BEATI MONOCULI
É divertido vê-los chegar, muito humildes, como o Araújo, que ontem aqui aportou de mala quase vazia, trazendo nas mãos um espelho, um cavaquinho e dois cabides de arame.
- Quanto custa o quarto mais barato?
A pensão
Depois, integrados, desinibem-se e esparramam-se pensão afora, com seus malogros e ambições, grandes defeitos e poucas qualidades. São, como eu, perdedores, vultos, apenas vultos, e, deles, o pouco que sei considero demasiado.
Caminhadas suspeitas
Nenhuma importância há de haver no guarda-livros que estuda canto, na esperança de representar o Othelo; na Ivonete, que era caixa de farmácia no Largo da Segunda-Feira e agora, mesmo desempregada, usa perfumes caros e só traja vestidos importados, nas suas caminhadas suspeitas pela Conde de Bonfim; no Sargento Castro de Paula, cujo sonho é servir na Bósnia, por alguns dólares da ONU, e na sua mulher, dona Eulália, a portuguesa branquicela que tudo tempera com azeite de oliva, até a sobremesa; no Sebastião Valadares, que ateou fogo no armazém vazio após esconder as mercadorias num depósito de Caxias e, em vez de receber a indenização reclamada à companhia de seguros, está a enfrentar um adverso processo judicial; no Zé Terra, um pernambucano enfezado que bate na mulher, a Jupira; e no Sorianito Gonzalez, que é mexicano e apanha da sua todas as noites.
Incêndio do inexistente
Reversão dialógica
Ah, sim, antes que me escape, Carlos Arruda de Proença é dos hóspedes o mais extravagante, com sua mania de usar expressões complicadas, das quais não me esqueço de "mateologia holística", "reversão dialógica" e "tmeses ataviadoras". Ele se recusa a esclarecê-las, mesmo não sendo entendido por ninguém.
- Louçanias, senhores, meras louçanias de linguagem. Não existem para ser explicadas, nem me cabe nenhuma obrigação de dar milho aos pombos.
Outro dia, quando se conversava no jantar sobre decisões políticas controvertidas, deixou escapar alguma coisa em latim, "beati monoculi in regione caecorum", provocando reações irônicas do Zé Terra e de dona Eulália.
- Na minha terra quem fala bonito é o prefeito.
- Em Portugal a lei da vida é muito outra, pois escreveu, não leu, o pau comeu. Lá o pau come solenemente!
- Vocês são estupefativos, rebateu o Proença.
- O quê?
- Gente de visão plúmbea, ímproba e mitigada.
E não é só
Pois há também na pensão um Licurgo dos Santos Reis, alfaiate de roupas militares, que às vezes inicia suas refeições com rezas assim:
Profanaste os vasos santosNas torpezas de um festim.Teus dias estão contadosComo os da bela Seboim.Não sabias, cão danado,Que tenho o corpo fechado?Tu fizeste e pagarás,Vade retro, Satanás.
Rezas ou pragas, nem sei direito.
Praga
No mês passado apareceu aqui o Abdmelaus Karuche de Alicante, conhecido como Abdias, um estudante profissional que se gaba de sempre conseguir generosas bolsas de estudo, de acordo com trâmites que conhece com exclusividade. Polpudas e sumarentas bolsas, garante ele, que as acumula, a todas, na maior desfaçatez. Estudou engenharia, literatura e geografia, mas seu interesse atual está na filosofia, que orgulhosamente chama de a ciência de Platão.
Justiça seja feita, esse Abdias realmente estuda, e estuda muito, adquirindo informações a serviço de coisa nenhuma, a fundo perdido, pois disse repetidas vezes que não trabalhará jamais.
Assassinou o sono
Ts´ai Lun
Sentado em meu canto, na maior parte do tempo desligo-me desse ambiente, que em certas ocasiões se torna inóspito e agressivo. Eles falam da ONU, das companhias de seguros, de Othelo, das mulheres que gostam de apanhar, do azeite de oliva, das bolsas de estudo e das louçanias de linguagem, e eu, fingindo que os ouço, viajo infinito afora, imaginando por que Einstein assumiu-se com a velocidade da luz para estabelecer as bases da teoria da relatividade, se é verdade que o eunuco chinês Ts´ai Lun inventou o papel ou como Machbeth, o nobre escocês que assassinou o sono, houve de morrer pelas mãos daquele que não nasceu de mulher, quando as florestas se puseram a caminhar.
