sábado, 22 de maio de 2010

De tudo fica um pouco

MINHA QUERIDA LAURA

Dessa vez, com Laura, foi uma despedida consentida, embora emocionada. As partes entendiam que se separavam para cumprir seus destinos. Para além dos nossos momentos inesquecíveis, ficaram-me dela um resumo da teoria da relatividade e um arrazoado que produziu sobre Shakespeare.

- Confortou-me a ideia de que daquela data em diante pesquisaria sobre tudo isso na própria Inglaterra, sem ter de consumir boa parte do salário na importação de livros a câmbio desfavorecido.

Aliás, todos os desenlaces deveriam ser serenos e gentis, assim, pois as partes ficam com saudades recíprocas e nenhum ódio no coração. Resumindo tudo numa única e dolorosa palavra, eu estava só, mais uma vez. Com a Cecília, vencera-nos o tédio; com a May, nem sei direito, tudo ruiu no âmbito de uma confusão para lá de inexplicável; com a Laura, separou-nos o voo do pássaro, na busca do seu destino.

- L’oiseau vole, como no conto do Maupassant.


Drummond nos ensinou que de tudo fica um pouco, e, de um homem e uma mulher, esse pouco que fica é doce resíduo...

Prêmio Nobel

Uma semana após sua partida, escreveu-me, dando conta de que estava se sentindo muito bem no Departamento de Física do Kings College, que tem reputação internacional e recebe profissionais de todas as partes do mundo. Seu trabalho implicaria inicialmente a participação numa pesquisa sobre resistência de materiais, que interessava à cadeira de Mecânica Vibratória, da qual inicialmente seria assistente e, depois, professora adjunta.

Watson e Crick

A carta terminava mencionando quatro professores do Kings College laureados, no século XX, com o Prêmio Nobel de Física, a saber, Charles G.. Barkla, em 1917, pelos seus trabalhos sobre raios-X; Owen Richardson, em 1928, pelo seu trabalho sobre emissão termiônica; Edward Appleton, em 1947, pelo seus estudos sobre a atmosfera; e Maurice Wilkins, em 1962, que dividiu o prêmio com James Watson e Francis Crick, pela determinação da estrutura do DNA.
Das próximas vezes, acrescentou, poderíamos nos comunicar por email, quando tivesse se organizado minimamente e dispusesse de um computador.

- Minha querida Laura...

Respondi imediatamente, garantindo-lhe que ficaria torcendo para que fosse para ela o quinto Prêmio Nobel do King’s College, o que, sobre aumentar o prestígio da Universidade de Londres, haveria de deixar mais alegre e mais aquecido este meu peito solitário.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A INTUIÇÃO DE KANT

Teoria do Céu
Imannuel Kant

Imannuel Kant (1724 - 1804) confessou que duas coisas enchiam seu espírito de admiração e reverência: “o céu estrelado acima de mim” e “a lei moral dentro de mim”.
Para entender o céu estrelado, Kant estudou o livro de Isaac Newton, "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", e publicou, aos 31 anos, uma obra audaciosa e de título complicado, “História Natural Universal e Teoria dos Céus, Ou um Ensaio sobre a Constituição e Origem Mecânica de Todo o Universo Tratada Segundo os Princípios de Newton”, mais conhecida por “Teoria do Céu”. Trata-se de um livro, de 1755, contendo importantes intuições cosmológicas. Entre elas, a de que a Via Láctea seria apenas uma entre uma infinidade de galáxias, cada uma com uma grande quantidade de estrelas e de sistemas solares.

O Grande Debate

Muitos astrônomos, como William Herschel
(1738–1822), acreditavam que a Via Láctea era a única aglomeração de estrelas do Universo. Defendiam que as nebulosas eram estrelas jovens dentro da Via Láctea, ao passo que os alinhados com Kant defendiam que essas nebulosas eram outras galáxias, situadas para além da Via Láctea.

William Herschel

A Academia Nacional de Ciências de Washington organizou em abril de 1920 um debate entre as duas correntes, que, ao fim e ao cabo, era na verdade uma discussão sobre o lugar da humanidade dentro do Cosmos. A galáxia única foi defendida pelos astrônomos do Observatório de Monte Wilson, representados por Harlow Shapley (1885-1972), enquanto a tese de que as nebulosas eram galáxias independentes foi defendida pelo experiente astrônomo Heber Curtis (1872-1942).

