SISTEMAS NÃO LINEARES
Edward Lorentz, um professor do Massachusetts Institute of Technology, o MIT, havia desenvolvido um conjunto de equações matemáticas para estudar a circulação atmosférica. Seu modelo foi construído de maneira que o computador calculava os valores das variáveis atmosféricas de um ponto no tempo, que serviam como dados de entrada para o cálculo dos valores do ponto seguinte; desse modo Lorentz obteve uma longa sequência de resultados, que o computador foi imprimindo ponto a ponto, até que um defeito da máquina interrompeu o processo.
Assim eram os computadores, ainda rudimentares, no distante ano de 1960.
Sanado o problema do computador, Lorentz decidiu não reiniciar os cálculos do ponto zero, mas de um ponto intermediário, adotando para o mesmo os valores anteriormente calculados pelo computador. Observou, com surpresa, que na nova computação os valores obtidos para os pontos subsequentes foram se afastando progressivamente dos pontos, correspondentes, encontrados no cálculo anterior, até que, afinal, tornaram-se absolutamente discrepantes.
- Como isso pôde ocorrer, se as equações eram as mesmas e os valores para iniciar a nova sequência haviam sido calculados pelo próprio computador?
Após investigar a questão exaustivamente, Lorentz descobriu que o computador imprimia seus valores com três casas decimais (0,506 era o valor relativo de uma variável ao início da segunda sequência), mas na hora de calcular operava com seis algarismos após a vírgula (0,506127, no caso em questão). Havia uma diferença invisível, de 0,000127, entre os valores dos pontos iniciais das duas sequências que estavam sendo comparadas - no caso, uma diferença de 0,025%, que todos consideravam desprezável, até o computador.
Foi assim que se descobriu que as condições iniciais nos fenômenos complexos, como os meteorológicos, podem ter influências importantes nos resultados, muito para além do que podemos imaginar à primeira vista.
Pois a diferença aparentemente insignificante era significante demais!
De fato, os sistemas não lineares têm a capacidade de ampliar superlativamente todos os desvios, impondo resultados erráticos, que parecem se subordinar ao acaso ou aos desígnios do caos e de seus estranhos atratores.
- Um sopro, por mais débil e insignificante, ao cabo de certo tempo pode ter um efeito devastador.
Exemplo
Calculemos, por exemplo, o número que se obtém elevando 14,251 à oitava potência; a seguir, repitamos o cálculo arredondando o número, a ser elevado a essa potência, de 14,251 para 14,250. Um insignificante desvio de 0,001 ou 0,1%. Será mesmo insignificante?
14,251 elevado à oitava potência = 1.701.228.778
14,250 elevado à oitava potência =1.700.274.004
A diferença entre os dois resultados é de 954.774, número equivalente a quase um bilhão de vezes o desvio inicial, de 0,001.
Conclusão
Nem sempre 14,251 é mais ou menos a mesma coisa que 14,250, pelo menos se forem números a serem usados em cálculos exponenciais, como foi o caso do exemplo.
Lorentz escreveu um artigo sobre essa questão, que se tornou célebre, com o seguinte título:
“Previsibilidade: o bater de asas de uma borboleta no Brasil provoca um tornado no Texas?”
Por causa desse artigo, a influência das condições iniciais nos fenômenos não lineares passou a ser conhecido como Efeito Borboleta. O passado não é uma fábrica de futuros, pois tudo que acontece é construído passo a passo, e de forma não linear, de modo que uma pequena alteração nas condições iniciais de um fenômeno pode implicar uma mudança importante no seu resultado final.
As ideias de Lorentz se alinham com as do francês Henri Poincaré, que em 1900 deu início à teoria do caos, reconhecendo, desde então, que a maioria dos fenômenos se interrelaciona mediante equações não lineares, o que torna maior a incerteza do homem perante o Universo. O caos está presente extensivamente, seja na meteorologia, nas flutuações dos preços nas bolsas de valores, nas correntezas dos rios ou no crescimento das populações animais. Pois em quase tudo há realimentação interna, interação constante e toda sorte de perturbações não lineares.
quarta-feira, 29 de abril de 2009
sábado, 25 de abril de 2009
A IMAGEM DO UNIVERSO (22/n)
TYCHO BRAHE
A teoria heliocêntrica de Copérnico, apresentada na primeira metade do século XVI, revogava a ideia da centralidade e fixidez da Terra, mantendo, porém, a concepção de um mundo supralunar imutável, constituído pela “quinta essência”, um elemento diferente de água, ar, terra e fogo, existentes na Terra. Também não alterava o dogma dos movimentos planetários circulares e uniformes.
Outros conhecimentos e descobertas seriam ainda necessários para complementar a revolução copernicana, eliminando de modo cabal as concepções de Aristóteles. A primeira grande contribuição para isso foi dada por Tycho Brahe, por suas observações que feriam a reputação do sistema supralunar incorruptível e pelos dados astronômicos que colheu com precisão meticulosa, ensejando a Johannes Kepler a oportunidade de estabelecer as leis dos movimentos planetários.
Seria um novo planeta?
Nascido em uma família rica da Dinamarca, Tycho Brahe (1546-1601) aos treze anos foi enviado para a Universidade de Copenhague e aos dezesseis, para a Universidade de Leipizig, antes de passar pelas universidades de Rostok e Basileia. Em 1566, com vinte anos, por causa de uma disputa intelectual, envolveu-se num duelo com seu primo Manderup Parsberg, do qual saiu sem um pedaço do nariz, que foi substituído por uma prótese de metal, que escondia perfeitamente a parte mutilada.
A família o queria estudando leis. Cedo, porém, Tycho adquiriu gosto pela astronomia, depois que, em 1560, com apenas 14 anos, observou um eclipse parcial do Sol. Da observação dos astros, passou à medida de suas distâncias, sempre com esmero e precisão.
Tycho Brahe tornou-se conhecido por causa de uma estrela supernova, que observou em 11 de novembro de 1572. A "estrela de Tycho Brahe", como ficou conhecida, foi observada por astrônomos e sábios de toda a Europa até março de 1574, quando desapareceu.
- Seria um meteoro? Seria um novo planeta?
Feitas todas as verificações, constatou-se que era uma "estrela nova", conforme denominação que recebeu do próprio Tycho Brahe, num livreto, de 1573, a que deu o título de "De nova stella".
Naquela época não se tinha nenhuma explicação para uma supernova, nem havia conhecimento suficiente para fazer alguma hipótese a esse respeito. Seu aparecimento, contudo, derrubava a premissa de Aristóteles de que o mundo supralunar era imutável, ou, como afirmava, "incorruptível."
- Como imutável, se nele podia surgir uma supernova?
O que é uma supernova?
A maior parte da matéria do Universo consiste de hidrogênio, que se reúne em grande quantidade para formar as estrelas. Numa temperatura muito elevada, quatro átomos de hidrogênio fundem-se num átomo de hélio, liberando energia. É o que ocorre no núcleo das estrelas, onde de início se produz hélio, seguindo-se com o tempo a produção dos outros elementos, como carbono e oxigênio.
Nesse processo, a massa da estrela é puxada da periferia para seu centro, devido à atração gravitacional, que é contrabalançada pela pressão exercida do centro para a periferia em decorrência das altas temperaturas no núcleo da estrela, onde vai se dando a fusão dos elementos.
Um equilíbrio que se rompe depois de alguns bilhões de anos. Pois, perdendo energia por irradiação de calor, a estrela entra finalmente num estágio de degeneração e acaba explodindo, quando suas camadas externas são ejetadas a milhares de quilômetros por segundo. O resultado é um gigantesco objeto luminoso, chamado de estrela supernova, que, sozinha, pode brilhar, durante um curto espaço de tempo, com intensidade maior que uma galáxia de bilhões de estrelas.
A estrela vista por Tycho sempre esteve lá, mas só se tornou grande e suficientemente luminosa quando se tornou uma supernova.
Cometa
Em 1577, um cometa de longa cauda apareceu no firmamento. Brahe demonstrou, com provas, que o astro passava a uma distância mais que seis vezes a distância entre a Terra e a Lua, atravessando as supostas esferas invisíveis, numa nova contradição com a premissa de um mundo supralunar, divinal e imutável.
Castelo do Céu
Em 1576, Tycho Brae recebeu de presente de Frederico II, rei da Dinamarca, a ilha de Hven, onde construiu um observatório, Uraniborg (Castelo do Céu), no qual fez uso de uma variedade de instrumentos (quadrantes, rodas, sextantes e esferas amilares rotativas), para perscrutar o céu. Construiu adicionalmente uma instalação subterrânea, para guardar os instrumentos, além de biblioteca, gráfica, laboratório de alquimia, fornalha e prisão para servos relapsos.
