a cair devagarinho, que a informação subreptícia vai se alastrando, insidiosa, de modo que os avisados vão se livrando do papel. Se há muita oferta, os preços desabam, eis uma lei presente em todos os mercados.
So far, so good, pensou Yorick, satisfeito. Quando afinal o balanço fosse publicado e a desvalorização chegasse ao máximo, recompraria os lotes vendidos, auferindo o lucro da sua vida.

Geometria e capivaras

A geometria, que é anterior ao homem, não falha, não falha não, tanto que o quadrado da hipotenusa é uma soma de dois quadrados em todas as situações, antes do Big Bang, na época de Empédocles de Agrigento, nos dias atuais e eternidade adentro. Não há nenhuma hipotenusa, por mais feia, infeliz ou desfavorecida, que não tenha essa propriedade. Por quê? Porque a geometria garantidamente não falha!

- E o resto?

- Bem, o resto é o resto, como a capivara.

Nenhuma garantia

Pois é, o inesperado aconteceu. Uma semana antes do balanço, veio o anúncio precipitado da descoberta na Bacia de Campos, triplicando as reservas nacionais de petróleo. As ações da Petrobras, ao invés de cair, dispararam na Bolsa de São Paulo, tanto quanto em Wall Street e Buenos Aires. Nunca tinha havido uma escalada tão espetacular nas cotações do papel. Ou seja, no caso do Yorick a tacada funcionou ao contrário. Viu-se obrigado a recomprar os lotes comprometidos pelo dobro do crédito gerado na operação, realizando, no frigir dos ovos, um prejuízo de 102,5 por cento, para zerar sua posição. Por isso tinham exigido todas aquelas garantias! Perdeu na empreitada tudo o que possuía e retirou-se para uma cidadezinha do Espírito Santo, onde sobrevive vendendo sanduíches de lingüiça, à porta do estádio de futebol.

Yorick
- Sou Yorick, o bobo da corte.
(fim)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

EM BUSCA DO PETRÓLEO (parte 4/4)

Uma pequena odisséia

Com o passar do tempo, a Legião Estrangeira já não se excitava, nem era movida a grandes esperanças, quando tinha de se deslocar para avaliar novas descobertas, tantas haviam sido as decepções nos testes anteriores. Até que houve a descoberta de Caranguejinho.

- Vamos lá para cumprir tabela, arriscou alguém.

Só que dessa fez foi diferente. Montada a engenhoca da avaliação no poço descobridor, Caranguejinho 1, houve produção de óleo surgente, à razão de 300 barris por dia. O Labra constatou, no decorrer dos cálculos complicados, que a pressão final extrapolada igualava a pressão inicial e que era excelente o índice de produtividade da formação.


- Reservatório infinito!, proclamou,
sob intensa comemoração dos técnicos e operários da sonda.

A coisa tornava-se plural. Com dois campos comerciais de petróleo, Cachoeira Alegre e Caranguejinho, o sertão estava caminhando para se tornar uma província petrolífera...

As baixas


Houve várias baixas, quase ao mesmo tempo, no mês que antecedeu o início da produção comercial. Há explicação para defecções, voluntárias ou forçadas, no exato momento em que as pessoas se tornam prescindíveis, como os andaimes, que se retiram quando a obra se dá por concluída?

Carlinhos Mineiro


Um químico inteligente e generoso, que não confiava na solidez dos bancos e guardava todo o seu dinheiro em almofadas de couro. Um dia as almofadas desapareceram misteriosamente e, com elas, seus 120 mil dólares, amealhados ao longo de 40 meses de trabalho escamado e sofridas privações.

- Quem rouba minha bolsa, rouba lixo, comentou ironicamente o Severo.

Carlinhos chorou diante de todos quando encerrou as buscas pelo dinheiro, entendendo definitivamente que suara por uma liquidez que já não existia. Voltou para Belo Horizonte, onde tornou-se motorista de táxi e faleceu num acidente de trânsito.