Heber Curtis

O Grande Debate pouco acrescentou, pois faltavam dados observacionais que ajudassem a decidir sobre a questão. Alguns astrônomos, pessimistas, chegaram a admitir que essa questão não seria jamais esclarecida, por situar-se numa fronteira indecidível, onde “o intelecto humano começa a falhar". Erro comparável, em contexto equivalente, ao de Augusto Comte, que manifestou em seu Curso de Filosofia Positiva a opinião de que nunca seríamos capazes de estudar a estrutura química e mineralógica das estrelas.

Harlow Shapley

Gol de Placa

Em 4 de outubro de 1923, Edwin Hubble (1889-1953), com seu telescópio de 2,5 metros de diâmetro, descobriu na nebulosa de Andrômedra uma cefeida sete mil vezes mais luminosa do que o Sol e, pela técnica desenvolvida por Henrietta Leavitt, aquela do “Harém de Pickering”, concluiu que essa estrela estava a 900 mil anos-luz da Terra. Ou seja, a cefeida de Andrômeda estava fora da Via Láctea, que tem de ponta a ponta não mais que 100 mil anos-luz.
A nebulosa de Andrômedra e outras nebulosas constituíam, pois, outras galáxias.
Hubble só anunciou sua descoberta na reunião de 1924 da Associação Americana para o progresso da Ciência.

Hubble

Céu estrelado

A intuição de Kant estava, pois, correta: o Universo não se restringe à Via Láctea, formado que é por cerca de 100 bilhões de galáxias, cada uma com cerca de 100 bilhões de estrelas, sendo a mais próxima do Sol a estrela Alfa da constelação de Centauro, que dista do Sol quatro anos-luz, cerca de 38 trilhões de quilômetros.

sábado, 8 de maio de 2010

DEDUZIR A MULHER NO IMPOSTO DE RENDA

O PROFESSOR DE HARVARD


Júlia

Júlia, que iria presidir a sessão, empenhou-se para garantir-me um lugar na plateia. O que implicava a grande responsabilidade de me interessar pelo assunto.

-Quem sabe iriam ensinar a arte de ganhar dinheiro na Bolsa de Valores?


Sorte que esse Bird, professor de Harvard e colunista do Washington Post, já morara no Brasil e falava Português sem nenhum sotaque. Li uma vez que foi dele o primeiro artigo sobre o uso das curvas de utilidade na avaliação econômica dos projetos de risco. Para mim, trata-se de uma fraude requintada, que descaracteriza a responsabilidade pelas decisões assumidas. Pois, ocorrendo o prejuízo, a falha não será de quem tomou a decisão, mas do projeto, pertinaz e refratário, e de suas insuficientes e traiçoeiras probabilidades. Nesse caso, consumado o desastre, bastará você dizer para os acionistas, com toda a modéstia e humildade:

- Lamento muito... Prevaleceu o risco embutido no valor monetário esperado.


Se, entretanto, o improvável ocorrer e o projeto for bem-sucedido, você será reconhecido como um gênio, assim humilde, a circular generosamente entre os mortais e sério candidato a uma recompensa estabelecida pelo conselho de administração, nas avaliações anuais dos executivos.


- Bônus de desempenho para o super-homem da utilidade destemida.


William Bird começou com a pergunta que dava o tom da conferência:

- Por que não faltam técnicos nas plataformas geladas do Mar de Behring, nem embaixadas em Guiné-Bissau ou arroz em Nova York?

Ou seja, nada de Bolsa de Valores. Por que contrataram um professor americano para ensinar sobre isso? Tenho para mim, muito para mim, que esse negócio de Adam Smith todo mundo sabe, o pipoqueiro, a prostituta, o corredor de meia-maratona, o agrônomo, o estalajadeiro e a prima da tia da Cláudia Cardinale. Estudei isso superficialmente no primeiro ano da faculdade, junto com estatística, logística dos transportes, perfumaria e outras generalidades. Seja como for, estou aqui por causa da Júlia, não para aprender economia.

