Sucessos do 16 e do 17 de agosto
No dia 17 de agosto do ano da graça de..., ocorrerá a terceira e última guerra mundial. Guerra instantânea, total, datilográfica, como explicava o doutor Crisóstomo, nas suas pacientes e intermináveis elucubrações. Um datilógrafo apertará Londres, simplesmente isso, e Londres se derreterá. E, assim, sem deferências nem contemplações, Rio de Janeiro, Paris, Moscou, Roma, Berlim, Espera Feliz e Nova York. Perderá a guerra menos rapidamente quem se apresentar com melhor datilografia e máquinas de belo consolo e retrocesso competente e decidido.
16 de agosto. Amanhã teremos um encontro inevitável com o desenlace. Somos quase sete bilhões de morituros, ávidos de viver, nessas (nossas) 24 horas. A morte não tarda, mas é preciso viver, enquanto o canhoneio não vem. Cada segundo terá de durar uma eternidade. Entremos, pois, no melhor restaurante, assistamos ao melhor teatro e descansemos no melhor apartamento. Deitemos fora os termômetros, as pastas de engraxar que lustram sem ressecar, os pregadores de gravatas, os oito primeiros números da série de Fibonacci, os abridores de latas e os carnês de prestações a juros favorecidos.
- Hoje eu não vou fazer a barba.
- A propósito, quer dançar comigo?
Aqueles que tiverem bom gosto subirão comigo ao Pão de Açúcar, e juntos lançaremos aviões de papel sobre a Baía da Guanabara. Depois, nós nos consumiremos de amor.
Por favor, não nos fale de Bush, nem de Bin Laden, que estes estarão fugindo de si mesmos e de suas biografias, as quais são todas não autorizadas. Nesse dia todo discurso será absolutamente desnecessário. O poliglota, dançando conosco a infatigável valsa da despedida, gritará para as pessoas: Folks! Todos entenderemos "Volks!". Mas ninguém quer saber de Volks porque há Mercedes sobrando. Mercedes e Marias sobrando.
Alguns, os corruptos (que sempre os há), permacerão graves, mas quase todos estarão se despedindo alegremente. Mães de uns e filhos de outras se abraçarão emocionados, os olhos absolutamente auspiciosos. Pois hoje, 16 de agosto, é o nosso domingo, dia dos pobres iguais aos ricos e dos ricos iguais a todos. Nem importa que a humanidade tenha uma sobrevida de apenas 24 horas - um instantezinho de felicidade é bastante para realizar a criação, humana e desumana, de uma só vez e completamente.
Primeiras informações adicionais: No dia 16 não haverá chaves, dinheiro valendo e família, porque chaves dinheiro valendo e família são entidades úteis nas coletividades que não esperam morrer amanhã, e apenas nestas. De minha parte, jogarei fora a doçura sem açúcar que não engorda e rasgarei, enfim, o soneto em que tive vergonha de mostrar.
17 de agosto: o dia chegou. A felicidade foi ontem. Teremos hoje alucinações maiores que as do recoveiro de Púchkin, varridos da Terra pela nossa própria tecnologia. Que você não pense que essa odisséia no chão (re-odisséia) é algum elevado ou shopping center caindo sobre sua cabeça. Pois é fim do mundo mesmo. Na hora da morte, homens e animais, apartamentos de cobertura da Delfim Moreira e falsos profetas vestidos de azul, tudo, absolutamente tudo, irá desmoronar num único baque.
Os nossos gritos serão abafados pelo troar infernal das bombas deles, e todos viveremos a inerme ventura de morrer igualitariamente.
É a expiação.
É a expiação, pelas nossas guerras convencionais, químicas, de quadrilhas, púnicas, de nervos, santas, sem quartel, bacteriológicas, injustas, de preços, atômicas, frias, econômicas, de cem anos, localizadas, sujas, totais e de torcidas.
Outras informações adicionais: Na verdade salvam-se um homem e uma mulher, que isso aqui é bom demais para ficar desabitado. O homem será escolhido por sorteio, essa a sua chance, mas da mulher serão exigidas qualidades várias, como a beleza da Jeanne Moreau, a coragem de Eneida de Morais e a inteligência da Dione. Engana-se quem pensou em Cláudia Cardinale ou Vera Fischer, cujas, infelizmente, não poderão ser salvas.
