quarta-feira, 18 de março de 2009

SHAKESPEARE E O DENTISTA

Intelectuais

Subitamente todos silenciaram, e Angelina declamou a poesia “Congresso no Polígono das Secas (ritmo senador; sotaque sulista)”, de João Cabral de Melo Neto - quinze minutos de puro encantamento. Depois, um torneio de mágicas, divertido e interessante. O melhor, porém, foi o enigma literário, que deveria ser proposto pela pessoa que fosse sorteada, sendo certo que quase todos os presentes tinham uma história preparada. Assim se divertem os intelectuais...

Alice Ben-dov
Cartas

Eu não tinha história nenhuma, nem me incluíram no sorteio, pois me achava na festa quase na condição de penetra. A sorteada foi uma bela moça chamada Alice Ben-dov, que narrou um caso ocorrido no Leblon. Um dentista, de nome Silvestre, recebeu certa vez uma carta apócrifa, para lá de esquisita:

“Você não passa de um dentista idiota, pois ignora sua própria história. Para conhecê-la, almoce amanhã no Humphrey’s, exatamente à uma. Como você está familiarizado com Shakespeare, se olhar para baixo, saberá o porquê...


Tiago Lessone.”


Eis o que Silvestre pensou dessa carta:

Sou idiota, como não, e muito obrigado por manifestar sua abalizada opinião. Como conheço Shakespeare, só por isso, basta olhar para baixo... Para ver a rua e constatar o quê? Muito barulho por nada? Alguma Sorveteria do Hamlet, com picolés da Dinamarca, um Mercador de Bugigangas Importadas, ou o Rei Lear, com seus bolinhos de bacalhau e geladeiras de segunda mão? Ou será a jaqueira do playground?
Ignoro a minha história? Ora, pois!
Invoco-o, querido bardo de Avon, e peço-lhe a gentileza de informar ao senhor Tiago Lessone, seja quem for, real ou suposto, que olhei para baixo e, para minha grande surpresa e desinformação, lá estavam meus pés, em número de dois, calçando sapatos pretos de tamanho 42, assentados tranquilamente no chão do meu consultório, e, mais abaixo, uma jaqueira que faz o incomensurável favor de nunca ter dado nenhuma jaca.
Peço-lhe, mais, querido Shakespeare, que informe ao Lessone que não tenho nenhum tempo, nem disposição, para comparecer ao Humphrey’s”.


Dias depois, o dentista recebeu outra carta:

“Silvestre, você não deu importância à minha carta e não compareceu ao Humphrey’s. Sua história não lhe interessa? Segunda chance, amanhã, no Humphrey’s, às 13 horas. Olha para baixo!

Tiago Lesst.”

Havia uma grande mudança, logo percebida pelo Silvestre, pois o sobrenome, Lessone, fora trocado por Lesst. Pela segunda vez decidiu não fazer nada. Houve, mais tarde, uma terceira carta, recomendando, igualmente, que comparecesse ao Humphrey’s, mas a assinatura mudara desta vez para Tiago Lessfirst. Tudo muito esquisito...


Lessone, Lesst ou Lessfirst?


Silvestre pensou longamente nos três sobrenomes do Tiago, entendeu o recado e decidiu comparecer ao Humphrey’s na hora sugerida pela terceira carta. O que lhe acarretou grande desapontamento, pois encontrou no restaurante sua mulher abraçada com um amante.

- Você não entendeu... O que eu quero, pelo meu reino, é um cavalo!

O enigma

Alice arrematou sua história dizendo que Silvestre não é homem de grandes explosões, mas acabou separando-se da mulher. Fez então o desafio:

-
Por que Silvestre atendeu à terceira carta?

Pelo regulamento da festa, os convidados tinham 30 minutos para encontrar a resposta. Houve, no início, muito palpite, desorientação e manifestações equivocadas. Depois, todos permaneceram em silêncio, e tão longa foi a pausa que tive a impressão de que ninguém chegaria à solução.
Quando já se encerrava o prazo, entretanto, Susana de Bragança e Silva, que
mora na Aristides e é tradutora juramentada, apresentou a solução do enigma:

- A instrução de olhar para baixo tinha a ver com o sobrenome inglês, cambiante. A parte de baixo da carta, bem entendido. Tiago “Lessone” é Tiago sem “one”; Tiago “Lesst” é Tiago sem “T”; e Tiago “Lessfirst” é Tiago sem a inicial. Três informações na mesma direção, pois Tiago sem a inicial é Iago. Sim, Iago, a personagem pérfida que insinua para Otelo que Desdêmona tem um romance secreto com Cássio. Na tragédia de Shakespeare, Otelo acredita na intriga e, possuído pelo demônio do ciúme, estrangula Desdêmona e se suicida.

