quarta-feira, 30 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (11)

Aguardando a entrevista




Tenho certeza. Vão exigir de mim respostas objetivas sobre coisas desimportantes, como o papa que em boa hora instituiu a missa do galo, a origem dos vertebrados, os anos de Margareth Tatcher no poder, em que cidade existiu um bonde chamado Desejo, qual a cor da ametista, a importância dos capacitores nas instalações industriais, a deusa à qual foi dedicado o Paternon, a capital da Carolina do Norte, além de questões sobre equações trigonométricas, as cópias do Doríforo, econometria, línguas faladas em Vaduz, que é capital do Liechtenstein, teorema das forças vivas e os conjuntos transfinitos do matemático alemão George Cantor, o qual, pelo que sei e depreendo, não cantava em conjunto nenhum. Algo assim:


- Você sabe o que é quiáltera? Como se chama o estreito que liga o Mar Egeu ao Mar de Mármara? Mogadíscio é capital de qual país africano?


Ou seja, perdi o emprego.

sábado, 26 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (10)

SOU UM BENEFICIÁRIO

Quem, sozinho no mundo, poderia fabricar seus próprios chinelos, a camisa, a vara de pescar e a pulseira, bolar o crivo de Eratóstenes e obter a luz polarizada? Quem poderia plantar trigo, tanger os bois, pensar as feridas, construir teatros, calcular juros compostos, varrer a sala, decifrar hieróglifos, pedir vistas, tirar fotografia, calcular o logaritmo neperiano de 118, enunciar a constante de Planck, compor uma sinfonia de Mahler, acompanhar as fases da Lua, extrair raízes quadradas, comentar partidas de tênis, matar baratas, calibrar galvanômetros, registrar os fatos econômicos em partidas dobradas, estudar tabuada, temperar a feijoada, saber o que é zigoto, monera e esclerótica e, além disso, ler Tolstói e Guimarães Rosa, aplicar na Bolsa, assoar o nariz, receber aluguéis, cantar boleros, visitar Nova Orleans e ser dono de uma franquia dos correios?

- Ninguém. Nem me importa se estou enguiçado na estrada, sendo aplaudido em Curitiba, almoçando em Cascais ou, enfim, mofando nesta prisão que nem sei onde fica.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (9)

NÃO COLOU

- Adorei a sua cama...

Devo fingir que sou intelectual, sem errar nem pestanejar, antes que Pascale se levante da minha cama, decida ir embora e me deixe no ora-veja. O negócio é manter a calma, Estevinho, e falar com naturalidade e sem afetação. Tudo bem, mas falar sobre o quê? René Clair e Truffaut... Não, não, que ela é francesa, e disso deve saber muito mais do que eu. Quem sabe a expansão do Universo? As Vésperas Sicilianas, de Verdi?
O paradoxo de Abilene?

- Estevinho, você se formou em quê?

Ela foi mais rápida, ou seja, falhei...

- Em nada, Pascale. Pode-se viver de muitos modos, sem precisar da universidade. Conclua a Inacabada de Schubert, invente o motor de combustão externa, procure libelático no dicionário, plante uma bananeira no alto do Himalaia, compre o bilhete que será contemplado com o grande prêmio, aprenda a cabecear no ângulo, dedique-se à alta costura.

- Até mais mais ver, Estevinho.

sábado, 19 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (8)

INOCÊNCIA PUTATIVA


Regininha foi encontrada morta. Ao lado da cama, o bilhete que me incriminava:

"Devo informar aos meus familiares, à polícia e a quem mais interessar que fui assassinada por José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, conhecido como Estevinho, que mora no 800 da Visconde de Albuquerque."

Revólver na mão, quarto fechado por dentro, tudo indicava suicídio irrevogável e irretratável, dos categóricos e inapeláveis.
Mas o bilhete, como explicar o bilhete?
Por que me envolveu, se não tivemos nenhum relacionamento?
Sacana, que Deus a tenha.
Meu nome nos jornais, aquele trabalhão para provar a inocência, a revista interminável do apartamento, os numerosos comparecimentos à delegacia, os risinhos do escrivão, o mau humor do delegado, as despesas impossíveis. Citações, agravo de instrumento, apelação, habeas data, mandado de injunção, preclusão, certidões. Não exigiram incunábulos, nem palimpsestos, que talvez nem se apliquem nestes casos mais bodosos.

- Inocência putativa, sentenciou o juiz.
Putativa!

quarta-feira, 16 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (7)

FRASES E ESPELHOS

O exame constava de uma única questão: escrever uma frase, qualquer uma.
Eu me meto em cada fria...


Júpiter e Io, de Correggio

Há de ser uma frase alheia, e não minha, pensei.
Sete anos de pastor Jacó servia a Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prêmio pretendia. Não, não, não, nada disso, pois trata-se de uma fofoca da Bíblia, não obstante Camões.
Por sua inaptidão para o trabalho, meu filho Charles Darwin será uma vergonha para si mesmo e para toda a família. Também não, que isso é um curto-circuito, não uma frase.
E se eu citar, de Jack Welch, que até os elefantes podem dançar?
Ou, de Lorde Keynes, que a longo prazo estaremos todos mortos?
Ou, de Freud, que a noção do impossível não existe para um indivíduo que faz parte de uma multidão?
Não, nenhuma dessas.
Até que, finalmente, decidi escrever a frase de Borges:

- Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.

sábado, 12 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (6)

JOGADORES DE FUTEBOL

Muitos estavam ali por exigência da família, que enxergava no futebol uma oportunidade de ascensão econômica e social. Mas todos sabiam que a maioria seria dispensada no final do período de testes.

Enquanto a degola não vinha, a vida seguia. Vira e mexe, o papo da garotada girava sobre o que fazer com o primeiro salário. O Suélio, um baixinho cheio de marra, queria mesmo era casar com a Isiane. Lucinho dizia que seu desejo era comprar um apartamento para os pais, lá para os lados de Realengo ou, quem sabe, da Tijuca. E vinha o Carijó, sempre ele, com alguma tirada extravagante.

- Vou comprar uma casa e um carro. Mas antes quero ir a um restaurante lá de Bonsucesso, o "Sustança Garantida", e pedir dois filés com batatas fritas. O primeiro é para matar a fome.

- E o outro?

- De sobremesa, ora essa!

quarta-feira, 9 de maio de 2012

CONTOS DE 150 PALAVRAS (5)

RENDA NACIONAL

Tudo que se recebe a título de remuneração do trabalho, do capital e da natureza forma a renda nacional, explicou o professor. Alguns cuidados são por isso essenciais.

- Por exemplo, é impatriótico casar com a governanta, pois um salário é imediatamente cancelado, diminuindo a renda nacional.
Todos riem. Não sei por quê, quando em grupo, as pessoas têm mais disposição para o riso, e todos os chistes são bem-sucedidos. Sozinho sou uma coisa, no grupo sou outra diferente, e na multidão sou uma gota dentro de uma nuvem. Choverei também, se a decisão for a de promover uma tormenta.
Ela tem um lindo CPF
- Vocês ousariam pedir recibos às suas mulheres? Se o fizessem, poderiam abater suas mesadas dos rendimentos tributáveis, mas elas teriam de fazer declaração de renda!

Piada de economista é sempre assim, magnificar a renda nacional, não casar com a governanta, assalariar a mulher com a finalidade de deduzi-la...