quarta-feira, 1 de abril de 2009

PEGUREIRO DO BAIXO LEBLON

PROFESSOR DE ECONOMIA

Quando trabalhava na WED, tive de dar uma palestra em Buenos Aires, saindo completamente das minhas atribuições. Fazer o quê? Preparar rapidamente uma apresentação, arrumar a mala e partir para a aventura. Isso foi, exatamente. Apresentei-me ao congresso no seu dia inaugural, quando me informaram que minha palestra seria apenas na sexta-feira, a última da programação. Percorrendo algumas salas despreocupadamente, percebi que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados; eram sessões numerosas e simultâneas, que iam desde os problemas com a camada de ozônio até o cálculo do poder calorífico do álcool combustível, como diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.
Eu não tinha por que me preocupar, pois, palestrante de último dia, falaria para meia dúzia de testemunhas ociosas, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas. Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Quando chegasse minha vez, era concluir rapidamente a apresentação, agradecer humildemente a presença dos que estivessem me honrando com sua generosa audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Afinal, pensei, apresentar-me em congressos nunca fez parte de minhas habilitações, e estava ali apenas para cumprir uma determinação dos meus superiores, motivada não sei por quais judiciosas e importantes razões.

Foi com esse espírito, aguardando o último dia, que decidi conhecer alguma coisa de Buenos Aires: para além de um passeio pelos bosques de Palermo, vi uma excelente "Traviata" no Teatro Colón, duas vezes fui a uma casa de tangos e de outra feita compareci a um evento que homenageava Astor Piazolla, no Torquato Tasso.

Salão nobre
Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.

- Salão nobre, por que salão nobre?


- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.


Foi assim que no Congresso Mundial de Buenos Aires expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre a aplicação da curva de utilidade de Bernoulli nos cálculos econômicos que orientam uma decisão a ser tomada em regime de incerteza.

Quando regressei ao Brasil, soube que a WED havia recebido uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha participação, e eu, em particular, colhi das mãos de minha secretária uma carta elogiosa do presidente do Congresso Mundial.
Claro que o episódio me deixou orgulhoso e satisfeito, mas dele, decorridos três anos, nem me lembrava mais. Até que fui solicitado a comparecer ao Departamento de Economia.

- O professor chefe quer falar com você.

Emergência

Já tinha ouvido sobre surpresas agradáveis. Posso agora afirmar que são agradáveis mesmo. Estênio Florão pediu-me que assumisse duas matérias da Economia durante o semestre, em caráter de emergência. Tudo porque o professor Kurtis, responsável pelas aulas de "Projetos de Risco" e de "Negociações Contratuais", tinha decidido regressar para a Europa e acabara de pedir demissão.

- Por que me convidam, assim, sem mais nem menos?


- Assisti por acaso à sua palestra de Buenos Aires e acho que você pode nos ajudar. Temas novos, com pouca gente habilitada. Com perdão do trocadilho, é melhor correr um bom risco, com você, do que cancelar as cadeiras. Ah, se você for bem avaliado no semestre, quem sabe não o efetivemos nas duas cadeiras?

- Vou ser professor!

Uma caixa de velhos escritos, muitos programas ainda arquivados no computador, livros e apostilas da minha passagem pela Universidade do Texas, tudo isso me servia novamente.
Logo encaixei a ideia de abandonar o curso de Física, pois, no portfólio das minhas ambições, ser professor equivalia à carreira de físico.

- Professor, agora, e não um futuro físico!

Bola de Sebo

Laura é a pessoa mais culta que conheci pessoalmente; às vezes me propunha temas culturais, com muito proveito para mim. Como no dia em que me perguntou se conhecia Guy de Maupassant.

- Guy de Maupassant?

- Histórias abundantes, sobre todos os tipos e situações. Três centenas de contos,
a seu tempo talvez o autor mais lido no mundo. Morreu com 43 anos, apenas.

Soube resumir para mim duas de suas histórias. Achei "O Colar de Diamantes" meio ingênuo, sei lá. O conto da mulher bela e admirada, que, numa festa de rara felicidade, perde o colar de diamantes que pedira de empréstimo à amiga. Isso tem consequências graves: a pobre mulher sacrifica a vida para repor o colar perdido, sem saber que se tratava de uma joia falsa.