- Acertou na mosca!

- Compreendemos muito bem, ou seja, uma recorrência shakespeariana como forma de alertar sobre a mulher. Silvestre só entendeu, afinal, porque conhecia a obra de Shakespeare, o que significa que cultura, para além de outras finalidades, também serve para alertar maridos traídos.

- Serve muito,
observou Alice.

- Silvestre teve mais bom senso que Otelo.
Quero dizer, foi menos radical...

- Só que no caso do Silvestre a denúncia era verdadeira, ao contrário do que ocorre na tragédia de Shakespeare.

- Mais uma agravante contra Otelo, que produziu uma tragédia irracional, com decisões precipitadas e tomadas com insuficiência de informações.

- Esse Humphrey’s deve ser um lugar elegante...


- Sem dúvida. Os clientes fazem as reservas com antecedência, o que permitiu as cartas antecipadas do Tiago sem T para o dentista. E tem mais...O Tiago sem T, se não for o gerente responsável pelas reservas, tem acesso a elas, nesse restaurante.

Otelo e Desdêmona

Alice e Susana receberam seu prêmio, gravuras do Scliar: "Sempre-vivas" e "Alamandas".

- Sou a decepção de todos os ladrões, disse o velhinho de óculos escuros, em tom de chacota.

- Como assim?

- Quem rouba minha bolsa, rouba lixo.

Todos riram, menos eu, que não entendi a piada. Houve, ainda, um encerramento, com algumas projeções coloridas do conjunto arqueológico de Epidauro, um santuário situado a nordeste do Peloponeso.

Onde fica o Peloponeso?

Quando tornei a casa, Laura me explicou que "quem rouba minha bolsa, rouba lixo" é uma fala de Iago, na sua maquinação contra Otelo.

- Quem diria...

- Who steals my purse steals trash.

- Poxa, você sabe tudo... E o Peloponeso, para que lado fica mesmo o Peloponeso?


- Continua sendo uma península situada ao sul da Grécia, separada do continente pelo istmo de Corinto.

2 comentários:

Anônimo disse...

O trabalho do autor chama atenção pela incrível descrição e combinação bizarra, onírica da peça Otelo,na sua genialidade de discertar com excelente qualidade,chamando atenção para as peças de Francis Bacon que usava o pseudônimo de Shaskespeare:Hamlet,Rei Lear,Ricardo III e Otelo.
É uma forma teatral e excêntrica maravilhosa.
Só uma mente brilhante poderia proporcionar este enigma,aguçando nossa imaginação na leitura.
Shakespeare demonstra em Otelo o duo orgulho e raiva deixando Iago provocá-lo.
"Quem rouba meu bom nome me rouba daquilo que não o enriquece,mas me torna pobre de fato.
A persona é uma definição de orgulhoso que não gosta de ser humilhado ou feito pobre.
"Com isto devemos procurar meneiras de nos orgulharmos de nós mesmos, não achando diferenças sutis entre a nossa conduta e a do outro"
"Nós somos do tecido de que são feitos os sonhos" Shakespeare.

cirandeira disse...

Uma estória insólita, misteriosa, híbrida:Angelina lendo João Cabral("Cemitérios gerais onde não cabe fazer cercas...")e Shakespeare apresentando seus fantasmas na velha Londres! É preciso mesmo muita imaginação e criatividade...A gente ler de um fôlego só, mas depois tem respirar, encher os pulmões e ler outras vezes para apreciar melhor!
Olhe só:aquele pássaro não é uma sabiá (como chamamos por aqui),a sabiá tem as penas marrons e o papo amarelo.Tampouco um corrupião. Aquele pássaro serviu apenas para ilustrar os dois poemas contrastantes, de épocas diferentes.Deixe-se de modéstias, que já percebí perfeitamente a sua erudição, viu? Não dei um nome a ele.Achei-o lindo e quis mostrá-lo.Só isso.Mas gosto muito de suas observações e respeito-as, sem nenhum constrangimento. Bom final de semana e um abraço