Nilberto Boaventura

Nunca pareceu ser uma pessoa normal. Entendia tudo sobre completação de poços, bombeio mecânico e “árvore de natal”, este um arranjo mecânico pelo qual se controlam os poços de produção. Nilberto começou a gritar às três da manhã. Todo o acampamento ouviu estarrecido a ladainha absurda, lancinante, que não deixava ninguém dormir:


- Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá! Viva eu cá na terra sempre triste! Eu sou o quadrado da hipotenusa! Ser ou não ser, eis a questão! Eu sinto em mim o borbulhar do gênio! Eu quero a estrela da manhã! O século que viu Colombo, viu Gutenberg também! Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia assim, de um sol assim! Sou poeta, não troco uma estrofe minha por teu colar de rainha! Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus! Eu sou a poderosa artilharia! O estado sou eu! Eu, eu, eu, eu sou mais eu!

Contido pelos enfermeiros do plantão médico, foi arrastado até o ambulatório. No dia seguinte levaram-no para Recife, de onde não regressou nunca mais.

Joaquim Peruano


Geólogo de desenvolvimento, era o responsável pelo cálculo das reservas de petróleo e definição das locações dos poços. Foi encontrado morto, vítima de cruel emboscada, na estrada de Picos Amarelos. Recebeu uma descarga de seis tiros, à queima-roupa, numa ação típica de pistoleiros profissionais. No sertão do petróleo, o crime foi insistentemente atribuído à vingança de Montezuma.


Antônio Labrador


O homem da avaliação das descobertas, misterioso e atrevido, mais conhecido como Labra. Pediu demissão inesperadamente, para alegria de todos os chefes e tristeza dos subordinados. Repartiu suas economias pelos pobres de Cachoeira Alegre e desapareceu para sempre, como um Dom Sebastião ou um deus Quirino. Deixou uma carta afixada no salão da geologia, dando por encerrada sua contribuição à causa do petróleo. Nela afirmou que se engajara no projeto de Cachoeira Alegre para cumprir uma vontade do pai, outrora um ativista na luta do petróleo. No final, uma mensagem para a Legião Estrangeira:


- Sou a vossa testemunha e me sinto grande porque sois grandes.

Início da produção comercial

Mais de duas centenas de poços, com capacidade total de 22.800 barris de petróleo por dia, foram postos a produzir, a uma ordem solene do presidente da companhia. Estavam presentes o vice-presidente da República, o presidente da Câmara dos Deputados, o Governador e muitos convidados.
Foi assim que o petróleo de Cachoeira Alegre começou sua carreira industrial. Ele se desloca horizontalmente pelos poros da rocha, lá na profundidade, até alcançar o poço e, então, ascende pela coluna de produção, na sua luta contra a gravidade, até chegar à superfície. Carrega consigo a energia de muitos derivados, e isso o coloca na galeria dos produtos mais cobiçados em todos os países do mundo.

Ulisses

O petróleo de Cachoeira Alegre carrega também, e portanto, o testemunho da presença da Legião Estrangeira, que ali aportou e viveu essa odisseiazinha sem registro, perdida nas muitas esquinas do tempo. A cada caso de Lampeão corresponde uma vingança de Montezuma, uma anedota do crioulo Florisval ou a desventura de um jovem qualquer, como o que enlouqueceu em pleno sertão, o que foi demitido covardemente, o que morreu no acidente com o jipe e o que economizou almofadas de esperanças e retornou para Minas Gerais com as mãos absolutamente vazias. Tudo isso ficou para trás, sem sequer deixar um nome e dormindo profundamente, como nas poesias de Manuel Bandeira.
Para frente, entretanto, o assunto é muito outro: mandacarus convivendo com cavalos de pau, barris de petróleo a mancheias nos tanques, muito dinheiro e progresso, porque a natureza tem horror ao vácuo.

Sertão e petróleo lado a lado, por 40 anos. Pelo menos.