Guy de Maupassant

"Bola de Sebo", outro dos contos de Maupassant, pareceu-me, este sim, obra de gente grande. Uma história que se passa na época da guerra franco-prussiana. Na carruagem francesa, uma prostituta, que atende pelo nome pejorativo de Bola de Sebo, é hostilizada pelos demais passageiros, que são senhoras e senhores burgueses, de muita hierarquia e nenhum valor.
Em certo instante da viagem um oficial do exército invasor detém a carruagem e ameaça retê-la indefinidamente, a não ser que Bola de Sebo concorde em passar uma noite com ele. Isto não está nos planos da prostituta, que, entretanto, é pressionada a ceder àquele desígnio pelos demais passageiros, que nesse mister usam súplicas e expedientes de persuasão e hipocrisia.
Após muito relutar, Bola de Sebo percebe que não tem saída, entrega-se ao comandante, que, uma vez satisfeito, autoriza o prosseguimento da viagem.
Como se nada tivesse ocorrido, os passageiros retomam a atitude superior e hostil, desprezando, como antes, aquela pecadora vulgar.

No tempo das diligências

"Bola de Sebo" é o conto do trocadilho “Loiseau vole” e “l’oiseau vole”, que Maupassant construiu porque havia um Loiseau entre os passageiros. Em francês “voler” significa tanto voar como roubar, foi o que Laura me explicou.

- O senhor Loiseau rouba?

- Isso eu não sei, não, senhor. Eu apenas disse que o pássaro voa.

"Bola de Sebo", na verdade uma lenda urbana, inspirou muitas narrativas, entre elas o filme "No Tempo das Diligências" (“Stagecoach”), de John Ford, de 1939.

- Fez sucesso?

- Muito, como todos os filmes de John Ford. "Stagecoach" foi visto 40 vezes por Orson Welles, que o considerou a síntese de todos os “westerns”.


A estrela do poeta

Laura

Laura surpreendeu-se com meu redobrado empenho e entusiasmo com a oportunidade de ser professor, mas sempre se colocou a meu lado, incentivando-me e discutindo comigo a melhor forma de conduzir uma aula, pois ela própria tinha vontade de ser professora.Vivíamos momentos decisivos, eu, navegando num mar de tantas peripécias, e ela, a aguardar o momento de defender a tese da relatividade, mas apesar disso, ou até por causa disso, nosso amor recíproco e solidariedade só faziam aumentar. Nós nos bastávamos, eis tudo.

- Não sei não, mas sempre devia haver alguém como você perto da gente.
Pegureiro do Baixo Leblon
- Muito obrigada. Alguma razão específica?

- Você é a estrela do poeta, apontando o caminho ao pegureiro.

- Ora viva! Você, um pegureiro do Leblon...

2 comentários:

cirandeira disse...

Oi Remo,você é mesmo muito modesto, não? Como bom observador, já percebeu que a esmagadora maioria dos textos publicados em meus blogs,é de autoria de nomes que respeito e gosto muito.Acho que não faço nenhum favor em publicá-los,pelo contrário,para mim é uma obrigação que me dá prazer.Muitas vezes acho até que deveria apresentá-los de uma maneira mais completa, mas ao mesmo tempo, tenho receio de tornar-me "cansativa",porque percebo que a maioria das pessoas não está nem aí,não está interessada em ler nada,preferem "abobrinhas". Para mim é uma honra e um prazer citar o seu nome e qualquer trabalho seu.Ainda acho que preciso fazer uma postagem mais completa especificamente sobre o Marighella. Futuramente.
Quanto ao "Pegureiro do Baixo Leblon" (um vaqueiro urbanizado), gostei muito.Um funcionário aparentemente sem grandes pretensões,humilde até,alçado a um patamar superior, inesperadamente(embora o acalentasse secretamente).O autor, digo, VOCÊ, escreve de uma forma que nos prende do começo ao fim;o texto vai num crescendo,passando por situações inusitadas e nos remetendo a outras estórias que se entrelaçam, mas o narrador("vossa excelência"!)consegue manter a sua, o jogo é perfeito: Maupassant, Ford e Remo Mannarino. Meus parabéns! Pedí a minha irmã para procurar "O Homem Horizontal" nas livrarias de São Paulo, será que ela encontrará? Um grande abraço.

Fabrice disse...

Bonsoir,

La richesse de vos posts me laisse penser que Fernand BRAUDEL en personne aurait aimé tout comme moi ce soir, venir vous lire .
Bravo et félicitations pour vos écrits. Les photographies le sont aussi à bon escient.
Cordialement à vous