A escolhida, uma latina, formará com outro latino um casal sem nenhuma propensão marginal, nem para consumir nem para guerrear. Esta, porém, é outra história, a ser contada depois.
Últimas informações adicionais: Nossos prótons são eternos, mas não teremos missa de sétimo dia.
(fim)
terça-feira, 26 de fevereiro de 2008
terça-feira, 19 de fevereiro de 2008
SOLILÓQUIO
Aguardando uma tertúlia literária
Chego antes das 14 horas e acomodo-me na primeira fila. Lembro-me de ter trazido as crônicas do Machado de Assis e aproveito para ler sobre o velho Senado, pois conhecer a alma das instituições sempre me comove e emociona.
"Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-se para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e sua voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas:
- Não à vaidade, senhor presidente...
Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga, nem dele nem do auditório, que o aplaudiu."
Bardo Sereno
Dez minutos minutos passados, talvez mais, só agora percebo que a sala está lotada. Há muitas pessoas em pé. Imagino que toda essa gente esteja na expectativa de uma briga, como a da semana passada. Ainda faltam 20 minutos para o início da sessão, uma eternidade.
Subitamente um homem levanta-se no meio da platéia e toma a palavra:
- Meu nome é Bardo Sereno. Nada tenho a ver com este evento, mero circunstante e metediço que sou por aqui, mas gostaria que os senhores ouvissem o meu texto.
Um constrangimento prolongado, até que o velhinho da bengala se manifesta:
- Texto, que texto?
- Um pequeno solilóquio, mediante o qual apresento a minha capacidade.
- Solilóquio... O que é isso?
- Um monólogo dramático de caráter literário.
- Manda lá o solilóquio, se de fato pequeno.
- Aí vai... Maldo, escarneço, degringolo, hiperbolizo, descuro, prevarico, infernizo e obscureço, sem que ninguém se dê conta da iniqüidade que represento. Tergiverso, ocultamente, e como! Posso rir de todos os discursos sobre o método, extrair a raiz cúbica do infinito, iluminar buracos negros e consolar girafas escandalizadas, eis alguns dos meus mais freqüentes e divertidos passatempos. Posso evitar o assassinato de Lincoln, impedir o terremoto de Lisboa, apagar o incêndio de Roma, absolver Giordano Bruno e Galileu Galilei, decidir sobre o Santo Graal, conferir os cálculos de Eratóstenes e reabrir a Academia de Platão, dela excluindo os que não saibam matemática, e somente estes. Que mais, isso mesmo, que mais? Sou capaz de conversar com Cervantes, convencer o indeciso Pilatos de que a democracia direta é muito complicada, conter os arroubos de Napoleão ou salvá-lo de Waterloo, dar ouvidos a Beethoven, atirar longe a cicuta de Sócrates e comprar trigais diretamente de Van Gogh. Uma pechincha, senhores, uma pechincha!
- Muito bem!
- Maravilhoso!
- Valeu, Bardo Sereno!
- Sinceramente... Eu não esperava críticas, assim, tão construtivas. Obrigado, obrigado a todos!
Namorou a Pier Angeli
Muito curioso, mas prefiro que ninguém mais se anime para uma segunda exibição desse tipo. Não tenho disposição, nem paciência, para ser platéia dos ASP, autores sem público. Não mesmo, não mesmo. Pois, como caixa de banco indefeso e desqualificado, sou obrigado a ouvir todo dia o gerente da conta dos aposentados, que tem um discurso parecido com o desse Bardo Sereno para relatar suas inesgotáveis proezas e capacidades. É o doutor Pacheco, um velhinho que fala rumeno sem sotaque, conhece armas e brasões, é PHD em geografia política, foi campeão de tênis, derrotou o Petrossian com xeque-mate de cavalo e sobreviveu 40 dias no deserto. Ah, antes que me esqueça, protagonizou o Cyrano de Bergerac, namorou a Pier Angeli e deu aulas particulares para o Norberto Bobbio.