Uraniborg cresceu a ponto de tornar-se uma cidade, enquanto Tycho elevava a astronomia observacional a um estágio sem precedente, advindo-lhe em consequência enorme reputação internacional.
Encontro com Kepler
Em 1588, com a morte de Frederico II, Tycho Brahe perdeu o financiamento de suas atividades, sua casa e posição. Só em 1597 mudou-se para Praga, onde chegou carregando seus instrumentos, ficando sob a proteção do imperador Rodolfo II. Foi lá que contratou como assistente o astrônomo alemão Johannes Kepler, a quem, antes de morrer, em 1601, confiou todos os seus dados sobre as estrelas e um cuidadoso trabalho sobre o planeta Marte.
No leito de morte, Brahe repetiu várias vezes para Kepler:
- Que eu não tenha vivido em vão.
Realmente não viveu em vão, pois, trabalhando com os dados de Tycho Brahe, Kepler iria derrubar a premissa dos movimentos circulares e uniformes, ao publicar em 1609 o livro "A Astronomia Nova", com as três leis dos movimentos planetários.
Sistema de Tycho Brahe
Cabe registrar que Brahe não aderiu ao sistema heliocêntrico, apesar de possuir um exemplar do "De Revolutionibus Orbium Coelestium" e de ser receptivo às ideias de Copérnico. Não conseguia imaginar uma explicação para a gravidade sem a centralidade e fixidez da Terra, nem aceitava nenhuma solução que contrariasse as Escrituras. Foi por isso que concebeu um sistema híbrido, esdrúxulo, que alguns chamam de geo-heliocêntrico: a Terra fixa, no centro, com o Sol e a Lua girando em seu redor; todos os planetas, exceto a Terra, girando em torno do Sol.
O sistema geo-heliocêntrico, que chegou a ter boa aceitação, na época, lembrava o de Heraclides do Ponto (que considerava Vênus e Mercúrio girando em torno do Sol e tudo o mais girando em torno da Terra).
Seja, como for, a importância de Tycho Brahe está nos dados que obteve e nas observações da supernova e do cometa de 1577, que contribuíram para demonstrar a inexistência do mundo supralunar divinal e, pelos dados que serviram a Kepler, o erro de considerar os planetas dotados de movimentos circulares uniformes.
A teoria heliocêntrica de Copérnico, apresentada na primeira metade do século XVI, revogava a ideia da centralidade e fixidez da Terra, mantendo, porém, a concepção de um mundo supralunar imutável, constituído pela “quinta essência”, um elemento diferente de água, ar, terra e fogo, existentes na Terra. Também não alterava o dogma dos movimentos planetários circulares e uniformes.
Outros conhecimentos e descobertas seriam ainda necessários para complementar a revolução copernicana, eliminando de modo cabal as concepções de Aristóteles. A primeira grande contribuição para isso foi dada por Tycho Brahe, por suas observações que feriam a reputação do sistema supralunar incorruptível e pelos dados astronômicos que colheu com precisão meticulosa, ensejando a Johannes Kepler a oportunidade de estabelecer as leis dos movimentos planetários.
Seria um novo planeta?
Nascido em uma família rica da Dinamarca, Tycho Brahe (1546-1601) aos treze anos foi enviado para a Universidade de Copenhague e aos dezesseis, para a Universidade de Leipizig, antes de passar pelas universidades de Rostok e Basileia. Em 1566, com vinte anos, por causa de uma disputa intelectual, envolveu-se num duelo com seu primo Manderup Parsberg, do qual saiu sem um pedaço do nariz, que foi substituído por uma prótese de metal, que escondia perfeitamente a parte mutilada.
A família o queria estudando leis. Cedo, porém, Tycho adquiriu gosto pela astronomia, depois que, em 1560, com apenas 14 anos, observou um eclipse parcial do Sol. Da observação dos astros, passou à medida de suas distâncias, sempre com esmero e precisão.
Tycho Brahe tornou-se conhecido por causa de uma estrela supernova, que observou em 11 de novembro de 1572. A "estrela de Tycho Brahe", como ficou conhecida, foi observada por astrônomos e sábios de toda a Europa até março de 1574, quando desapareceu.
- Seria um meteoro? Seria um novo planeta?
Feitas todas as verificações, constatou-se que era uma "estrela nova", conforme denominação que recebeu do próprio Tycho Brahe, num livreto, de 1573, a que deu o título de "De nova stella".
Naquela época não se tinha nenhuma explicação para uma supernova, nem havia conhecimento suficiente para fazer alguma hipótese a esse respeito. Seu aparecimento, contudo, derrubava a premissa de Aristóteles de que o mundo supralunar era imutável, ou, como afirmava, "incorruptível."
- Como imutável, se nele podia surgir uma supernova?
O que é uma supernova?
A maior parte da matéria do Universo consiste de hidrogênio, que se reúne em grande quantidade para formar as estrelas. Numa temperatura muito elevada, quatro átomos de hidrogênio fundem-se num átomo de hélio, liberando energia. É o que ocorre no núcleo das estrelas, onde de início se produz hélio, seguindo-se com o tempo a produção dos outros elementos, como carbono e oxigênio.
Nesse processo, a massa da estrela é puxada da periferia para seu centro, devido à atração gravitacional, que é contrabalançada pela pressão exercida do centro para a periferia em decorrência das altas temperaturas no núcleo da estrela, onde vai se dando a fusão dos elementos.
Um equilíbrio que se rompe depois de alguns bilhões de anos. Pois, perdendo energia por irradiação de calor, a estrela entra finalmente num estágio de degeneração e acaba explodindo, quando suas camadas externas são ejetadas a milhares de quilômetros por segundo. O resultado é um gigantesco objeto luminoso, chamado de estrela supernova, que, sozinha, pode brilhar, durante um curto espaço de tempo, com intensidade maior que uma galáxia de bilhões de estrelas.
A estrela vista por Tycho sempre esteve lá, mas só se tornou grande e suficientemente luminosa quando se tornou uma supernova.
Cometa
Em 1577, um cometa de longa cauda apareceu no firmamento. Brahe demonstrou, com provas, que o astro passava a uma distância mais que seis vezes a distância entre a Terra e a Lua, atravessando as supostas esferas invisíveis, numa nova contradição com a premissa de um mundo supralunar, divinal e imutável.
Castelo do Céu
Em 1576, Tycho Brae recebeu de presente de Frederico II, rei da Dinamarca, a ilha de Hven, onde construiu um observatório, Uraniborg (Castelo do Céu), no qual fez uso de uma variedade de instrumentos (quadrantes, rodas, sextantes e esferas amilares rotativas), para perscrutar o céu. Construiu adicionalmente uma instalação subterrânea, para guardar os instrumentos, além de biblioteca, gráfica, laboratório de alquimia, fornalha e prisão para servos relapsos.
Uraniborg cresceu a ponto de tornar-se uma cidade, enquanto Tycho elevava a astronomia observacional a um estágio sem precedente, advindo-lhe em consequência enorme reputação internacional.
Encontro com Kepler
Em 1588, com a morte de Frederico II, Tycho Brahe perdeu o financiamento de suas atividades, sua casa e posição. Só em 1597 mudou-se para Praga, onde chegou carregando seus instrumentos, ficando sob a proteção do imperador Rodolfo II. Foi lá que contratou como assistente o astrônomo alemão Johannes Kepler, a quem, antes de morrer, em 1601, confiou todos os seus dados sobre as estrelas e um cuidadoso trabalho sobre o planeta Marte.
No leito de morte, Brahe repetiu várias vezes para Kepler:
- Que eu não tenha vivido em vão.
Realmente não viveu em vão, pois, trabalhando com os dados de Tycho Brahe, Kepler iria derrubar a premissa dos movimentos circulares e uniformes, ao publicar em 1609 o livro "A Astronomia Nova", com as três leis dos movimentos planetários.