Cardinale

- Por que há uma mão invisível, a do mercado, que coloca arroz e frangos em Nova York e embaixadas em Guiné-Bissau. Exatamente isso, nem mais, nem menos do que isso. Para qualquer bem ou serviço, há uma curva de quantidade demandada, a verde, que se assemelha ao ramo positivo de uma hipérbole equilátera, e uma curva de quantidade ofertada, a vermelha, de sentido contrário, a fazer-lhe o contraponto. Num mercado em funcionamento, as duas curvas se cruzam.

- Sempre se cruzam?

- É bom que o façam, pois, do contrário, o mercado desaparece e... adeus bem ou serviço! O ponto de encontro das duas curvas define e o preço e a quantidade realmente negociada do bem ou serviço em questão, não importa se sal de cozinha, sanduíche de mortadela, apartamentos de cobertura ou perfume francês.


A linguagem dos economistas é cheia de louçanias, belas como uma tela de Matisse. Ramo positivo de uma hipérbole equilátera, quantidade demandada, lei dos rendimentos decrescentes, necessidades geométricas de Malthus...

- Os fatores da produção são a natureza, o trabalho e o capital, prossegue o professor. Num certo sentido, porém, esses fatores reduzem-se a dois, natureza e trabalho, com a exclusão do capital, pois este resulta do trabalho em face da natureza, da capacidade de prever o futuro e da vontade de poupar e fazer provisão.

- Os fatores de produção são sempre remunerados?

- Numa economia livre, certamente. Tudo que se recebe a título de remuneração do trabalho, do capital e da natureza forma a renda nacional. Nesse sentido, alguns cuidados são essenciais, conforme alertou, sensatamente, o ministro francês, Hubert Védrine, em recente discurso perante a Comunidade Econômica Européia. Ele o fez jocosamente, provocando o riso das autoridades presentes.

- Na Comunidade Europeia, jocosamente?

-Sim, muito jocosamente. Há, há, há! Védrine lembrou que é impatriótico casar com a governanta, pois um salário é imediatamente cancelado, diminuindo a renda nacional.

Todos riram. Não sei por quê, as pessoas, quando em grupo, têm mais disposição para o riso, e todos os chistes são bem-sucedidos. É aí que entra o Freud: sozinho sou uma coisa, no grupo sou outra diferente, e na multidão sou uma gota dentro de uma nuvem. Choverei também, se a decisão for a de promover uma tormenta.

Védrine

- Estão rindo? Será que vocês ousariam pedir recibos às suas mulheres? Se o fizessem, poderiam abater suas mesadas dos rendimentos tributáveis, mas elas teriam de fazer declaração de renda!

- Boa idéia, professor, boa idéia!

Piada de economista é sempre assim: magnificar a renda nacional, não casar com a governanta, deduzir a mulher no imposto de renda... Terminada a aula, Bird foi aplaudido entusiasticamente, como se tivesse cantado uma ária de Nabuco ou formulado uma das leis de Kirchhoff. Ele, o Bird, embolsou seis mil dólares, um “fee” nada desprezí (zá) vel, livre de impostos e despesas de qualquer natureza. Ou, como escreveu na carta em que aceitava o convite de Júlia, “free of taxes and expenses whatsoever”. Bird estava feliz com seu recebimento fiduciário. Júlia enriquecera seu portfólio. Os assistentes, quase todos doutorandos, receberiam créditos universitários e menções curriculares. E eu? Isso mesmo, e eu, que fazia naquele lugar?

- Muito simples: estava apaixonado pela Júlia.

sábado, 1 de maio de 2010

ELUCUBRAÇÕES DE JAMES JOYCE

Ulisses

Laura

Laura iria apresentar sua tese numa hora em que eu tinha um compromisso fundamental, essencial para a minha ambição de ser professor. Uma pena, pois queria estar presente para vê-la brilhar. Na manhã desse dia, enquanto aguardávamos o momento de defender cada um seu destino, conversamos sobre o Ulisses, de James Joyce. Tudo porque lhe disse despretensiosamente que não entendia por que aquela leitura era tão demorada.

- E tudo se comprime num único dia, o 16 de junho de 1904.

- Um único dia?

