quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A ESCOLHA (parte 2/4)

Proposta irrecusável

Passados três meses, fui chamado a depor em juízo. Estava disposto a contar toda a verdade, pois ninguém poderia me impedir de relatar o que fora visto por mim e pelas testemunhas não arroladas. Redigi, e depois decorei, o que iria dizer ao excelentíssimo senhor Juiz.

- Tudo transcorria normalmente no bar do Ponto Quente, quando surgiu o Epitácio e gritou: Abdias! O doutor Abdias se voltou, com a xícara de café na mão direita e o pires na mão esquerda. Epitácio fez seis disparos, à queima-roupa, sem dar à vitima nenhuma oportunidade. Gostaria de acrescentar, meritíssimo, que duas dezenas de pessoas estavam presentes, viram o que vi, mas fui o único a ser arrolado como testemunha.

O juiz me recebeu à porta do seu gabinete e, tão logo ficamos a sós, disse-me o seguinte:

- Tenho uma proposta. Se o senhor aceitar, ficará livre dessa enrascada.


- Seja qual for sua proposta, meritíssimo, considere-a aceita por mim.

Foi assim que renunciei à gerência da loja de aparelhos de televisão em favor de alguém cujo nome nem cheguei a saber e em 24 horas já estava de volta ao Rio de Janeiro. Eu tinha de recomeçar minha vida, e prontamente, dado que minhas economias eram escassas e insuficientes, pois eu dissipara com perdulária facilidade tudo que ia conseguindo com a venda dos aparelhos. Por isso me lembrei do tio falecido e decidi reclamar a minha parte da herança.

- Aqui está o que lhe coube, disse-me o doutor Eusébio, passando-me o envelope.

No qual havia 49 ações da Vale do Rio Doce.

- Como assim? Vim pela minha parte na herança do tio Dilermando.

- O que lhe cabe são essas ações.


Fiquei sabendo que os herdeiros optaram por um sorteio dirigido. Os apartamentos foram sorteados entre os que preferiam apartamentos, assim como as casas, os dólares e as barras de ouro. Como eu não estava presente e ninguém conhecia as minhas preferências, coube-me o envelope com as 49 ações da Vale do Rio Doce. Não adiantaria nenhum protesto porque tudo estava homologado na Justiça, com a concordância de todos os herdeiros, a minha inclusive, tendo em vista as procurações que eu havia assinado.



Vi no jornal a cotação do papel: cerca de nove dólares por ação (numa daquelas moedas já extintas). No frigir dos ovos, a minha grande herança não alcançava 500 dólares, o preço de um dos robustos aparelhos de televisão que estivera vendendo em Maceió. Dessa vez eu tinha a reconfortante desculpa de que a má escolha não fora feita diretamente por mim.
Fazer o quê? Deixei de lado as ações e fui à luta.

Força, companheiro

Estava com 27 anos e disposto a enfrentar todas as situações, pois sou burro, não preguiçoso. Por sorte consegui o emprego de propagandista dos remédios de uma indústria farmacêutica que introduzira no Brasil as experiências de Hawtorne.
Engenharia humana, harmonia do grupo, treinamento, incentivos, qualidade total. Um projeto onde se aboliram as regras gerais, as rotinas paralisantes e as receitas que nunca falham. Inicialmente o trabalhador mais experiente foi declarado instrutor dentro de sua unidade, partindo do princípio de que cada um deveria ser responsável pelo treinamento dos demais. Veio depois o "cross-training": os trabalhadores de uma unidade eram levados a aprender as tarefas de outras unidades. Pensou-se que era uma manobra para reduzir pessoal. Quando a companhia passou a conferir prêmios aos que podiam desempenhar mais de uma função, e não demitiu ninguém, todos se sentiram seguros e importantes, pois participavam de um projeto vitorioso.

- Sabe o resultado final?

- Gostaria de saber...

- Uma indústria farmacêutica de capital nacional, que, sem nenhum incentivo oficial, podia competir em pé de igualdade com os fabricantes estrangeiros. É a capacidade social do trabalhador que determina o seu nível de competência e eficiência e não sua capacidade de executar movimentos eficientes dentro do tempo estabelecido. Quanto maior a integração social do grupo, maior a disposição para trabalhar. (continua)

sábado, 27 de agosto de 2011

A ESCOLHA (parte 1/4)

O caso do cabrito

Nem sempre fui feliz nas minhas escolhas, conforme passo a demonstrar:

Sou torcedor do América.
Meu primeiro carro foi um Gordini.

Votei em Jânio Quadros.

Comprei quotas do Carnê Fartura e ações da “holding” da Marcopolo.
Vi “Quintet”, quando podia ter visto “Depois do Vendaval”.

Estudei romeno e “job control language”.

Passei férias em Zurich e namorei a Cidinha.