Sistema de Tycho Brahe
Sistema de Tycho Brahe ou geo-heliocêntrico
Lua e Sol em torno da Terra; os outros planetas, em torno do Sol
Lua e Sol em torno da Terra; os outros planetas, em torno do Sol
Cabe registrar que Brahe não aderiu ao sistema heliocêntrico, apesar de possuir um exemplar do "De Revolutionibus Orbium Coelestium" e de ser receptivo às ideias de Copérnico. Não conseguia imaginar uma explicação para a gravidade sem a centralidade e fixidez da Terra, nem aceitava nenhuma solução que contrariasse as Escrituras. Foi por isso que concebeu um sistema híbrido, esdrúxulo, que alguns chamam de geo-heliocêntrico: a Terra fixa, no centro, com o Sol e a Lua girando em seu redor; todos os planetas, exceto a Terra, girando em torno do Sol.
O sistema geo-heliocêntrico, que chegou a ter boa aceitação, na época, lembrava o de Heraclides do Ponto (que considerava Vênus e Mercúrio girando em torno do Sol e tudo o mais girando em torno da Terra).
Seja, como for, a importância de Tycho Brahe está nos dados que obteve e nas observações da supernova e do cometa de 1577, que contribuíram para demonstrar a inexistência do mundo supralunar divinal e, pelos dados que serviram a Kepler, o erro de considerar os planetas dotados de movimentos circulares uniformes.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
RIA, PALHAÇO
King's College
Laura defendeu sua tese com o êxito esperado. Aprovado o trabalho, de Sitter fez um discurso elogioso, enaltecendo o preparo e competência da candidata e, no ato, passou-lhe uma carta da Embaixada Britânica, com uma proposta que físico algum ousaria recusar: trabalhar no King’s College, um dos trinta e um colégios da Universidade de Cambridge, em Londres.
- Perspectivas reais de uma carreira promissora, com boa remuneração e excepcional ambiente de trabalho.
Caso aceitasse, teria de viajar em menos de uma semana. De Sitter ainda acrescentou:
- Se rejeitar a Inglaterra, há um lugar de professor para você neste Departamento de Física.
- Ridi, pagliaccio!
Fomos ver "Os Palhaços", de Ruggero Leoncavallo, uma das óperas mais representadas no mundo. Era a nossa despedida e, como sempre, uma maravilhosa iniciativa da Laura. Gostei muito, desde a cena do Prólogo.
- Vocês ouvirão gritos de dor e de raiva e verão as manifestações dolorosas do ódio. Prestem atenção às nossas almas, mais que às nossas fantasias, pois somos homens de carne e osso, e respiramos, tanto quanto vocês, o ar deste mundo desamparado. Já lhes expus o conceito; vejam então como o processo se desenvolve. Encenemos, pois!
Canio tem uma companhia teatral que se apresenta nas regiões mais pobres da Calábria, chegando aos vilarejos com muita fanfarra e estardalhaço. Nessas andanças, conhece Nedda, recolhe-a da rua, alimenta-a, casa-se com ela e faz dela a atriz que representa no palco a mulher que trai o palhaço. Um dia, Canio percebe que é palhaço também na vida real, pois descobre que Nedda tem um amante, Silvio, com o qual pretende fugir. Por isso, no camarim, Canio canta seu desespero, quando se prepara para o espetáculo. Traído na peça, a cara pintada, traído na vida real, palhaço de cara limpa, ele, exatamente ele!
- Veste a fantasia! Ria, palhaço, de seu amor arruinado! Ria da dor que está envenenando seu coração!
Naquela noite, porém, não houve simulação na hora de matar a Colombina. O desvairado Canio aproveita a cena, agarra a mulher e a apunhala de verdade. Morre a infiel, da peça e da vida real. Sílvio, que corre da plateia em defesa de Nedda, é também apunhalado por Canio, que, transtornado e exaurido, deixa cair o punhal.
Neste ponto, o Prólogo dirige-se a ambos os públicos (o da peça, representado pelo coro, e o verdadeiro, que éramos nós, sentados na plateia) e arremata:
- La commedia è finita.
- Laura...
- Sim, Carlinhos.
- Não se deve confundir "Si può... Si può..." com "Cipó ... Cipó..."
Mais um Prêmio Nobel
Para além dos nossos momentos inesquecíveis, ficaram-me da Laura apenas um resumo da teoria da relatividade e um arrazoado que produziu sobre Shakespeare. Confortou-me a ideia de que daquela data em diante pesquisaria sobre tudo isso na própria Inglaterra, sem ter de consumir boa parte do seu salário na importação de livros a câmbio desfavorecido.
Escreveu-me, após alguns dias, dando conta de que estava se sentindo muito bem no King's College, que tem reputação internacional e recebe profissionais de todas as partes do mundo.
Seu trabalho consistiria inicialmente de uma pesquisa sobre resistência de materiais, que interessava à cadeira de Mecânica Vibratória, da qual, inicialmente, seria assistente e depois, professora adjunta.
Na carta mencionava quatro professores do King's College laureados no século XX com o Prêmio Nobel de Física, a saber, Charles G.. Barkla, em 1917, pelos seus trabalhos sobre raios-X; Owen Richardson, em 1928, pelo seu trabalho sobre emissão termiônica; Edward Appleton, em 1947, pelo seus estudos sobre a atmosfera; e Maurice Wilkins, em 1962, que dividiu o prêmio com James Watson e Francis Crick, pela determinação da estrutura do DNA.
Das próximas vezes, acrescentou, poderíamos nos comunicar por email, quando tivesse se organizado minimamente e dispusesse de um computador. Respondi imediatamente, garantindo-lhe que ficaria torcendo para que fosse para ela o próximo Prêmio Nobel do King’s College, o primeiro do século XXI, o que, sobre aumentar o prestígio da Universidade de Cambridge, haveria de deixar mais alegre e mais aquecido este meu pobre peito solitário.
L’oiseau vole
Resumindo tudo numa única e dolorosa palavra, eu estava só, mais uma vez. Com a Cecília, vencera - nos o tédio; com a May, nem sei direito, tudo ruiu no âmbito de uma confusão para lá de inexplicável; com a Laura, separou - nos o voo do pássaro, na busca do seu destino.
- O pássaro voou, depois de roubar meu coração.
Laura defendeu sua tese com o êxito esperado. Aprovado o trabalho, de Sitter fez um discurso elogioso, enaltecendo o preparo e competência da candidata e, no ato, passou-lhe uma carta da Embaixada Britânica, com uma proposta que físico algum ousaria recusar: trabalhar no King’s College, um dos trinta e um colégios da Universidade de Cambridge, em Londres.
- Perspectivas reais de uma carreira promissora, com boa remuneração e excepcional ambiente de trabalho.
Caso aceitasse, teria de viajar em menos de uma semana. De Sitter ainda acrescentou:
- Se rejeitar a Inglaterra, há um lugar de professor para você neste Departamento de Física.
- Ridi, pagliaccio!
Fomos ver "Os Palhaços", de Ruggero Leoncavallo, uma das óperas mais representadas no mundo. Era a nossa despedida e, como sempre, uma maravilhosa iniciativa da Laura. Gostei muito, desde a cena do Prólogo.
- Vocês ouvirão gritos de dor e de raiva e verão as manifestações dolorosas do ódio. Prestem atenção às nossas almas, mais que às nossas fantasias, pois somos homens de carne e osso, e respiramos, tanto quanto vocês, o ar deste mundo desamparado. Já lhes expus o conceito; vejam então como o processo se desenvolve. Encenemos, pois!
Tonio, o Prólogo
Canio tem uma companhia teatral que se apresenta nas regiões mais pobres da Calábria, chegando aos vilarejos com muita fanfarra e estardalhaço. Nessas andanças, conhece Nedda, recolhe-a da rua, alimenta-a, casa-se com ela e faz dela a atriz que representa no palco a mulher que trai o palhaço. Um dia, Canio percebe que é palhaço também na vida real, pois descobre que Nedda tem um amante, Silvio, com o qual pretende fugir. Por isso, no camarim, Canio canta seu desespero, quando se prepara para o espetáculo. Traído na peça, a cara pintada, traído na vida real, palhaço de cara limpa, ele, exatamente ele!
- Veste a fantasia! Ria, palhaço, de seu amor arruinado! Ria da dor que está envenenando seu coração!
Canio
Neste ponto, o Prólogo dirige-se a ambos os públicos (o da peça, representado pelo coro, e o verdadeiro, que éramos nós, sentados na plateia) e arremata:
- La commedia è finita.
- Laura...
- Não se deve confundir "Si può... Si può..." com "Cipó ... Cipó..."
- Você é muito engraçado!
Mais um Prêmio Nobel
Para além dos nossos momentos inesquecíveis, ficaram-me da Laura apenas um resumo da teoria da relatividade e um arrazoado que produziu sobre Shakespeare. Confortou-me a ideia de que daquela data em diante pesquisaria sobre tudo isso na própria Inglaterra, sem ter de consumir boa parte do seu salário na importação de livros a câmbio desfavorecido.
