UMA VAGA LEMBRANÇA
Numa cidadezinha distante, nas bandas mineiras de antanho, havia um alfaiate, o Zé, que gostava de comentar sobre religião, ciência e filosofia. Muitos frequentavam a alfaiataria só para ouvir suas dissertações bem-humoradas e eruditas. Não sei explicar como adquiriu tanta cultura, num ambiente em que os temas raramente ultrapassavam o futebol e os concursos de beleza. Alguns diziam, com malícia, que passava as noites acordado, estudando o que iria comentar de dia. Pode ser, mas o Zé era muito bom no improviso, fazendo digressões sobre questões pontuais e inesperadas, que sempre surgiam no meio de uma conversa qualquer.
Tema complicado, se ciência ou filosofia, era exatamente com ele. Mito da caverna e mito da linha dividida, que chamava de "as alegorias de Platão", evolução das espécies e seleção das variações vantajosas, o espaço-tempo de Einstein, a importância do Código de Napoleão, Avicena, Isaac Newton Faz-Tudo... Ah, a universalidade de Voltaire, cujo nome o Zé só mencionava por extenso, François Marie Arouet de Voltaire, a seu juízo o mais brilhante e divertido conversador de todos os tempos e o mais prolífico de todos os escritores, com uma impressionante obra de trinta mil páginas. Trinta mil páginas!
- E Voltaire ainda tinha tempo para conversar!
Jamais me esquecerei das histórias engraçadas sobre personagens históricas, que ele contava sacudindo a tesoura ou enfiando a linha na agulha, como a do pretensioso Empédocles de Agrigento (“tudo é formado de água, ar, terra e fogo”), que, para provar sua imortalidade, atirou-se do Etna, desaparecendo cratera adentro; ou a do irritado Heráclito de Eféso (“a natureza ama esconder-se”), que só se alimentava de ervas e um dia enterrou-se no esterco, até o pescoço, para curar-se de uma hidropsia. Esclarecia o Zé, com toda a autoridade, que a hidropsia é a retenção patológica de água na cavidade abdominal. Ali Heráclito permaneceu resignadamente até a morte, “pois os médicos são ignorantes e não conseguem promover uma seca após uma inundação”.
- Morreu na merda, arrematava divertidamente o Zé.
- E a história de Hipassus?
- Hipassus cometeu o crime de divulgar a existência dos números irracionais, um segredo pitagórico, e foi atirado ao mar pelos seus colegas da Escola de Pitágoras. Numa outra versão, mais amena, Hipassus foi apenas expulso da comunidade, mas Pitágoras fez erigir um sepulcro com o seu nome.
Lembro-me também da insistência do Zé sobre a importância de ser assertivo.
- O bobo passa por sábio , se falar pouco, mas com estilo e assertividade. Com assertividade, não importa o assunto. Não importa mesmo!
Seus exemplos prediletos de assertividade estavam na história e na literatura:
Lamentando: Que fatalidade, meu pai!
Hesitando: Ser ou não ser, eis a questão.
Fulgurando: O estado sou eu.
Deduzindo: Penso, logo existo.
Triunfando: Vim, vi e venci.
Morrendo: Quero morrer no meu posto!
Seduzindo: Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam.
Liderando: Sigam-me os que forem brasileiros!
Negociando: Meu reino por um cavalo!
Metamoforizando: Deus me deu sangue de Otelo para ter ciúme da minha pátria.
O Zé, perdido no interior do Brasil, reunia plateias sem saber cantar nem jogar futebol, contava histórias sobre a inteligência humana e sabia mostrar o lado fascinante da cultura. Houve por aí Zé da Zilda, Zé de Anchieta, Zé Alencar e Zé de Alencar, Zé Kéti, Zequinha e Zé de Abreu, Zé do Patrocínio, Superzé Maria, Zé Bonifácio de Andrada e Silva, Zé Boquinha, Zequinha Sarney, Zé de Arimateia, Zé Bové, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José, Maria José e inúmeros outros Zés, qualificados e bem-sucedidos.
- Do alfaiate, que era só e exclusivamente Zé, ficou apenas uma vaga lembrança...
sábado, 17 de abril de 2010
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Um comentário:
O Zé? Pois sim! Tá mais vivo do que nunca. VIVINHO DA SILVA, sim senhor! Continua contando as suas estórias maravilhosas, cheias de
bom humor e erudição. Viva o Zé, com suas "Lições de sabedoria"....
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