Solilóquio, so - li - ló - quio...
(fim)
Chego antes das 14 horas e acomodo-me na primeira fila. Lembro-me de ter trazido as crônicas do Machado de Assis e aproveito para ler sobre o velho Senado, pois conhecer a alma das instituições sempre me comove e emociona.
"Paranhos costumava falar com moderação e pausa; firmava os dedos, erguia-se para o gesto lento e sóbrio, ou então para chamar os punhos da camisa, e sua voz ia saindo meditada e colorida. Naquele dia, porém, a ânsia de produzir a defesa era tal, que as primeiras palavras foram antes bradadas que ditas:
- Não à vaidade, senhor presidente...
Daí a um instante, a voz tornava ao diapasão habitual, e o discurso continuou como nos outros dias. Eram nove horas da noite, quando ele acabou; estava como no princípio, nenhum sinal de fadiga, nem dele nem do auditório, que o aplaudiu."
Bardo Sereno
Dez minutos minutos passados, talvez mais, só agora percebo que a sala está lotada. Há muitas pessoas em pé. Imagino que toda essa gente esteja na expectativa de uma briga, como a da semana passada. Ainda faltam 20 minutos para o início da sessão, uma eternidade.
Subitamente um homem levanta-se no meio da platéia e toma a palavra:
- Meu nome é Bardo Sereno. Nada tenho a ver com este evento, mero circunstante e metediço que sou por aqui, mas gostaria que os senhores ouvissem o meu texto.
Um constrangimento prolongado, até que o velhinho da bengala se manifesta:
- Texto, que texto?
- Um pequeno solilóquio, mediante o qual apresento a minha capacidade.
- Solilóquio... O que é isso?
- Um monólogo dramático de caráter literário.
- Manda lá o solilóquio, se de fato pequeno.
- Aí vai... Maldo, escarneço, degringolo, hiperbolizo, descuro, prevarico, infernizo e obscureço, sem que ninguém se dê conta da iniqüidade que represento. Tergiverso, ocultamente, e como! Posso rir de todos os discursos sobre o método, extrair a raiz cúbica do infinito, iluminar buracos negros e consolar girafas escandalizadas, eis alguns dos meus mais freqüentes e divertidos passatempos. Posso evitar o assassinato de Lincoln, impedir o terremoto de Lisboa, apagar o incêndio de Roma, absolver Giordano Bruno e Galileu Galilei, decidir sobre o Santo Graal, conferir os cálculos de Eratóstenes e reabrir a Academia de Platão, dela excluindo os que não saibam matemática, e somente estes. Que mais, isso mesmo, que mais? Sou capaz de conversar com Cervantes, convencer o indeciso Pilatos de que a democracia direta é muito complicada, conter os arroubos de Napoleão ou salvá-lo de Waterloo, dar ouvidos a Beethoven, atirar longe a cicuta de Sócrates e comprar trigais diretamente de Van Gogh. Uma pechincha, senhores, uma pechincha!
- Muito bem!
- Maravilhoso!
- Valeu, Bardo Sereno!
- Sinceramente... Eu não esperava críticas, assim, tão construtivas. Obrigado, obrigado a todos!
Namorou a Pier Angeli
Muito curioso, mas prefiro que ninguém mais se anime para uma segunda exibição desse tipo. Não tenho disposição, nem paciência, para ser platéia dos ASP, autores sem público. Não mesmo, não mesmo. Pois, como caixa de banco indefeso e desqualificado, sou obrigado a ouvir todo dia o gerente da conta dos aposentados, que tem um discurso parecido com o desse Bardo Sereno para relatar suas inesgotáveis proezas e capacidades. É o doutor Pacheco, um velhinho que fala rumeno sem sotaque, conhece armas e brasões, é PHD em geografia política, foi campeão de tênis, derrotou o Petrossian com xeque-mate de cavalo e sobreviveu 40 dias no deserto. Ah, antes que me esqueça, protagonizou o Cyrano de Bergerac, namorou a Pier Angeli e deu aulas particulares para o Norberto Bobbio.
Solilóquio, so - li - ló - quio...
(fim)
Assinar:
Postagens (Atom)