Escreveu-me, após alguns dias, dando conta de que estava se sentindo muito bem no King's College, que tem reputação internacional e recebe profissionais de todas as partes do mundo.
Seu trabalho consistiria inicialmente de uma pesquisa sobre resistência de materiais, que interessava à cadeira de Mecânica Vibratória, da qual, inicialmente, seria assistente e depois, professora adjunta.
Na carta mencionava quatro professores do King's College laureados no século XX com o Prêmio Nobel de Física, a saber, Charles G.. Barkla, em 1917, pelos seus trabalhos sobre raios-X; Owen Richardson, em 1928, pelo seu trabalho sobre emissão termiônica; Edward Appleton, em 1947, pelo seus estudos sobre a atmosfera; e Maurice Wilkins, em 1962, que dividiu o prêmio com James Watson e Francis Crick, pela determinação da estrutura do DNA.
Das próximas vezes, acrescentou, poderíamos nos comunicar por email, quando tivesse se organizado minimamente e dispusesse de um computador. Respondi imediatamente, garantindo-lhe que ficaria torcendo para que fosse para ela o próximo Prêmio Nobel do King’s College, o primeiro do século XXI, o que, sobre aumentar o prestígio da Universidade de Cambridge, haveria de deixar mais alegre e mais aquecido este meu pobre peito solitário.
L’oiseau vole
Resumindo tudo numa única e dolorosa palavra, eu estava só, mais uma vez. Com a Cecília, vencera - nos o tédio; com a May, nem sei direito, tudo ruiu no âmbito de uma confusão para lá de inexplicável; com a Laura, separou - nos o voo do pássaro, na busca do seu destino.
- O pássaro voou, depois de roubar meu coração.
sábado, 18 de abril de 2009
IMAGEM DO UNIVERSO (21/n)
Giordano Bruno, mártir genuíno da ciência
Os intelectuais religiosos Tomás de Aquino (1225- 1274) e Alberto Magno (1200-1280) fizeram uma combinação do aristotelismo com o cristianismo, a que se costuma chamar de "escolástica", configurando a visão do mundo que deveria ser aceita por imposição da Igreja Católica. A primeira voz discordante foi a do franciscano Roger Bacon (1219-1292), de Oxford, que chegou a escrever:
"Se dependesse de mim, queimaria todos os livros de Aristóteles, cuja leitura é pura perda de tempo e só nos leva ao erro e à ignorância."
Roger Bacon descrevia o método científico como um ciclo repetido de observação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação independente, acreditando que a ciência, construída mediante leis matemáticas, poderia resolver muitos problemas do homem, que, no futuro, seria capaz de deslocar-se em carros motorizados e quem sabe até voasse. Seus argumentos contra as ideias de Aristóles foram reunidos nos livros Opus Majus, Opus Minor e Opus Tertium, que ingenuamente enviou ao papa Nicolau IV, belamente encadernados.
Em vez de admirado, Bacon foi acusado de fabricar "novidades perigosas" e condenado a 14 anos de prisão.
Giordano Bruno
Sorte ainda pior estava reservada para Giordano Bruno (1548-1600), um intelectual italiano que nasceu em Nola, no sul da Itália, e estudou no Convento Domicano de Nápoles, ordenando-se padre em 1572.
Bruno sofreu influência das ideias de Lucrécio, que defendia o atomismo, contra os quatro elementos, de Empédocles, tanto quanto das ideias de Nicolau de Cusa, que, como Roger Bacon, se opunha ao sistema geocêntrico e defendia a prevalência dos cálculos matemáticos para aceitação das verdades científicas. Tornou-se um intelectual que incomodava, ao defender que Deus e o Universo são uma única e mesma coisa, pois tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas. Suas opiniões colocavam contra si a totalidade dos católicos, anglicanos e calvinistas, pois era contra:
a virgindade de Maria,
o dogma da Santíssima Trindade,
a independência da alma humana,
os milagres de Cristo e
a Terra no centro do mundo
Perambulou pela França, Inglaterra, Suíça, Alemanha e Tchecoeslováquia, dando aulas de filosofia, tudo contestando, o que sempre acarretava reações exacerbadas que o obrigavam a fugir em busca de novos abrigos. Aos que estranhavam suas opiniões discordantes, perguntava:
- Quais são os fundamentos da certeza?
A ideia cosmológica de Giordano Bruno
Um dos primeiros copernicanos da Itália, Giordano rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas ideias avançadas colocou-se à frente de Copérnico, que, ao tirar a Terra do centro do Universo, continuou admitindo que o Universo era limitado por uma esfera de estrelas fixas, como preconizado vinte séculos antes por Aristóteles.
- Por que Deus, sendo infinito e todo-poderoso, não criaria um mundo infinito, com outros sóis e outras humanidades?, costumava perguntar Giordano Bruno, antes de afirmar a sua crença de que o Sol seria apenas uma estrela no meio de uma infinidade de estrelas.
Nas suas concepções, o Universo, assim infinito, estaria dotado de milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente. Quando o advertiam da incompatibilidade de suas idéias com o que se estabelecia nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência era incongruente com o relato bíblico da Arca de Noé.
- A Biblia deve ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.
Por sua intuição extraordinária, estava muito à frente de seus contemporâneos e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, com influência sobre Descartes, Espinosa e Leibniz. Sua ambição era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de seu tempo.
- As ideias de Aristóteles devem ser abandonadas, sempre que se mostrarem incompatíveis com a realidade observada.
Fogueira
Com pensamentos assim ousados, Giordano Bruno iria pagar um preço elevado, sobretudo porque, excelente orador, tinha capacidade para atrair e convencer multidões. Regressou à Itália para instalar-se em Veneza, convidado por um nobre chamado Giovanni Moncenigo, sem perceber que se tratava de uma armadilha. Foi preso e encarcerado pelo Santo Ofício, permanecendo sete anos sob tortura e humilhação, até ser levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição. Em sua defesa, apelou para sua condição de filósofo, tal como Aristóteles e Platão, cujas ideias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados. O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas ideias, para, desse modo, escapar da condenação. Bruno respondeu:
- Não tenho motivos para retratar-me.
O papa Clemente VIII não se conteve diante dessas palavras e determinou que as autoridades seculares cuidassem do seu caso, tratando-o de "forma tão misericordiosa quanto possível, evitando qualquer derramamento de sangue." Uma senha cheia de eufemismo, e irônica, que significava morte na fogueira. Alguns dias antes da execução, Giordano Bruno teria dito a seus carrascos:
- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!
Queimado vivo, aos 52 anos de idade, em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, com a boca amordaçada para que não pudesse dirigir-se à multidão, Giordano Bruno imolou-se em nome do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação.
Com ele a filosofia começaria a libertar-se da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.
O biógrafo inglês Michael White considera Giordano Bruno "o primeiro e único mártir genuíno da ciência."
Os intelectuais religiosos Tomás de Aquino (1225- 1274) e Alberto Magno (1200-1280) fizeram uma combinação do aristotelismo com o cristianismo, a que se costuma chamar de "escolástica", configurando a visão do mundo que deveria ser aceita por imposição da Igreja Católica. A primeira voz discordante foi a do franciscano Roger Bacon (1219-1292), de Oxford, que chegou a escrever:
"Se dependesse de mim, queimaria todos os livros de Aristóteles, cuja leitura é pura perda de tempo e só nos leva ao erro e à ignorância."
Roger Bacon descrevia o método científico como um ciclo repetido de observação, hipótese, experimentação e necessidade de verificação independente, acreditando que a ciência, construída mediante leis matemáticas, poderia resolver muitos problemas do homem, que, no futuro, seria capaz de deslocar-se em carros motorizados e quem sabe até voasse. Seus argumentos contra as ideias de Aristóles foram reunidos nos livros Opus Majus, Opus Minor e Opus Tertium, que ingenuamente enviou ao papa Nicolau IV, belamente encadernados.
Em vez de admirado, Bacon foi acusado de fabricar "novidades perigosas" e condenado a 14 anos de prisão.
Giordano Bruno
Sorte ainda pior estava reservada para Giordano Bruno (1548-1600), um intelectual italiano que nasceu em Nola, no sul da Itália, e estudou no Convento Domicano de Nápoles, ordenando-se padre em 1572.