(Fim)
Mais que ouro
Hennig Brand
A descoberta do fósforo foi uma façanha do alquimista alemão Hennig Brand (1630-1710), graças à sua tentativa de produzir ouro a partir da urina. Em 1669 Brand reuniu 50 galões de urina no porão de sua casa e adicionou-lhes produtos químicos que foi escolhendo arbitrariamente. A pasta resultante foi submetida a um processo de destilação, cujos vapores deveriam transformar-se em ouro quando resfriados em água.
O que obteve, porém, foi uma substância que brilhava na escuridão. Em vez de chegar ao ouro, descobriu o fósforo. Pois, com as adições de Hennig Brand, a urina, um fosfato sódico de amônia, foi transformada num fosfito sódico, que, levado à ebulição, decompôs-se de maneira a liberar o fósforo.
Um caso típico de serendipidade.
Logo se percebeu a importância comercial dessa descoberta.
Pelo caminho percorrido por Hennig Brand, eram necessários 50 litros de urina para obter um grama de fósforo, que era vendido por cerca de 30 dólares atuais por grama, valendo mais que o ouro.
Genialidade, azar e imprudência
O químico sueco Karl Scheele (1742-1786) descobriu em 1769 um processo semelhante à pasteurização que permitiu a produção de fósforo em larga escala e colocou a Suécia como líder mundial em produtos lumíníferos.
Karl Scheele
Scheele foi um gênio da química, tendo descoberto inúmeros elementos químicos, como o oxigênio, o nitrogênio, o bário, o cloro, o flúor, o manganês, o molibdêmio e o tungstênio, além de diversos compostos químicos, como o ácido nítrico, o glicerol, o ácido tânico e o cianeto de hidrogênio, este conhecido como ácido prússico.
Além da competência, outra particularidade de Scheele era a falta de sorte. Suas descobertas passaram despercebidas ou ocorreram paralelamente às de outros pesquisadores, que receberam todo o crédito por essas façanhas. Por exemplo: Scheele descobriu o oxigênio em 1772, mas quem recebeu o crédito foi Joseph Priestley (1733-1804), que descobriu o oxigênio apenas em 1774. Outro caso foi o da descoberta do cloro, atribuída a Humphry Davy (1778-1829), que de fato o descobriu em 1810, mas Karl Scheele já o fizera 36 anos antes.
Scheele tinha o mau hábito de experimentar o sabor das substâncias que produzia no seu laboratório, como o mercúrio e o ácido clorídrico. Um hábito que lhe custou a vida, pois foi encontrado morto, por envenenamento, no dia 21 de maio de 1786.
A RAINHA MORTA
O episódio de Inês de Castro ocorreu em Coimbra, no século XIV. Consta que Dom Pedro, quando ainda príncipe herdeiro do trono de Portugal, casou-se secretamente com a dama espanhola Inês de Castro, após ficar viúvo de Constância de Aragão, falecida em 1345. O casal viveu seus amores no Paço de Santa Clara, às margens do rio Mondego, em Coimbra.
Afonso IV, o Rei Benigno, aconselhado por cortesãos que temiam uma influência espanhola sobre o trono de Portugal, decretou a morte de Inês, em 1355, aproveitando-se do fato de que seu filho Pedro estava ausente, ou lutando pelo Reino de Castilha, segundo uns, ou numa estação de caça, segundo outros.
Três cortesãos, Pero Coelho, Diego Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves, foram encarregados de executar a pobre dama, missão que teriam cumprido com requintes de crueldade, degolando Inês sem nenhuma piedade. Segundo a tradição popular o sangue de Inês ficou gravado numa rocha e nela permanecerá para sempre.
Rei Cruel
Desvairado com o ocorrido, Dom Pedro insurgiu-se contra o pai, derrotou-o, corou-se rei de Portugal e perseguiu os carrascos de Inês, torturando dois deles até a morte, Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Por tal motivo passou à história com os epítetos de Rei Justiceiro e Rei Cruel. Reza uma das versões que em 1361 Dom Pedro mandou exumar o cadáver de Inês, coroando-a rainha depois de morta. Os restos mortais de Pedro e Inês estão em túmulos suntuosos no Mosteiro de Alcobaça, cidade que fica a 109 quilômetros de Lisboa.
Mosteiro de Alcobaça
Inês nos Lusíadas
Inês de Castro é o tema das estrofes de 118 a 135 do Canto III dos Lusíadas, reproduzindo a história de Portugal como narrada por Vasco da Gama ao rei de Melinde (uma cidade que hoje pertence ao Quênia, na costa do Índico). Abaixo, duas estrofes de Camões alusivas ao episódio:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruto,Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a Fortuna não deixa durar muito,Nos saudosos campos do Mondego,De teus formosos olhos nunca enxuto,Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito, Se de humano é matar uma donzela Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la, A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha, Pois te não move a culpa que não tinha.