O deputado que ajudei a eleger trocou o mandato por um cartório, e o senador da minha predileção, quem diria, desviou verbas importantes do orçamento na
cional - uma prática antiga, embora só agora institucionalizada no Brasil.

Maureen O'hara

- Ai, pois, da Sofia, se dependesse de mim para fazer a sua escolha!

Houve, porém, uma escolha que não fiz: fizeram-na por mim. Eu era um dos dezoito herdeiros de um tio repentinamente falecido, cuja fortuna incluía apartamentos, casas, lojas, joias, quadros valiosos, títulos e dólares. Como residia em Maceió, deleguei ao inventariante, doutor Eusébio, que era um dos herdeiros, plenos poderes para fazer a divisão dos bens segundo lhe parecesse mais justo. Assinei todas as procurações necessárias, ficando acertado que, tão logo meus negócios alagoanos me permitissem, eu viajaria para o Rio de Janeiro para assumir a parte que me coubesse. Devo dizer que isso se passou em 1970. Era gerente de uma loja de aparelhos de televisão, o que me proporcionava bons rendimentos, tanto que meu lugar era cobiçado por muita gente boa da cidade, incluindo parentes de usineiros, de deputados, de senadores e até do governador.

Praia de Pajuçara

A vida em Maceió era escamada e cheia de peripécias. Ia ao futebol com o Tuíta, que me fez escolher o CRB (escolha que não fugiu ao meu padrão, pois o CSA derrotou o CRB em todos os clássicos a que assisti).
Se saía com a Cidinha, toda a cidade seguia nossos passos, pois nenhum carioca era digno de confiança, podendo, a qualquer momento, corromper reputações e arruinar famílias inteiras. Basta dizer que o Adelino Peres foi preso por atentado ao pudor, e expulso da cidade, por estar beijando a Beatriz na praia do Farol. Posso citar também o assassinato do doutor Eliseu, que seduziu a moça da Sinimbu e com ela não quis se casar. Os cinco irmãos fizeram questão de atirar ao mesmo tempo, pelas costas, e deram uma exibição de sapateado sobre o corpo agonizante do sedutor.

- Onde?

- No centro da cidade, para que todos testemunhassem a legítima defesa da honra.
Ocorreu então que o ônibus atropelou o cabrito. O dono do animal, inconformado, assassinou o motorista do coletivo a sangue-frio e foi condenado a seis anos de prisão, com outras graves consequências: o juiz do caso pagou a sentença com a própria vida. Fui testemunha da cena: o doutor Abdias tomava café no Ponto Quente, quando foi interpelado pelo Epitácio, irmão do proprietário condenado. Ao se voltar, o juiz recebeu uma descarga de seis tiros, à queima-roupa, sem que pudesse esboçar nenhum gesto de defesa.


Pois é, presenciar o crime teve importantes consequências na minha vida. Dezenas de pessoas viram o que vi, mas só eu fui arrolado como testemunha do homicídio, pois era um carioca que interferia negativamente nas oportunidades de emprego da cidade e ainda por cima namorava a moça mais bonita da cidade, sabe-se lá com quais levianas intenções.
Fui informado de que isso representava a minha sentença de morte. Testemunhasse em qualquer sentido, seria executado pela parte contrariada.

- Não tenha disso nenhuma dúvida!


Recusei-me a prestar declarações à polícia, pois fui logo dizendo que me reservava o direito de depor exclusivamente em juízo. Funcionou, e muito bem, pois o delegado não fazia nenhuma questão de tomar a termo o meu testemunho, pois ele próprio temia por sua vida.


Cidinha

Durante três meses vivi o tormento do homem sem nenhuma saída, sozinho num mundo povoado de gente vazia. Nas ruas as pessoas me olhavam com curiosidade, pois viam em mim um cadáver em plena elaboração, circulando provisória e indevidamente. Cidinha imediatamente me abandonou pelo jogador alagoano que atuava pelo Corinthians e era enaltecido nas páginas esportivas dos jornais de São Paulo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

UMA FRANCESA NA MINHA POLTRONA

Uma sinfonia de Mahler

Sentiu a mão no ombro. Era a moça de preto.

- Posso sentar?


- Por favor.

- Peço que não estranhe a ousadia. Estava a observá-lo e senti uma vontade irresistível de conversar com você.

- Não seja por isso. Muito prazer em conhecê-la.

- Não sei, não, mas você me parece muito angustiado.


- Estou pensando no paradoxo do mentiroso e curtindo um pouco a solidão.


- Solidão cheia de manias: “garçom, mais um black and white. Oito anos.” Nunca vi black and white que não fosse oito anos...


- Nem eu. Mas não gosto de correr nenhum risco...

- Muito engraçado!