Bruno sofreu influência das ideias de Lucrécio, que defendia o atomismo, contra os quatro elementos, de Empédocles, tanto quanto das ideias de Nicolau de Cusa, que, como Roger Bacon, se opunha ao sistema geocêntrico e defendia a prevalência dos cálculos matemáticos para aceitação das verdades científicas. Tornou-se um intelectual que incomodava, ao defender que Deus e o Universo são uma única e mesma coisa, pois tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas. Suas opiniões colocavam contra si a totalidade dos católicos, anglicanos e calvinistas, pois era contra:
a virgindade de Maria,
o dogma da Santíssima Trindade,
a independência da alma humana,
os milagres de Cristo e
a Terra no centro do mundo
Perambulou pela França, Inglaterra, Suíça, Alemanha e Tchecoeslováquia, dando aulas de filosofia, tudo contestando, o que sempre acarretava reações exacerbadas que o obrigavam a fugir em busca de novos abrigos. Aos que estranhavam suas opiniões discordantes, perguntava:
- Quais são os fundamentos da certeza?
A ideia cosmológica de Giordano Bruno
Um dos primeiros copernicanos da Itália, Giordano rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas ideias avançadas colocou-se à frente de Copérnico, que, ao tirar a Terra do centro do Universo, continuou admitindo que o Universo era limitado por uma esfera de estrelas fixas, como preconizado vinte séculos antes por Aristóteles.
- Por que Deus, sendo infinito e todo-poderoso, não criaria um mundo infinito, com outros sóis e outras humanidades?, costumava perguntar Giordano Bruno, antes de afirmar a sua crença de que o Sol seria apenas uma estrela no meio de uma infinidade de estrelas.
Nas suas concepções, o Universo, assim infinito, estaria dotado de milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente. Quando o advertiam da incompatibilidade de suas idéias com o que se estabelecia nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência era incongruente com o relato bíblico da Arca de Noé.
- A Biblia deve ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.
Por sua intuição extraordinária, estava muito à frente de seus contemporâneos e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, com influência sobre Descartes, Espinosa e Leibniz. Sua ambição era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de seu tempo.
- As ideias de Aristóteles devem ser abandonadas, sempre que se mostrarem incompatíveis com a realidade observada.
Fogueira
Com pensamentos assim ousados, Giordano Bruno iria pagar um preço elevado, sobretudo porque, excelente orador, tinha capacidade para atrair e convencer multidões. Regressou à Itália para instalar-se em Veneza, convidado por um nobre chamado Giovanni Moncenigo, sem perceber que se tratava de uma armadilha. Foi preso e encarcerado pelo Santo Ofício, permanecendo sete anos sob tortura e humilhação, até ser levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição. Em sua defesa, apelou para sua condição de filósofo, tal como Aristóteles e Platão, cujas ideias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados. O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas ideias, para, desse modo, escapar da condenação. Bruno respondeu:
- Não tenho motivos para retratar-me.
O papa Clemente VIII não se conteve diante dessas palavras e determinou que as autoridades seculares cuidassem do seu caso, tratando-o de "forma tão misericordiosa quanto possível, evitando qualquer derramamento de sangue." Uma senha cheia de eufemismo, e irônica, que significava morte na fogueira. Alguns dias antes da execução, Giordano Bruno teria dito a seus carrascos:
- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!
Queimado vivo, aos 52 anos de idade, em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, com a boca amordaçada para que não pudesse dirigir-se à multidão, Giordano Bruno imolou-se em nome do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação.
Com ele a filosofia começaria a libertar-se da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.
O biógrafo inglês Michael White considera Giordano Bruno "o primeiro e único mártir genuíno da ciência."
sábado, 4 de abril de 2009
A IMAGEM DO UNIVERSO (20/n)
NICOLAU COPÉRNICO
Na Idade Média, que a tradição estende de 476, ano da desintegração do Império Romano do Ocidente, até 1453, quando se deu a tomada de Constantinopla pelos turcos, prevaleceram o sistema de produção feudal, as relações de vassalagem e suserania e a supremacia espiritual da Igreja Católica, que, no interesse de preservar a integridade das Sagradas Escrituras, subordinava a ciência à interpretação dos textos sagrados.
Em linha com esse desígnio, a física de Aristóteles foi resgatada com São Tomás de Aquino (1227-1274) e integrada à fé cristã, apenas descartadas as ideias aristotélicas conflitantes com os dogmas católicos, como a eternidade do mundo, contrária à doutrina da criação, e o fatalismo astrológico, contrário à doutrina da onipotência divina.
No terreno da Astronomia, aceitavam-se a centralidade e fixidez da Terra, o tamanho reduzido do Universo, a distinção entre um mundo supralunar e um mundo sublunar, a esfera das fixas e, por imposição divina, o movimento circular e uniforme dos astros.
- A Terra é fixa?
- Claro, basta usar o "bom senso": nada fica para trás, os corpos que sobem verticalmente caem no mesmo lugar; nem se percebe nenhuma paralaxe estelar.
Além do "bom senso", a concepção de Aristóteles tinha a vantagem de ser operacionalizada pelo sistema geocêntrico de Ptolomeu, que permitia fazer previsões sobre as posições dos astros e a "salvava" das contradições observadas, pela utilização de um complexo sistema de epiciclos, deferentes, excêntricos e equantes.
Pequeno Comentário
Nicolau Copérnico (1473-1543), polonês nascido em Torun, às margens do Vístula, dedicou-se a várias atividades, como medicina, administração, direito e economia, e foi nomeado cônego de Frauemburgo, em 1497, por influência de seu tio Lucas Watzelrode, bispo de Ermland.
Sua paixão era, entretanto, a Astronomia, tanto que em 1513 construiu uma torre para observar as estrelas. Gostava, a esse fim, de analisar os dados que haviam sido colhidos por outros astrônomos, sobretudo Ptolomeu.
Por volta de 1514, Copérnico fez circular entre os amigos um manuscrito de 20 páginas, a que chamou de "Commentarioulus" ("Pequeno Comentário"), com uma nova visão do Universo, consubstanciada nos seguintes pontos:
1. A Terra não é o centro do Universo.
2. O centro do Universo fica próximo do Sol.
3. A distância entre a Terra e o Sol é insignificante, se comparada com sua distância às estrelas.
4. O movimento diário das estrelas é apenas aparente, como resultado do movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo.
5. Todos os planetas giram em torno do Sol. A sequência anual aparente dos movimentos do Sol é o resultado da revolução da Terra em torno dele.
6. O movimento retrógrado de alguns planetas é também aparente, pois resulta de nossa posição de observadores colocados numa Terra em movimento.
7. A Lua, e tão-somente a Lua, gira em torno da Terra.
Um manuscrito, quase despercebido, que tirava a Terra e o homem do centro do Universo, rebatendo-os para a sua periferia, e acabava com a concepção de que havia um mundo supralunar e um mundo sublunar. Copérnico não publicou o "Commentariolus", por temer uma admoestação por parte da Igreja Católica, mas continuou aprimorando seus estudos, de maneira a expandir o manuscrito para cerca de 250 páginas. O trabalho, concluído por volta de 1530, permaneceu inédito até o ano de sua morte, em 1543.
A simetria do Universo
Na verdade, Copérnico não aboliu os movimentos circulares e uniformes dos astros, nem a esfera das estrelas fixas; mostrou apenas que a Terra se movimentava e qual a posição dos astros nos movimentos, sendo o Sol, não a Terra, o centro dos movimentos planetários.
Como as leis físicas não eram conhecidas, sua abordagem era de caráter matemático e se destinava a substituir outra abordagem matemática, a de Ptolomeu.
A motivação de Copérnico parece ter sido a de não aceitar a complexidade do sistema de Ptolomeu, com seus deferentes, epiciclos e equantes, e, no dizer de Simon Singh, autor do livro "Big Bang", sua inconformidade com esta complicação foi manifestada nos seguintes termos:
"É como se um artista produzisse as mãos, os pés, cabeça e outros membros de suas imagens a partir de modelos variados, cada parte corretamente desenhada, mas pertencente a corpos diferentes, e, como não correspondem umas às outras, o resultado seria um monstro, não um ser humano."
Copérnico admitia uma única órbita para cada planeta - Saturno completava sua circunferência em torno do Sol em trinta anos; Júpiter, em doze; Marte, depois, com uma revolução de dois anos, seguindo-se a Terra, com a Lua a girar em torno dela em epiciclo; depois, Vênus, fazendo sua volta em nove meses, e Mercúrio, em oitenta dias.
