quarta-feira, 18 de agosto de 2010

BIOGRAFIAS

CONVERSAS DE ALCOVA

Cada biografia, uma hipótese

- Não confio nas biografias.

- Nem nas idôneas?


- Refiro-me somente às idôneas.

- Por quê?

- Porque o biógrafo tem de suprir as eventuais lacunas com suposições.

- Como assim?

- É necessário inventar de forma verossímil as realidades desconhecidas.

- Verdadeiras mentiras, é isso?

-
Mentiras verdadeiras. Há de ser assim, ou não haverá uma biografia fechada, quer dizer, completa. Dificilmente alguém dirá "vamos saltar o ano de 1997 por insuficiência de informações." Daí as ilações. Narradores diferentes, ilações diferentes, biografias diferentes.

- Mas isso vale para tudo: reportagens, pesquisas científicas, previsões do tempo, jogos de futebol, crônicas sociais etc.

- Um evento tem muitas versões, dependendo do narrador e das informações que ele possui.


- Meio complicado, pois distorcê-lo me parece a consequência....


- Lembre-se de que a minha hipótese só contempla o autor idôneo.


O caso do senador Leviatã

Aurora Leviatã

- Por que você levantou esse assunto?

- Li outro dia uma biografia do falecido Arnaldo Leviatã.

- O senador?


- Sim, escrita pela Aurora Leviatã, sua filha. Ela vê o pai como um perfeito chefe de família, excelente orador e homem público identificado com o melhor interesse nacional.

- Uma versão filial.

- Ela não sabia que o Leviatã tinha uma amante. Possuindo essa informação, provavelmente teria escrito uma biografia diferente.


- Se quisesse.

Arnaldo Leviatã

- Além disso, o senador era pouco inteligente, mas muito esforçado. Seus discursos eram escritos por assessores, e ele os decorava, treinando horas a fio diante do espelho. Por que nunca concedia nenhum aparte? Porque não saberia replicar o que não havia decorado. Todos o tinham como um Demóstenes e, no entanto, não passava de um ator de segunda categoria, a despejar textos alheios. Isso não daria uma terceira biografia?

- Com certeza.


- E se eu lhe disser que Aurora Leviatã não é filha dele, mas do amante de sua mãe, de cuja existência nem pai nem filha jamais chegaram a saber?


- Isso complica a coisa toda.


- É praticamente impossível saber sobre a vida de alguém de maneira integral, nem o saberia a própria pessoa a ser biografada. É uma característica absolutamente geral, extensível a todos, sem exceção, pois nem biógrafos nem biografados conhecem a totalidade dos fatos da pessoa a ser biografada. Eu tenho uma versão de mim, talvez a mais próxima da verdade, mas uma versão. Como há lacunas, é necessário supri-las...


- É, versões, Boca de Ouro...

- Não, não. No Boca de Ouro as três versões são dadas pela mesma mulher, que não era idônea, já que pelo menos duas, das três, eram versões propositadamente falsas. Falo das versões verdadeiras.

- Entendi perfeitamente. Até a verdade é uma versão.

- Por isso eu jamais quereria ser jurada, e ter de decidir entre a verdade da acusação e a verdade da defesa, que costumam ser opostas.

- Necessariamente. Com você, no meio, condenando ou absolvendo.

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