quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A HISTÓRIA DE UM TESTE (3/3)

SACAÇÕES RECIPROCADAS

Ingrid
acudiu-me com a notícia boa, e eu nem me lembrava do teste.

- Você a
rrebentou!

- Minha preferência e opinião foram aprovadas?

- O departamento de pessoal, o Depes, viu cultura assentada na frase preferida e
uma formulação extraordinária na questão opinativa.

- Formulação extraordinária, como assim?

- Ninguém contrapôs Fernando Pessoa a Einstein, antes de você.

- Mas eu não contrapus...


- Contrapôs, sim, com toda a propriedade. O DI...


- DI?


- Departamento de Inteligência. O DI deu um parecer reconhecendo que você tem toda a razão, pois o Livro do Desassossego e a Teoria da Relatividade constituem as duas sacações reciprocadas mais importantes do século XX.


- Sacações reciprocadas?

- Sim, Frank. O Livro do Desassossego é o contraponto literário da Teoria da Relatividade. Veja só esta passagem do Pessoa: " tudo que é alto passa alto e passa; tudo que é de apetecer está longe e passa longe". Não tem cara de relatividade poética e de poesia relativística?

Há muita coisa errada nesssa avaliação, que extrapola perigosamente todos os limites razoáveis. Não posso deixar prosperar esse julgamento incompetente, que me supervaloriza, pois adiante me cobrarão por isso.

- Não sei se o DI está de gozação, ou se falando sério. Apenas disse despretensiosamente, e sob a pressão de parecer que tinha uma opinião, que Fernando Pessoa e Albert Einstein eram grandes pensadores, mas não me ocorreu sugerir nenhum contraponto à Teoria da Relatividade, muito menos um contraponto literário. Não tenho capacidade, nem embocadura, nem aptidão, para fazer correlações dessa magnitude. A bem da verdade, nunca ouvi falar em sacações reciprocadas.

- Ora, Frank...

- Se há sacação reciprocada entre Einstein e Pessoa, trata-se de um caso típico de serendipidade, exatamente como nas descobertas da penicilina e do viagra.

- Serendipidade, qual nada, mérito seu. Não seja assim modesto. Outra coisa: quem é Zé?

Houve por aí o Zé da Zilda, o Zé Alencar e o Zé de Alencar, o Zé de Anchieta, o Zequinha de Abreu, tanto quanto o Zé de Abreu, o Zé do Patrocínio, o Zé Maria lateral, o Zé Kéti, o Zé Bonifácio de Andrada e Silva, o Zé Boquinha, o Zequinha Sarney, o Zé Trindade, o Zé de Arimatéia, o Zé Bové, a Maria José, Zeca Pagodinho e Zeca Camargo, Zé de Habsburgo, Paulo José, São José e inúmeros outros Zés, notórios e qualificados. Quem vai se interessar por um Zé que foi somente Zé? O melhor é dizer que o Zé é um modelo, um protótipo, encerrando o assunto sem maiores tergiversações.

Zé do Caixão

- Ingrid, é melhor esquecer o Zé.

- Esquecer?

- Esquecer, pois o Zé é um arquétipo, não um indivíduo em particular. Quis apenas fazer uma modesta homenagem aos homens inteligentes, grandes pensadores, que atravessam a existência no mais puro anonimato e perdem-se na primeira esquina do tempo. Ou, por outra, foi uma maneira de manifestar que houve numerosos grandes pensadores e que nomear três, sobre arriscado, não deixa de ser uma temeridade e, mais que isso, uma injustiça com milhares de pessoas extraordinárias cujos nomes simplesmente desconhecemos.

- Sem dúvida.
- Aquele pedaço de osso...

- É impossível saber qual pessoa pensou mais, não é óbvio? Como ter certeza de que não pensou mais o homem primitivo que primeiro pôs-se de pé ou aquele que usou pela primeira vez um pedaço de osso para defender-se? Ou o que percebeu a conveniência de usar o pedaço de osso como alavanca, para remover obstáculos e levantar pesos? E o outro, na imensidão do passado, que inventou a roda, combinando-a com a alavanca para formar o veículo, ou seja, a máquina de transportar? Como descartar os homens que inventaram o papel, a máquina a vapor, o guarda-chuva, os números indo-arábicos e o zero, a luz elétrica, o automóvel, a regra de Chió, o avião, o rádio, a bola de bilhar, o crivo de Eratóstenes, a semana inglesa, o computador, a curva de Gauss, o pedal da bicicleta, a televisão, o cordão dos sapatos, o teorema de Tales e o quadro-negro?

- Pode me chamar de Zé...

- E então?

- Digamos que o "Zé" é o meu genérico; toda vez que me ocorrer um grande pensador da humanidade, dele direi que é um ótimo Zé, eximindo-me do remorso de tê-lo omitido no teste da Maria Moretson.

.- Se Platão vier com alguma reclamação...

- Reclamação justa e pertinente. Eu lhe diria: não o esqueci de forma alguma, senhor Platão, pois você é o Zé, cuspido e escarrado.

- Zé Genérico, sim, senhor, você é muito prevenido!

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