- A maravilhosa simetria do Universo... No centro de tudo, repousa o Sol. Pois, quem colocaria essa lâmpada de belo templo em melhor lugar do que esse, de onde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? É uma feliz expressão a dos que o chamam de lanterna; outros, de mente, e outros, ainda, de piloto do mundo. Hermes Trimegisto equipara-o a um "Deus visível"; a Electra de Sófocles, "a aquilo que faz arder em chamas todas as coisas". E, assim, o Sol, como se repousando em um trono real, governa a família dos astros que o rodeiam...
Em 1540, George Joachim Rheticus, um admirador de Copérnico, publicou um resumo de suas ideias, a que chamou de "Narratio Prima", sem que a seguir se percebesse nenhuma animosidade por parte da Igreja Católica. O fato foi determinante para que Copérnico concordasse com a publicação de sua obra final, chamada de "De Revolutionibus Orbium Coelestium", que foi à impressão em 1543, em Nuremberg, pouco antes da sua morte. O livro só seria proibido pela Igreja Católica em 1616, no âmbito das discussões de Galileu com as autoridades eclesiásticas.
Infelizmente, porém, o livro de Copérnico foi publicado com um prefácio clandestino, introduzido pelo encarregado da edição, Andreas Osiander, no qual a teoria que se publicava foi apresentada como um mero algoritmo para facilitar os cálculos das distâncias.
- O modelo centrado no Sol não passa de um artifício matemático que serve aos cálculos, não à realidade.
Em seu leito de morte Copérnico, recebeu um exemplar do livro e não deve ter percebido o prefácio, que só foi descoberto como impostura por Johannes Kepler, que denunciou o fato em seu livro "Astronomia Nova", de 1609.
Uma carreira lenta e gradual
Note-se que Copérnico, cujo sistema heliocêntrico tirava a Terra do centro do Universo, manteve a errônea premissa dos movimentos circulares tanto quanto a esfera das estrelas fixas e tinha contra si o desastroso prefácio de Osiander. Inicialmente, “De Revolutionibus Orbium Coelestium”, lida por poucos astrônomos, interessou a alguns intelectuais e acabou adormecendo nas estantes. Tinha, porém, a força de ser a opção verdadeira e aos poucos foi conquistando adeptos, sendo aceita primeiro pelos personagens importantes, como Giordano Bruno, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Isaac Newton e Voltaire, depois nas universidades e, finalmente, pela Igreja Católica, que em 1822 retirou o livro de Copérnico do Index Librorum Prohibitorum ("Indicador dos Livros Proibidos").
Na Idade Média, que a tradição estende de 476, ano da desintegração do Império Romano do Ocidente, até 1453, quando se deu a tomada de Constantinopla pelos turcos, prevaleceram o sistema de produção feudal, as relações de vassalagem e suserania e a supremacia espiritual da Igreja Católica, que, no interesse de preservar a integridade das Sagradas Escrituras, subordinava a ciência à interpretação dos textos sagrados.
Em linha com esse desígnio, a física de Aristóteles foi resgatada com São Tomás de Aquino (1227-1274) e integrada à fé cristã, apenas descartadas as ideias aristotélicas conflitantes com os dogmas católicos, como a eternidade do mundo, contrária à doutrina da criação, e o fatalismo astrológico, contrário à doutrina da onipotência divina.
No terreno da Astronomia, aceitavam-se a centralidade e fixidez da Terra, o tamanho reduzido do Universo, a distinção entre um mundo supralunar e um mundo sublunar, a esfera das fixas e, por imposição divina, o movimento circular e uniforme dos astros.
- A Terra é fixa?
- Claro, basta usar o "bom senso": nada fica para trás, os corpos que sobem verticalmente caem no mesmo lugar; nem se percebe nenhuma paralaxe estelar.
Além do "bom senso", a concepção de Aristóteles tinha a vantagem de ser operacionalizada pelo sistema geocêntrico de Ptolomeu, que permitia fazer previsões sobre as posições dos astros e a "salvava" das contradições observadas, pela utilização de um complexo sistema de epiciclos, deferentes, excêntricos e equantes.
Pequeno Comentário
Nicolau Copérnico (1473-1543), polonês nascido em Torun, às margens do Vístula, dedicou-se a várias atividades, como medicina, administração, direito e economia, e foi nomeado cônego de Frauemburgo, em 1497, por influência de seu tio Lucas Watzelrode, bispo de Ermland.
Sua paixão era, entretanto, a Astronomia, tanto que em 1513 construiu uma torre para observar as estrelas. Gostava, a esse fim, de analisar os dados que haviam sido colhidos por outros astrônomos, sobretudo Ptolomeu.
Por volta de 1514, Copérnico fez circular entre os amigos um manuscrito de 20 páginas, a que chamou de "Commentarioulus" ("Pequeno Comentário"), com uma nova visão do Universo, consubstanciada nos seguintes pontos:
1. A Terra não é o centro do Universo.
2. O centro do Universo fica próximo do Sol.
3. A distância entre a Terra e o Sol é insignificante, se comparada com sua distância às estrelas.
4. O movimento diário das estrelas é apenas aparente, como resultado do movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo.
5. Todos os planetas giram em torno do Sol. A sequência anual aparente dos movimentos do Sol é o resultado da revolução da Terra em torno dele.
6. O movimento retrógrado de alguns planetas é também aparente, pois resulta de nossa posição de observadores colocados numa Terra em movimento.
7. A Lua, e tão-somente a Lua, gira em torno da Terra.
Um manuscrito, quase despercebido, que tirava a Terra e o homem do centro do Universo, rebatendo-os para a sua periferia, e acabava com a concepção de que havia um mundo supralunar e um mundo sublunar. Copérnico não publicou o "Commentariolus", por temer uma admoestação por parte da Igreja Católica, mas continuou aprimorando seus estudos, de maneira a expandir o manuscrito para cerca de 250 páginas. O trabalho, concluído por volta de 1530, permaneceu inédito até o ano de sua morte, em 1543.
A simetria do Universo
Na verdade, Copérnico não aboliu os movimentos circulares e uniformes dos astros, nem a esfera das estrelas fixas; mostrou apenas que a Terra se movimentava e qual a posição dos astros nos movimentos, sendo o Sol, não a Terra, o centro dos movimentos planetários.
Como as leis físicas não eram conhecidas, sua abordagem era de caráter matemático e se destinava a substituir outra abordagem matemática, a de Ptolomeu.
A motivação de Copérnico parece ter sido a de não aceitar a complexidade do sistema de Ptolomeu, com seus deferentes, epiciclos e equantes, e, no dizer de Simon Singh, autor do livro "Big Bang", sua inconformidade com esta complicação foi manifestada nos seguintes termos:
"É como se um artista produzisse as mãos, os pés, cabeça e outros membros de suas imagens a partir de modelos variados, cada parte corretamente desenhada, mas pertencente a corpos diferentes, e, como não correspondem umas às outras, o resultado seria um monstro, não um ser humano."
Copérnico admitia uma única órbita para cada planeta - Saturno completava sua circunferência em torno do Sol em trinta anos; Júpiter, em doze; Marte, depois, com uma revolução de dois anos, seguindo-se a Terra, com a Lua a girar em torno dela em epiciclo; depois, Vênus, fazendo sua volta em nove meses, e Mercúrio, em oitenta dias.
- A maravilhosa simetria do Universo... No centro de tudo, repousa o Sol. Pois, quem colocaria essa lâmpada de belo templo em melhor lugar do que esse, de onde pode iluminar tudo ao mesmo tempo? É uma feliz expressão a dos que o chamam de lanterna; outros, de mente, e outros, ainda, de piloto do mundo. Hermes Trimegisto equipara-o a um "Deus visível"; a Electra de Sófocles, "a aquilo que faz arder em chamas todas as coisas". E, assim, o Sol, como se repousando em um trono real, governa a família dos astros que o rodeiam...
Commentariolus
(Urano e Netuno eram desconhecidos ao tempo de Copérnico (1473-1543) - Urano foi descoberto apenas em 1781, sendo de 84 anos seu tempo de revolução, e Netuno, em 1846, com tempo de revolução de 164 anos.)
A publicaçãoObservação
(Urano e Netuno eram desconhecidos ao tempo de Copérnico (1473-1543) - Urano foi descoberto apenas em 1781, sendo de 84 anos seu tempo de revolução, e Netuno, em 1846, com tempo de revolução de 164 anos.)