(fim)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A BUSCA DO PETRÓLEO (parte 3/4)

Desenvolvimento

O lugarejo não passava de uma longa e acidentada rua de choças de barro. Sua população, pobre e doente, tinha, se tanto, uma vaga esperança na chegada da Grande Hora, a da fartura - ecos e rumores dos tempos de um certo Antônio Conselheiro, puxando a monarquia branca, ou emanados do Beatinho Zé Lourenço, que puxou a vaca preta nas suas
caminhadas errantes pelas bandas do Ceará. Histórias mal-ajambradas, que se confundiam com as lendas e mistérios do sertão.




Zé Lourenço
(Crato, 1937)


Antônio Conselheiro
(Canudos, 1897)

Muita coisa, todavia, iria se alterar em Cachoeira Alegre. Como as atividades do petróleo não podem dormir, nem guardar domingos e feriados, e seguem ininterruptas pelas 24 horas do dia, era necessário contar com quatro turmas por sonda que estivesse em operação. Três delas revezavam-se a cada oito horas, enquanto a quarta folgava. A qualquer momento, para cada homem nas sondas havia três homens honestamente no ócio. Destes, uns poucos deixavam-se ficar no acampamento, guardando repouso, estudando ou jogando cartas, mas a maioria andava pelos bares e pelo cabaré de Cachoeira Alegre.

Plataformistas, na sonda

O gigante oligofrênico fazia correr dinheiro abundante, antes mesmo de fluir a riqueza da terra. O mais notório dos comerciantes era o Corcundinha, que roubava no peso e na qualidade, cobrando um quilo de filé por oitocentos gramas de carne de pescoço, sem falar nas bebidas falsificadas e na água de torneira, que vendia como mineral. Ficou rico.
Das prostitutas, Mariazinha Bangu era nome citado em todas as sondas da região. Tinha pele morena, ar meio tímido, cara bonita e corpo redondo e delicado. Olhos sestrosos, que convidavam, e um largo balançar de quadris, retardativo, mas excitante. De vasta quilometragem, foi mulher de quase todos os petroleiros do sertão. Até que um dia o Florisval, que de laboré chegou a torrista titular, avisou, berrando no acampamento, que Mariazinha não seria nunca mais mulher de ninguém.

- Vou me casar com ela e espeto com peixeira enferrujada o primeiro que me chamar de corno.

Era uma lei, e essa lei pegou. Houve quem falasse mal dos petroleiros, da polícia, dos políticos, dos usineiros e até da Igreja. Houve, naquela época de guerra fria, de “progressistas” e “reacionários”, quem praguejasse contra russos e americanos ou acusasse de ladrão o poderoso Corcundinha.

- Que se saiba, porém, não houve em todo aquele sertão quem tivesse chamado de corno o crioulo Florisval.


Uma demissão


Tudo se foi cumprindo como programado. Ao cabo de quatro anos, os trabalhos adiantados mostravam um campo de petróleo quase pronto. Das 26 estações coletoras, 21 estavam concluídas. Mais de 200 poços tinham sido perfurados, completados e testados, prontos que estavam para produzir.
Cachoeira Alegre era, nesse ponto, um tema de interesse nacional. Foi nessa ocasião que um jornalista publicou nos “Diários Associados” e na “Folha de São Paulo” uma série de reportagens intituladas “Cachoeira Alegre, urgente!”, que mencionavam conflitos e discórdias entre os homens do petróleo, os usineiros e políticos da região de Cachoeira Alegre.

A matéria gerou muita confusão, envolvendo, de um lado, os petroleiros e, de outro, os prefeitos de três cidades, além de autoridades estaduais e ministros, inconformados com as inverdades e os exageros daquelas notícias. Sobreveio uma inesperada indignação oficial, pois o governo federal não queria mal-entendidos e distúrbios que prejudicassem sua base política no Congresso. Antônio Sepúlveda, acusado de informante do jornalista, foi demitido por ordem expressa do Rio de Janeiro, sob protestos inconformados da Legião Estrangeira.
Sepúlveda não esboçou nenhuma reclamação, retirou-se para São Paulo, onde se dedicou à construção civil e criou uma exitosa companhia de engenharia. É certo, porém, que abrigou para sempre uma mágoa profunda e dolorosa.


