terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

ÚLTIMO CONTO DA GUERRA FRIA

Sucessos do 16 e do 17 de agosto

No dia 17 de agosto do ano da graça de..., ocorrerá a terceira e última guerra mundial. Guerra instantânea, total, datilográfica, como explicava o doutor Crisóstomo, nas suas pacientes e intermináveis elucubrações. Um datilógrafo apertará
Londres, simplesmente isso, e Londres se derreterá. E, assim, sem deferências nem contemplações, Rio de Janeiro, Paris, Moscou, Roma, Berlim, Espera Feliz e Nova York. Perderá a guerra menos rapidamente quem se apresentar com melhor datilografia e máquinas de belo consolo e retrocesso competente e decidido.


16 de agosto.
Amanhã teremos um encontro inevitável com o desenlace. Somos quase sete bilhões de morituros, ávidos de viver, nessas (nossas) 24 horas. A morte não tarda, mas é preciso viver, enquanto o canhoneio não vem. Cada segundo terá de durar uma eternidade. Entremos, pois, no melhor restaurante, assistamos ao melhor teatro e descansemos no melhor apartamento. Deitemos fora os termômetros, as pastas de engraxar que lustram sem ressecar, os pregadores de gravatas, os oito primeiros números da série de Fibonacci, os abridores de latas e os carnês de prestações a juros favorecidos.

- Hoje eu não vou fazer a barba.

- A propósito, quer dançar comigo?

Aqueles que tiverem bom gosto subirão comigo ao Pão de Açúcar, e juntos lançaremos aviões de papel sobre a Baía da Guanabara. Depois, nós nos consumiremos de amor.
Por favor, não nos fale de Bush, nem de Bin Laden, que estes estarão fugindo de si mesmos e de suas biografias, as quais são todas não autorizadas. Nesse dia todo discurso será absolutamente desnecessário. O poliglota, dançando conosco a infatigável valsa da despedida, gritará para as pessoas: Folks! Todos entenderemos "Volks!". Mas ninguém quer saber de Volks porque há Mercedes sobrando. Mercedes e Marias sobrando.

Mercedes e Maria

Alguns, os corruptos (que sempre os há), permacerão graves, mas quase todos estarão se despedindo alegremente. Mães de uns e filhos de outras se abraçarão emocionados, os olhos absolutamente auspiciosos. Pois hoje, 16 de agosto, é o nosso domingo, dia dos pobres iguais aos ricos e dos ricos iguais a todos. Nem importa que a humanidade tenha uma sobrevida de apenas 24 horas - um instantezinho de felicidade é bastante para realizar a criação, humana e desumana, de uma só vez e completamente.

Primeiras informações adicionais:
No dia 16 não haverá chaves, dinheiro valendo e família, porque chaves dinheiro valendo e família são entidades úteis nas coletividades que não esperam morrer amanhã, e apenas nestas. De minha parte, jogarei fora a doçura sem açúcar que não engorda e rasgarei, enfim, o soneto em que tive vergonha de mostrar.


Soneto que será rasgado

17 de agosto: o dia chegou. A felicidade foi ontem. Teremos hoje alucinações maiores que as do recoveiro de Púchkin, varridos da Terra pela nossa própria tecnologia. Que você não pense que essa odisséia no chão (re-odisséia) é algum elevado ou shopping center caindo sobre sua cabeça. Pois é fim do mundo mesmo. Na hora da morte, homens e animais, apartamentos de cobertura da Delfim Moreira e falsos profetas vestidos de azul, tudo, absolutamente tudo, irá desmoronar num único baque.
Os nossos gritos serão abafados pelo troar infernal das bombas deles, e todos viveremos a inerme ventura de morrer igualitariamente.
É a expiação.
É a expiação, pelas nossas guerras convencionais, químicas, de quadrilhas, púnicas, de nervos, santas, sem quartel, bacteriológicas, injustas, de preços, atômicas, frias, econômicas, de cem anos, localizadas, sujas, totais e de torcidas.

Outras informações adicionais: Na verdade salvam-se um homem e uma mulher, que isso aqui é bom demais para ficar desabitado. O homem será escolhido por sorteio, essa a sua chance, mas da mulher serão exigidas qualidades várias, como a beleza da Jeanne Moreau, a coragem de Eneida de Morais e a inteligência da Dione. Engana-se quem pensou em Cláudia Cardinale ou Vera Fischer, cujas, infelizmente, não poderão ser salvas.

A escolhida, uma latina, formará com outro latino um casal sem nenhuma propensão marginal, nem para consumir nem para guerrear. Esta, porém, é outra história, a ser contada depois.

Últimas informações adicionais: Nossos prótons são eternos, mas não teremos missa de sétimo dia.
(fim)

Um comentário:

Anônimo disse...

Esta questão do que faríamos se soubessemos que nos restaria pouco tempo acho que todos fazemos. Muito bom!Eu adoro dançar e dançaria até o ultimo momento ou satisfaria meu desejo de criança de ter uma casa com um balanço, um jardim,e deixaria-me levar nos meus devaneios até que como co-autores desta guerra,nossos Protons seguissem eternamente para a direção do Alfa e Ômega.Tenha um bom dia escritor do proprio Eu. Gina