Em 1540, George Joachim Rheticus, um admirador de Copérnico, publicou um resumo de suas ideias, a que chamou de "Narratio Prima", sem que a seguir se percebesse nenhuma animosidade por parte da Igreja Católica. O fato foi determinante para que Copérnico concordasse com a publicação de sua obra final, chamada de "De Revolutionibus Orbium Coelestium", que foi à impressão em 1543, em Nuremberg, pouco antes da sua morte. O livro só seria proibido pela Igreja Católica em 1616, no âmbito das discussões de Galileu com as autoridades eclesiásticas.
Infelizmente, porém, o livro de Copérnico foi publicado com um prefácio clandestino, introduzido pelo encarregado da edição, Andreas Osiander, no qual a teoria que se publicava foi apresentada como um mero algoritmo para facilitar os cálculos das distâncias.
- O modelo centrado no Sol não passa de um artifício matemático que serve aos cálculos, não à realidade.
Em seu leito de morte Copérnico, recebeu um exemplar do livro e não deve ter percebido o prefácio, que só foi descoberto como impostura por Johannes Kepler, que denunciou o fato em seu livro "Astronomia Nova", de 1609.
Uma carreira lenta e gradual
Note-se que Copérnico, cujo sistema heliocêntrico tirava a Terra do centro do Universo, manteve a errônea premissa dos movimentos circulares tanto quanto a esfera das estrelas fixas e tinha contra si o desastroso prefácio de Osiander. Inicialmente, “De Revolutionibus Orbium Coelestium”, lida por poucos astrônomos, interessou a alguns intelectuais e acabou adormecendo nas estantes. Tinha, porém, a força de ser a opção verdadeira e aos poucos foi conquistando adeptos, sendo aceita primeiro pelos personagens importantes, como Giordano Bruno, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Isaac Newton e Voltaire, depois nas universidades e, finalmente, pela Igreja Católica, que em 1822 retirou o livro de Copérnico do Index Librorum Prohibitorum ("Indicador dos Livros Proibidos").
quinta-feira, 2 de abril de 2009
MÁRIO QUINTANA
Astrologia
Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino,
A minha estrela vai seguindo além...
E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia,
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...
Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.
Mário Quintana (1906 - 1994)
Minha estrela não é a de Belém:
A que, parada, aguarda o peregrino.
Sem importar-se com qualquer destino,
A minha estrela vai seguindo além...
- Meu Deus, o que é que esse menino tem?
Já suspeitavam, desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!
Já suspeitavam, desde eu pequenino.
O que eu tenho? É uma estrela em desatino...
E nos desentendemos muito bem!
E quando tudo parecia a esmo
E nesses descaminhos me perdia,
Encontrei muitas vezes a mim mesmo...
Eu temo é uma traição do instinto
Que me liberte, por acaso, um dia
Deste velho e encantado Labirinto.
Mário Quintana (1906 - 1994)
quarta-feira, 1 de abril de 2009
PEGUREIRO DO BAIXO LEBLON
PROFESSOR DE ECONOMIA
Quando trabalhava na WED, tive de dar uma palestra em Buenos Aires, saindo completamente das minhas atribuições. Fazer o quê? Preparar rapidamente uma apresentação, arrumar a mala e partir para a aventura. Isso foi, exatamente. Apresentei-me ao congresso no seu dia inaugural, quando me informaram que minha palestra seria apenas na sexta-feira, a última da programação. Percorrendo algumas salas despreocupadamente, percebi que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados; eram sessões numerosas e simultâneas, que iam desde os problemas com a camada de ozônio até o cálculo do poder calorífico do álcool combustível, como diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.
Eu não tinha por que me preocupar, pois, palestrante de último dia, falaria para meia dúzia de testemunhas ociosas, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas. Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Quando chegasse minha vez, era concluir rapidamente a apresentação, agradecer humildemente a presença dos que estivessem me honrando com sua generosa audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Afinal, pensei, apresentar-me em congressos nunca fez parte de minhas habilitações, e estava ali apenas para cumprir uma determinação dos meus superiores, motivada não sei por quais judiciosas e importantes razões.
Foi com esse espírito, aguardando o último dia, que decidi conhecer alguma coisa de Buenos Aires: para além de um passeio pelos bosques de Palermo, vi uma excelente "Traviata" no Teatro Colón, duas vezes fui a uma casa de tangos e de outra feita compareci a um evento que homenageava Astor Piazolla, no Torquato Tasso.
Salão nobre
Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.
- Salão nobre, por que salão nobre?
- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.
Foi assim que no Congresso Mundial de Buenos Aires expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre a aplicação da curva de utilidade de Bernoulli nos cálculos econômicos que orientam uma decisão a ser tomada em regime de incerteza.
Quando regressei ao Brasil, soube que a WED havia recebido uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha participação, e eu, em particular, colhi das mãos de minha secretária uma carta elogiosa do presidente do Congresso Mundial.
Claro que o episódio me deixou orgulhoso e satisfeito, mas dele, decorridos três anos, nem me lembrava mais. Até que fui solicitado a comparecer ao Departamento de Economia.
- O professor chefe quer falar com você.
Emergência
Já tinha ouvido sobre surpresas agradáveis. Posso agora afirmar que são agradáveis mesmo. Estênio Florão pediu-me que assumisse duas matérias da Economia durante o semestre, em caráter de emergência. Tudo porque o professor Kurtis, responsável pelas aulas de "Projetos de Risco" e de "Negociações Contratuais", tinha decidido regressar para a Europa e acabara de pedir demissão.
- Por que me convidam, assim, sem mais nem menos?
- Assisti por acaso à sua palestra de Buenos Aires e acho que você pode nos ajudar. Temas novos, com pouca gente habilitada. Com perdão do trocadilho, é melhor correr um bom risco, com você, do que cancelar as cadeiras. Ah, se você for bem avaliado no semestre, quem sabe não o efetivemos nas duas cadeiras?
Uma caixa de velhos escritos, muitos programas ainda arquivados no computador, livros e apostilas da minha passagem pela Universidade do Texas, tudo isso me servia novamente.
Logo encaixei a ideia de abandonar o curso de Física, pois, no portfólio das minhas ambições, ser professor equivalia à carreira de físico.
- Professor, agora, e não um futuro físico!
Bola de Sebo
Laura é a pessoa mais culta que conheci pessoalmente; às vezes me propunha temas culturais, com muito proveito para mim. Como no dia em que me perguntou se conhecia Guy de Maupassant.
- Guy de Maupassant?
- Histórias abundantes, sobre todos os tipos e situações. Três centenas de contos, a seu tempo talvez o autor mais lido no mundo. Morreu com 43 anos, apenas.
Soube resumir para mim duas de suas histórias. Achei "O Colar de Diamantes" meio ingênuo, sei lá. O conto da mulher bela e admirada, que, numa festa de rara felicidade, perde o colar de diamantes que pedira de empréstimo à amiga. Isso tem consequências graves: a pobre mulher sacrifica a vida para repor o colar perdido, sem saber que se tratava de uma joia falsa.
"Bola de Sebo", outro dos contos de Maupassant, pareceu-me, este sim, obra de gente grande. Uma história que se passa na época da guerra franco-prussiana. Na carruagem francesa, uma prostituta, que atende pelo nome pejorativo de Bola de Sebo, é hostilizada pelos demais passageiros, que são senhoras e senhores burgueses, de muita hierarquia e nenhum valor.
Em certo instante da viagem um oficial do exército invasor detém a carruagem e ameaça retê-la indefinidamente, a não ser que Bola de Sebo concorde em passar uma noite com ele. Isto não está nos planos da prostituta, que, entretanto, é pressionada a ceder àquele desígnio pelos demais passageiros, que nesse mister usam súplicas e expedientes de persuasão e hipocrisia.
Após muito relutar, Bola de Sebo percebe que não tem saída, entrega-se ao comandante, que, uma vez satisfeito, autoriza o prosseguimento da viagem.
Como se nada tivesse ocorrido, os passageiros retomam a atitude superior e hostil, desprezando, como antes, aquela pecadora vulgar.
No tempo das diligências
"Bola de Sebo" é o conto do trocadilho “Loiseau vole” e “l’oiseau vole”, que Maupassant construiu porque havia um Loiseau entre os passageiros. Em francês “voler” significa tanto voar como roubar, foi o que Laura me explicou.
- O senhor Loiseau rouba?
- Isso eu não sei, não, senhor. Eu apenas disse que o pássaro voa.
"Bola de Sebo", na verdade uma lenda urbana, inspirou muitas narrativas, entre elas o filme "No Tempo das Diligências" (“Stagecoach”), de John Ford, de 1939.