- O jornalista não teve a generosidade de dizer aos interessados, nem aos que me puniram, que nunca o vi em minha vida, nem tive nada a ver com aquelas reportagens.


A primeira estação

A primeira estação coletora de Cachoeira Alegre destinava-se a recolher, tratar e armazenar a produção de petróleo de dez poços situados nas proximidades do acampamento. No dia da inauguração, presente toda a Legião Estrangeira, promoveu-se uma pequena cerimônia, e alguns poços foram colocados em produção por dez minutos. Houve o discurso emocionado do Alfredo Velhinho e a votação que escolheu o nome da estação: Estação Primeira de Mangueira.

Estação Primeira de Mangueira

Uma semana depois, Cachoeira Alegre engalanou-se para receber uma comitiva de três governadores, seis senadores e vários deputados, entre os quais Fabrício Restrepo, que estava acompanhado de sua mulher Helena, para além de inúmeros intelectuais e jornalistas. A Legião Estrangeira interrompeu suas atividades e, de paletó e gravata, deu explicações sobre exploração e produção de petróleo.
Uma comovente cerimônia teve lugar na Estação Primeira de Mangueira: o batismo de petróleo da comitiva visitante. Toledo, o engenheiro-chefe da produção, mergulhava as mãos no petróleo abundante, negro e viscoso, e as oferecia para o cumprimento emocionado dos convidados, organizados numa fila longa e paciente.

Fabrício Restrepo, as mãos sujas de petróleo, tomou a palavra para enaltecer a política nacional de energia e o decisivo apoio das autoridades federais, estaduais e municipais, ele que era orador de idéias panegiricais e longos exórdios. Seus gestos largos faziam espirrar petróleo em todas as direções, enquanto invocava e celebrava os nomes de Edson de Carvalho, Monteiro Lobato, Oscar Cordeiro e Horta Barbosa.

- Viva o general Horta Barbosa!

Sua mulher Helena, rapidinha e de enredo planejado, aproveitou o longo discurso do marido e escamugiu-se pelo mato com o geólogo Joaquim Peruano. Brasil e Peru, com trocadilho, vivados, tanto no palanque como na caatinga, com igual veemência e arrebatamento.
Helena de Pinho Restrepo entrou para o folclore do petróleo, e seu nome correu sonda, substituindo o nome proibido de Mariazinha Bangu.
(conclusão na segunda-feira, 14/4/2008)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

A BUSCA DO PETRÓLEO (parte 2/4)

Cachoeira Alegre

A broca atrevida foi delatando, chão abaixo, as riquezas escondidas do sertão. O que se queria era petróleo, e petróleo abundante foi descoberto, ali, no arraial de Cachoeira Alegre, exatamente onde Lampião enfrentou os macacos, a ponta de sabre, trinta anos atrás.

Virgulino Lampião

No início, pensou-se em acumulação pequena, mas os poços de extensão e de delimitação, a partir do poço descobridor, foram encompridando cada vez mais a descoberta. E, melhor ainda, o reservatório geológico era fraturado, devendo-se somar ao petróleo dos poros o petróleo generoso e abundante das fraturas.

- Volume original de dois bilhões de barris de petróleo.

-
Um campo gigante?

- Sim, um gigante, mas oligofrênico. Pressão, porosidade, permeabilidade, aqüifero, tudo nele é normal, como se fossem dados de livro. Infelizmente, porém, a alta viscosidade do óleo não permitirá recuperar mais do que vinte por cento do volume original. Mas é campo dos bons, dos graúdos, “a very good elephant”. Ou você não gosta de 25 mil barris de petróleo por dia?

