sábado, 8 de maio de 2010

DEDUZIR A MULHER NO IMPOSTO DE RENDA

O PROFESSOR DE HARVARD


Júlia

Júlia, que iria presidir a sessão, empenhou-se para garantir-me um lugar na plateia. O que implicava a grande responsabilidade de me interessar pelo assunto.

-Quem sabe iriam ensinar a arte de ganhar dinheiro na Bolsa de Valores?


Sorte que esse Bird, professor de Harvard e colunista do Washington Post, já morara no Brasil e falava Português sem nenhum sotaque. Li uma vez que foi dele o primeiro artigo sobre o uso das curvas de utilidade na avaliação econômica dos projetos de risco. Para mim, trata-se de uma fraude requintada, que descaracteriza a responsabilidade pelas decisões assumidas. Pois, ocorrendo o prejuízo, a falha não será de quem tomou a decisão, mas do projeto, pertinaz e refratário, e de suas insuficientes e traiçoeiras probabilidades. Nesse caso, consumado o desastre, bastará você dizer para os acionistas, com toda a modéstia e humildade:

- Lamento muito... Prevaleceu o risco embutido no valor monetário esperado.


Se, entretanto, o improvável ocorrer e o projeto for bem-sucedido, você será reconhecido como um gênio, assim humilde, a circular generosamente entre os mortais e sério candidato a uma recompensa estabelecida pelo conselho de administração, nas avaliações anuais dos executivos.


- Bônus de desempenho para o super-homem da utilidade destemida.


William Bird começou com a pergunta que dava o tom da conferência:

- Por que não faltam técnicos nas plataformas geladas do Mar de Behring, nem embaixadas em Guiné-Bissau ou arroz em Nova York?

Ou seja, nada de Bolsa de Valores. Por que contrataram um professor americano para ensinar sobre isso? Tenho para mim, muito para mim, que esse negócio de Adam Smith todo mundo sabe, o pipoqueiro, a prostituta, o corredor de meia-maratona, o agrônomo, o estalajadeiro e a prima da tia da Cláudia Cardinale. Estudei isso superficialmente no primeiro ano da faculdade, junto com estatística, logística dos transportes, perfumaria e outras generalidades. Seja como for, estou aqui por causa da Júlia, não para aprender economia.

Cardinale

- Por que há uma mão invisível, a do mercado, que coloca arroz e frangos em Nova York e embaixadas em Guiné-Bissau. Exatamente isso, nem mais, nem menos do que isso. Para qualquer bem ou serviço, há uma curva de quantidade demandada, a verde, que se assemelha ao ramo positivo de uma hipérbole equilátera, e uma curva de quantidade ofertada, a vermelha, de sentido contrário, a fazer-lhe o contraponto. Num mercado em funcionamento, as duas curvas se cruzam.

- Sempre se cruzam?

- É bom que o façam, pois, do contrário, o mercado desaparece e... adeus bem ou serviço! O ponto de encontro das duas curvas define e o preço e a quantidade realmente negociada do bem ou serviço em questão, não importa se sal de cozinha, sanduíche de mortadela, apartamentos de cobertura ou perfume francês.


A linguagem dos economistas é cheia de louçanias, belas como uma tela de Matisse. Ramo positivo de uma hipérbole equilátera, quantidade demandada, lei dos rendimentos decrescentes, necessidades geométricas de Malthus...

- Os fatores da produção são a natureza, o trabalho e o capital, prossegue o professor. Num certo sentido, porém, esses fatores reduzem-se a dois, natureza e trabalho, com a exclusão do capital, pois este resulta do trabalho em face da natureza, da capacidade de prever o futuro e da vontade de poupar e fazer provisão.

- Os fatores de produção são sempre remunerados?

- Numa economia livre, certamente. Tudo que se recebe a título de remuneração do trabalho, do capital e da natureza forma a renda nacional. Nesse sentido, alguns cuidados são essenciais, conforme alertou, sensatamente, o ministro francês, Hubert Védrine, em recente discurso perante a Comunidade Econômica Européia. Ele o fez jocosamente, provocando o riso das autoridades presentes.

- Na Comunidade Europeia, jocosamente?

-Sim, muito jocosamente. Há, há, há! Védrine lembrou que é impatriótico casar com a governanta, pois um salário é imediatamente cancelado, diminuindo a renda nacional.

Todos riram. Não sei por quê, as pessoas, quando em grupo, têm mais disposição para o riso, e todos os chistes são bem-sucedidos. É aí que entra o Freud: sozinho sou uma coisa, no grupo sou outra diferente, e na multidão sou uma gota dentro de uma nuvem. Choverei também, se a decisão for a de promover uma tormenta.

Védrine

- Estão rindo? Será que vocês ousariam pedir recibos às suas mulheres? Se o fizessem, poderiam abater suas mesadas dos rendimentos tributáveis, mas elas teriam de fazer declaração de renda!

- Boa idéia, professor, boa idéia!

Piada de economista é sempre assim: magnificar a renda nacional, não casar com a governanta, deduzir a mulher no imposto de renda... Terminada a aula, Bird foi aplaudido entusiasticamente, como se tivesse cantado uma ária de Nabuco ou formulado uma das leis de Kirchhoff. Ele, o Bird, embolsou seis mil dólares, um “fee” nada desprezí (zá) vel, livre de impostos e despesas de qualquer natureza. Ou, como escreveu na carta em que aceitava o convite de Júlia, “free of taxes and expenses whatsoever”. Bird estava feliz com seu recebimento fiduciário. Júlia enriquecera seu portfólio. Os assistentes, quase todos doutorandos, receberiam créditos universitários e menções curriculares. E eu? Isso mesmo, e eu, que fazia naquele lugar?

- Muito simples: estava apaixonado pela Júlia.

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