- Fez sucesso?
- Muito, como todos os filmes de John Ford. "Stagecoach" foi visto 40 vezes por Orson Welles, que o considerou a síntese de todos os “westerns”.
- Não sei não, mas sempre devia haver alguém como você perto da gente.
- Você é a estrela do poeta, apontando o caminho ao pegureiro.
- Ora viva! Você, um pegureiro do Leblon...
Quando trabalhava na WED, tive de dar uma palestra em Buenos Aires, saindo completamente das minhas atribuições. Fazer o quê? Preparar rapidamente uma apresentação, arrumar a mala e partir para a aventura. Isso foi, exatamente. Apresentei-me ao congresso no seu dia inaugural, quando me informaram que minha palestra seria apenas na sexta-feira, a última da programação. Percorrendo algumas salas despreocupadamente, percebi que cada palestrante merecia apenas uns poucos interessados; eram sessões numerosas e simultâneas, que iam desde os problemas com a camada de ozônio até o cálculo do poder calorífico do álcool combustível, como diminuir a poluição da cidade de Tóquio ou medir a umidade do ar num campo de golfe.
Eu não tinha por que me preocupar, pois, palestrante de último dia, falaria para meia dúzia de testemunhas ociosas, quando os participantes estariam voltando para seus países ou aproveitando o derradeiro momento para conhecer a cidade de Buenos Aires. Não iriam perder seu tempo comigo, um desconhecido, sem nenhum retrospecto ou recomendação nos folhetos que orientavam a seleção das palestras a serem assistidas. Uma indiferença que, de resto, só fazia me tranquilizar. Quando chegasse minha vez, era concluir rapidamente a apresentação, agradecer humildemente a presença dos que estivessem me honrando com sua generosa audiência, se alguns, e seguir diretamente para o aeroporto, no mais assumido low profile.
Afinal, pensei, apresentar-me em congressos nunca fez parte de minhas habilitações, e estava ali apenas para cumprir uma determinação dos meus superiores, motivada não sei por quais judiciosas e importantes razões.
Foi com esse espírito, aguardando o último dia, que decidi conhecer alguma coisa de Buenos Aires: para além de um passeio pelos bosques de Palermo, vi uma excelente "Traviata" no Teatro Colón, duas vezes fui a uma casa de tangos e de outra feita compareci a um evento que homenageava Astor Piazolla, no Torquato Tasso.
Salão nobre
Quando a sexta-feira finalmente chegou, ainda no hotel recebi a informação de que minha palestra seria no salão nobre do congresso.
- Salão nobre, por que salão nobre?
- É o único auditório com mais de cem lugares, e a direção do congresso percebeu que há grande interesse pela sua palestra.
Foi assim que no Congresso Mundial de Buenos Aires expus para 716 profissionais de todo o mundo sobre a aplicação da curva de utilidade de Bernoulli nos cálculos econômicos que orientam uma decisão a ser tomada em regime de incerteza.
Quando regressei ao Brasil, soube que a WED havia recebido uma dezena de telegramas internacionais, que se congratulavam com minha participação, e eu, em particular, colhi das mãos de minha secretária uma carta elogiosa do presidente do Congresso Mundial.
Claro que o episódio me deixou orgulhoso e satisfeito, mas dele, decorridos três anos, nem me lembrava mais. Até que fui solicitado a comparecer ao Departamento de Economia.
- O professor chefe quer falar com você.
Emergência
Já tinha ouvido sobre surpresas agradáveis. Posso agora afirmar que são agradáveis mesmo. Estênio Florão pediu-me que assumisse duas matérias da Economia durante o semestre, em caráter de emergência. Tudo porque o professor Kurtis, responsável pelas aulas de "Projetos de Risco" e de "Negociações Contratuais", tinha decidido regressar para a Europa e acabara de pedir demissão.
- Por que me convidam, assim, sem mais nem menos?
- Assisti por acaso à sua palestra de Buenos Aires e acho que você pode nos ajudar. Temas novos, com pouca gente habilitada. Com perdão do trocadilho, é melhor correr um bom risco, com você, do que cancelar as cadeiras. Ah, se você for bem avaliado no semestre, quem sabe não o efetivemos nas duas cadeiras?
Uma caixa de velhos escritos, muitos programas ainda arquivados no computador, livros e apostilas da minha passagem pela Universidade do Texas, tudo isso me servia novamente.
Logo encaixei a ideia de abandonar o curso de Física, pois, no portfólio das minhas ambições, ser professor equivalia à carreira de físico.
- Professor, agora, e não um futuro físico!
Bola de Sebo
Laura é a pessoa mais culta que conheci pessoalmente; às vezes me propunha temas culturais, com muito proveito para mim. Como no dia em que me perguntou se conhecia Guy de Maupassant.
- Guy de Maupassant?
- Histórias abundantes, sobre todos os tipos e situações. Três centenas de contos, a seu tempo talvez o autor mais lido no mundo. Morreu com 43 anos, apenas.
Soube resumir para mim duas de suas histórias. Achei "O Colar de Diamantes" meio ingênuo, sei lá. O conto da mulher bela e admirada, que, numa festa de rara felicidade, perde o colar de diamantes que pedira de empréstimo à amiga. Isso tem consequências graves: a pobre mulher sacrifica a vida para repor o colar perdido, sem saber que se tratava de uma joia falsa.
"Bola de Sebo", outro dos contos de Maupassant, pareceu-me, este sim, obra de gente grande. Uma história que se passa na época da guerra franco-prussiana. Na carruagem francesa, uma prostituta, que atende pelo nome pejorativo de Bola de Sebo, é hostilizada pelos demais passageiros, que são senhoras e senhores burgueses, de muita hierarquia e nenhum valor.
Em certo instante da viagem um oficial do exército invasor detém a carruagem e ameaça retê-la indefinidamente, a não ser que Bola de Sebo concorde em passar uma noite com ele. Isto não está nos planos da prostituta, que, entretanto, é pressionada a ceder àquele desígnio pelos demais passageiros, que nesse mister usam súplicas e expedientes de persuasão e hipocrisia.
Após muito relutar, Bola de Sebo percebe que não tem saída, entrega-se ao comandante, que, uma vez satisfeito, autoriza o prosseguimento da viagem.
Como se nada tivesse ocorrido, os passageiros retomam a atitude superior e hostil, desprezando, como antes, aquela pecadora vulgar.
No tempo das diligências
"Bola de Sebo" é o conto do trocadilho “Loiseau vole” e “l’oiseau vole”, que Maupassant construiu porque havia um Loiseau entre os passageiros. Em francês “voler” significa tanto voar como roubar, foi o que Laura me explicou.
- O senhor Loiseau rouba?
- Isso eu não sei, não, senhor. Eu apenas disse que o pássaro voa.
"Bola de Sebo", na verdade uma lenda urbana, inspirou muitas narrativas, entre elas o filme "No Tempo das Diligências" (“Stagecoach”), de John Ford, de 1939.
- Fez sucesso?
- Muito, como todos os filmes de John Ford. "Stagecoach" foi visto 40 vezes por Orson Welles, que o considerou a síntese de todos os “westerns”.
A estrela do poeta
Laura surpreendeu-se com meu redobrado empenho e entusiasmo com a oportunidade de ser professor, mas sempre se colocou a meu lado, incentivando-me e discutindo comigo a melhor forma de conduzir uma aula, pois ela própria tinha vontade de ser professora.Vivíamos momentos decisivos, eu, navegando num mar de tantas peripécias, e ela, a aguardar o momento de defender a tese da relatividade, mas apesar disso, ou até por causa disso, nosso amor recíproco e solidariedade só faziam aumentar. Nós nos bastávamos, eis tudo.
Laura surpreendeu-se com meu redobrado empenho e entusiasmo com a oportunidade de ser professor, mas sempre se colocou a meu lado, incentivando-me e discutindo comigo a melhor forma de conduzir uma aula, pois ela própria tinha vontade de ser professora.Vivíamos momentos decisivos, eu, navegando num mar de tantas peripécias, e ela, a aguardar o momento de defender a tese da relatividade, mas apesar disso, ou até por causa disso, nosso amor recíproco e solidariedade só faziam aumentar. Nós nos bastávamos, eis tudo.
- Não sei não, mas sempre devia haver alguém como você perto da gente.
Pegureiro do Baixo Leblon
- Muito obrigada. Alguma razão específica? - Ora viva! Você, um pegureiro do Leblon...
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