O campo descoberto, que correspondia na superfície a cerca de vinte quilômetros quadrados, iria requerer duas centenas de poços de produção e 26 estações coletoras de petróleo. Os poços seriam perfurados, testados e estimulados, após o que ficariam fechados até o dia em que, todos juntos, seriam definitivamente abertos à produção comercial. Enquanto isso, e até lá, seriam construídas as linhas de captação, os separadores, as estações coletoras e a estação central. Paralelamente, o oleoduto, partindo da estação central, cresceria feito cobra, sertão adentro, na direção do mar.
Assim se imaginou, assim teria de ser feito. Trabalho para quatro, cinco anos, mobilizando dez sondas de perfuração e mil e quinhentos homens, entre técnicos, operários especializados e laborés - uma corruptela de “laborers”, que é como os americanos dos primeiros tempos chamavam os trabalhadores braçais.


Legião estrangeira

Um dia Joãozinho Cascavel chamou o grupo do Labra de “Legião Estrangeira”. Vindos dos mais diversos pontos do país, e até do exterior, eram geofísicos, geólogos, engenheiros, administradores, químicos, mecânicos e topógrafos, que a mão invisível de Adam Smith reuniu no sertão para fuçar os segredos da natureza. O núcleo que comandava a inteligência das operações a serem executadas. Todos ficavam sediados em Cachoeira Alegre, onde havia petróleo descoberto e obras gigantescas a serem executadas para colocá-lo em produção comercial - a fase de investimentos importantes conhecida como "desenvolvimento do campo".


À noite, no salão da geologia, que se situava no centro do acampamento, os da Legião Estrangeira que estavam de folga reuniam-se para contar suas histórias, dramas e ambições. Menos o Nilberto Boaventura, que não conversava com ninguém e sempre se recolhia nos momentos de lazer, e o Carlinhos Mineiro, isolado na sua barraca para contar e recontar seus dólares, que escondia em almofadas de couro. Não confiava nos bancos. Vale citar ainda o Joaquim Peruano, que nas folgas longamente ansiadas desfilava sua beleza pretensiosa nas praças mal iluminadas de Aracaju. Ah, havia o Severo, um geofísico de reconhecida capacidade na interpretação de dados sísmicos, que todas as noites se trancava no almoxarifado para ler obras de Joyce, Proust, Shakespeare e Machado de Assis, ele que certa vez presenteou todo mundo com uma cópia do "Burrinho Pedrês", de Guimarães Rosa. Severo era muito erudito e em todas as oportunidades gostava de citar a frase que "Otelo" ouviu de "Iago":

- Quem rouba a minha bolsa, rouba lixo.

Burrinho Pedrês
Outras descobertas

Aproveitava-se a infra-estrutura de Cachoeira Alegre para apoiar as tentativas de descobrir mais petróleo em outros sítios, situados a distâncias que às vezes alcançavam até cem quilômetros. Os técnicos de avaliação de descobertas ficavam sediados em Cachoeira Alegre, desempenhando múltiplas tarefas, mas viviam o permanente sobressalto de largar tudo para apressadas viagens, se houvesse localização de novas acumulações pioneiras de petróleo.

De vez em quando chegavam telegramas nervosos do Rio de Janeiro, que colocavam a legião estrangeira em grande atividade:


“Deslocar imediatamente equipe avaliação para testar descoberta petróleo poço pioneiro localidade de Treme.”

O grupo se reunia às pressas e seguia, todo excitado, para Treme, onde assumiam o comando da sonda pioneira e acoplavam à coluna o legendário testador de formação, que registrava as variações de pressão numa carta especial. Seguia-se um ritual de aberturas e fechamentos do poço, medindo-se cuidadosamente os volumes do petróleo produzido. Terminada a operação, o Labra, debruçado sobre o micrômetro, lia os registros da carta e traçava a curva de crescimento de pressões.

Carta que resulta da avaliação com o testador de formação

Se após uma produção de petróleo razoável, houvesse regeneração da pressão original no confronto logarítmico com o tempo, o reservatório de petróleo descoberto era considerado “infinito” e o campo, comercial.
Na maioria das vezes, porém, os resultados eram desapontadores. A acumulação de Treme , no veredicto do Labra, foi considerada pequena e depletiva, sem interesse comercial.