-
É o dia de Leopold Bloom. O Bloomsday, Carlinhos, o único dia da história que tem um dono.


- Deixa-me memorizar: 16 de junho de 1904.

- Foi o que a senhorita Dunne datilografou, e era uma quinta-feira.

- Em todas as folhinhas?

- Em todas as folhinhas da Irlanda, pelo menos.

-Mas, afinal, que faz essa leitura ser tão demorada?

- Às vezes a gente tem de consultar várias obras para conferir como foi o fim de Pirro ou tem de folhear muitos volumes shakespearianos para saber que "Perdita" não é nenhuma personagem que se perdeu na "Tempestade", nem uma bruxa de "Machbeth".

- Muito interessante isso, saber o fim de Pirro e sobre "Perdita". E quem era "Perdita", afinal?

- A filha de "Leonte" e "Hermíone", em "Conto de Inverno". Quanto a "Pirro", há uma versão de que morreu porque lhe atiraram uma telha na cabeça, na cidade de Argos.

- Morrer assim não deixa de ser uma vitória... do azar.

Elucubrações

Joyce

- Você me disse uma vez que "Ulisses" tem passagens deliciosas. Cite uma...

- O nome de Anne Hathaway, mulher de Shakespeare, pode dar um trocadilho malicioso, “Anne hath a way”.

- Isso é um trocadilho malicioso?

- Sim, “Anne tem um caminho”. Joyce via Anne Hathaway por toda parte na obra shakespeariana, até como "megera domada". As ilações de Joyce parecem decorrer somente da sua leitura de Shakespeare, sem base em fatos conhecidos. A afirmação mais audaciosa de Joyce é a de que Anne, que era oito anos mais velha que Shakespeare, cometeu adultério com o tio deste, Richard Shakespeare, o que teria a ver com a Cena II, do Ato I, de “Ricardo III”.

- Explica isso...

- Na peça, o "Duque de Gloucester", antes de se tornar "Ricardo III", vai ao velório do rei "Henry VI", que ele assassinara, para conquistar o coração da lacrimosa "Lady Anne", enteada do morto e viúva do príncipe "Edward IV", que antes "Gloucester" também assassinara. Nessa conquista, "Gloucester" admite os dois assassinatos, alegando que a beleza de "Lady Anne" é o que o levara a cometê-los. "Lady Anne" deixa-se seduzir e dá-lhe sua mão em casamento, iniciando uma conflituosa relação de amor, ódio e sadismo.

- E no "Ulisses?"

- O personagem “Stephan Dedalus” afirma que a viúva “Lady Anne” é Anne Hathaway, a esposa, e que “Richard III” (“Gloucester”) é Richard Shakespeare, o tio do autor da peça. Diz “Stephan Dedalus”, na Biblioteca Nacional:

"(...) Richard, um corcunda filho-da-puta, bastardo, faz corte à viúva Anne (o que não se esconde sob um nome?), a seduz e a conquista, uma viúva assanhada filha-da-puta). (...) Richard é o único rei destituído do respeito de Shakespeare (...)."

Para “Stephan Dedalus”, esse adultério é um problema que Shakespeare sempre carregou, até para o túmulo, cujos versos, amaldiçoando quem removesse suas pedras, seriam uma tentativa de evitar que Anne Hathaway fosse enterrada a seu lado.

Kilkenny e Kilkerry

- Você sabia, Carlinhos, que Kilkenny, tantas vezes citada no "Ulisses", é a menor cidade da Irlanda, seja em área, seja em população?

- Neste momento, para mim solene, confesso humildemente que nunca tinha ouvido falar em Kilkenny. Nem cidade, nem coisa alguma com esse nome glorioso. Kilkerry, sim, já ouvi, mas Kilkenny, não. Tenho um amigo, muito legal, chamado Kilkerry.

- Pedro Kilkerry?

- Sobrinho dele.
Pedro Kilkerry

- Kilkenny é uma cidade medieval, às margens do rio Nore. Aliás, cidade de gente famosa: Oliver Cromwell, Jonathan Swift e George Berkeley.



- Tudo isso é muito erudito para mim.

- Basta você se interessar e dedicar ao assunto uma parte do seu tempo.

- O tempo é a minha matéria...