De outra feita foi Lagos. Descoberto petróleo em Lagos! O cortejo se deslocou gloriosamente para cumprir o mesmo ritual. O Labra, com a autoridade do seu micrômetro, assegurou que a formação era fechada, de baixa permeabilidade e sem perspectivas de produzir quantidades comerciais de petróleo. Uma decepção.
Menos mal que o poço de Lagos descobriu importantes minas de silvita, carnalita e sal-gema, mas isso é outra história. Outra história!

Vingança de Montezuma

Montezuma

Nos grandes deslocamentos entre o acampamento e as locações pioneiras, por estradas estreitas, irregulares e poeirentas, os acidentes não eram raros e às vezes alguém morria. Dizia-se no acampamento de Cachoeira Alegre que essas mortes eram uma vingança de Montezuma.

- Montezuma, ora essa, que tem Montezuma a ver com este sertão?

Se ninguém sabia explicar, ninguém todavia duvidava: só se morria ali por causa da vingança de Montezuma.
Triste, mesmo, foi a morte do Perel, o químico de lama das brincadeiras inocentes. Seu jipe despencou mais de cinqüenta metros, na terceira curva da serra de Limeira. Nesse dia alguém escreveu no quadro-negro do salão da geologia um verso de Bandeira:

“Dessas rosas, muita rosa terá morrido em botão...”
(continua na sexta-feira, 11/4/2008)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

A BUSCA DO PETRÓLEO (parte 1/4)

A sonda

Subitamente o sertão foi avassalado por homens que chegavam de jipe, à frente de grotescas máquinas transportadas por imensos caminhões amarelos. Durante muitos dias tratores especiais, muito ágeis, foram construindo acessos até o ponto do terreno onde seria perfurado o poço. Depois, a sonda. Num ritual impressionante, o guincho, que não passava de um pequeno guindaste, levantou o mastro, instalou as bombas de lama e posicionou o motor e o tanque de combustível. Seguiram-se as pequenas obras de ocupação, tudo feito com rapidez e cuidado, pois nada podia falhar. Por último, construiu-se a "casa do cachorro", de madeira sem pintura, mas sólida, para servir ao descanso dos sondadores.

Terminados os preparativos e vencidas todas as inspeções, começou o trabalho da perfuração. Lá em cima, o torrista, operário das alturas, fazia seu número de acrobacia, abraçando-se ao tubo mais elevado da coluna a cada evolução do bloco viageiro, que ali todos chamavam de "catarina". Errar o torrista não podia, pois, se caísse, não teria nenhuma salvação. Embaixo, sem acrobacia, os plataformistas depunham a força de seus músculos e de sua alma na conexão de cada tubo de perfuração à coluna sustentada pelas cunhas da mesa rotativa. Ao sondador, que tinha ascendência operacional sobre os outros, cabia manipular as alavancas, fazendo girar a coluna para regular o peso sobre a broca, que, sem opção, ia penetrando a terra de maneira inexorável. Cascalhos e detritos, que resultavam da ação trituradora da broca, eram trazidos pela lama de perfuração, examinados pelo geólogo e descartados na peneira vibratória.
Não se sabia exatamente quem era autoridade maior na sonda, se o engenheiro de perfuração ou o geólogo de poço. Ambos tinham muito poder. O engenheiro dava as ordens ao sondador e especificava o número de comandos, que são os tubos mais pesados que descem junto da broca, tanto quanto o peso da coluna, suas rotações por minuto e a densidade do fluido de perfuração. O engenheiro também administrava a disciplina: as brigas eram punidas com suspensão e redução de salário e os acidentes, se resultantes de negligência, com demissão por justa causa.
Havia, porém, o geólogo, uma espécie de eminência parda, sempre calado, a recolher na peneira da lama os cascalhos e fragmentos de rocha, que a sonda ia vomitando, para examiná-los cuidadosamente com auxílio de um microscópio. Para o geólogo, o importante era reconhecer os sedimentos penetrados, se folhelhos, arenitos ou calcáreos, confrontando a seqüência que se ia obtendo com os dados sísmicos recebidos do Rio de Janeiro. Os operários diziam divertidamente que ele lambia as amostras, pois nos seus relatórios, descrevendo cuidadosamente as formações perfuradas, nunca deixava de informar o sabor das rochas, "ácido", " sabor indefinido", "alcalino" e "neutro". Certa vez disse, de um siltito, que "tinha sabor de limão".
Em certas ocasiões, o geólogo chamava discretamente o engenheiro, murmurava-lhe algum recado, e a perfuração era interrompida:

- Vamos condicionar o poço para a perfilagem!

Ou então:

- Preparar para testemunhar!

Começava então a operação complicada de desconectar tubos em seções de três, até a última, que vinha com a broca. E, a seguir, conectá-los novamente, já com a broca de diamante e o barrilete na extremidade da coluna, para encamisar e trazer para a superfície um comprido cilindro da rocha testemunhada.

Broca e barrilete

Aquela gente engraçada, de jaquetas cinzentas e capacetes de aço, que dormia em barracos de lona, e de luz acesa por temer os barbeiros, entrou no sertão sem pedir licença, arrostando a miséria do alto dos seus imensos coturnos. Para fazer história. Era a busca do petróleo.

Para fazer história?

Tudo começou em 27 de agosto de 1859, quando o "Coronel" Drake descobriu petróleo na Pensilvânia. Um evento que iria revolucionar o mundo. Pois o querosene, que se obtém na destilação do petróleo, foi prontamente utilizado na iluminação noturna, substituindo tanto o canfeno, dos pobres, quanto o óleo de cachalote, que fazia a luz dos ricos.

Primeiro poço, 1859, Titusville, Pensilvânia

Nem mesmo a lâmpada elétrica, apresentada em 1892 por Thomas Alba Edison, conseguiu interromper a carreira do petróleo, pois a seguir Henry Ford apresentou o carro com motor de combustão interna, que utiliza gasolina, logo seguido do motor a diesel. Vieram depois, e progressivamente, as utilizações dos outros derivados, seja no consumo direto ou como insumo petroquímico.
O petróleo passou a definir quem podia preponderar e quem devia se submeter. A luta de homens, ao lado de outros homens, ou contra eles, por uma hegemonia. O armênio Calouste Gulbenkian, chamado de "Senhor Cinco Por Cento", afirmava que as companhias de petróleo eram como gatos:

- Pelo barulho nunca se pode saber se estão brigando ou se fazendo amor.

Brigando de forma encarniçada ou amando-se com ternura, as companhias assinaram acordos secretos, como o do castelo de Achnacarry, na Escócia, no ano de 1929, que repartiu entre elas as reservas de petróleo e o mercado consumidor mundial. Suas cláusulas neutralizaram por mais de um quarto de século a lei da procura e da oferta do petróleo, substituindo-a pela lei da impostura muito esperta do finório.
Desde o final do século XIX houve desmedido interesse das companhias de exploração pelos pólos petrolíferos privilegiados, como os dos Estados Unidos, Rússia, Sumatra e México, e, após, já no século XX, os do Irã, Venezuela, Iraque Arábia Saudita e Kuwait.

E o Brasil?

Ficava condenado a ser um consumidor de derivados de petróleo importados. Nenhum interesse houve dessas companhias pelo petróleo do subsolo brasileiro, de localização difícil naquela época.
Por isso:

(1) Das questões brasileiras, a do petróleo, era, na década de 1960, uma das não resolvidas.

(2) Os intrusos de botas militares e capacete de aço, que erravam então nos rasos de Sergipe, com suas máquinas barulhentas e desengonçadas, estavam, sim, fazendo história, muita, no Brasil.
(continua na quarta-feira, 9/4/2008))