Pascale. Olhou-a atentamente. Era olhos e boca, como uma mulher de Manuel Bandeira. Quem sabe francesa? Há francesas que abordam homens nos bares, falam Português e tomam banho. Aos 34 anos, Estevinho vivera todas as situações: casara-se, desquitara-se, casara-se novamente, divorciara-se, juntara-se algumas vezes.
Mulheres que partiam, mulheres que chegavam. Algumas, de férias, por prazo definido, ou, como dizia, mulheres dia três, que vão embora no dia quatro, para Porto Alegre, Munique, Juiz de Fora, Florença, Houston ou Além Paraíba. Pois é necessário retornar ao trabalho ou aos braços de um noivo impaciente e cheio de saudade.

- Aceita um uísque?

- Só se for oito anos...

Na cama


Um homem e uma mulher que tomam uísque juntos, no Leblon, são cúmplices de um ideal inexorável: a cama. Quanta obra-prima existe, livros, filmes, peças e canções, sobre mesas, pianos, luvas, colares, retratos e outros variados objetos, usados como metáfora do amor ou de sua ausência. Há um texto de Rubem Braga exaltando o guarda-chuva. Sobre cama, todavia, tudo que Estevinho conhecia era a história de um homem traído, que, ao separar-se da mulher, doou-lhe tudo, absolutamente tudo, menos a cama. Pois se a cama fosse com ela, teria perdido a própria alma,
além da mulher.


Pascale

Pois é, minha pátria é minha cama, pensou Estevinho, quando viu Pascale, deitada a seu lado. Nua assim, deitada assim, magnífica assim. Simplesmente deslumbrante! Uma mulher bonita começa pelos olhos, continua nos lábios, alteia-se em montes soberbos, estende-se por vales insondáveis e acaba... não acaba não, isso mesmo, uma mulher bonita não acaba nunca. A mulher é a perfeição. Se Aristóteles não disse isso, eis pois uma imperdoável omissão de Aristóteles.
Volúpia, entrega, prazer, apoteose à primeira potência, apoteoses ao quadrado, apoteoses ao infinito, eis o enredo do amor, que é a melhor das capacidades humanas. Um instante de amor, Estevinho, vale por uma boa eternidade.


Dia três


Estevinho olhou com ternura a francesa agora deitada no sofá da sala, ainda nua e magnífica. Não se conteve:

- Você é deslumbrante, Pascale. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.

- Exatamente o que você disse para a Regininha, Estevinho.


Hamlet

Há entre o céu e a terra coisas para além do que supõe a nossa filosofia, meu caro Estevinho. Bebi muito? Essa Pascale existe mesmo? Estou sonhando? Regininha está viva, e quem morreu fui eu? Onde estou? Por quem os sinos dobram? Calma, calma, que os sinos não dobram, estou no apartamento da Visconde de Albuquerque, vivo, pois morta está a Regininha, Pascale existe mesmo e está deitada na minha poltrona, bebi muito e há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia. O negócio é ficar calmo, fingir naturalidade e mostrar interesse a meio pau.

- Como você sabe que eu disse isso para a Regininha?

- Regininha era minha irmã gêmea.


Ora, diabo, essa foi de lascar! Atiro-me pela janela, escrevo uma carta para Marlene Dietrich, demonstro seis vezes o teorema de Pitágoras ou compro uma geladeira a prestações? Como se conjuga explodir na primeira pessoa? Easy, boy, deixa a Pascale desfazer o pacote e que não haja nele serpentes, nem explosivos.


- Agora sei por que você me parecia familiar: há no seu rosto muita coisa da Regininha!


- Nosso encontro não foi espontâneo, Estevinho. Procurei-o no bar para conversar sobre ela.


Regininha

A chegada da verdade, pelo remorso da família, isso, exatamente isso, que Pascale foi logo confessando. Filhas de pai francês e mãe brasileira, Pascale e Regininha tiveram uma infância abastada no Leblon. Quando os pais se separaram, Regininha e a mãe permaneceram no Rio de Janeiro, mas Pascale voltou com o pai para a França. Mãe e filha dissiparam tudo que o francês lhes deixara, com grandes complicações para ambas. A consequência foi que aos poucos Regininha tornou-se garota de programa. Cobrava 500 dólares para passar uma tarde com executivos. Tudo lucrativo e reservado, pois era requisitada por gente que não economizava dinheiro e comportava-se com toda a discrição.
(Quem diria, a Regininha, hein? Eu, morando aqui perto, não estava sabendo de nada. Prostituta, a Regininha Duvivier era prostituta!
)

- Aconteceu, porém, que a Regininha conheceu o Ernesto Augusto numa festa. Começaram a namorar e ficaram noivos. Ele é muito rico e decidiu promover um jantar de cerimônia para apresentá-la a seus amigos e parentes. Deu-se então que um dos convidados, o banqueiro Leopoldo, reconheceu a Regininha.


- Era um dos seus clientes?


- Isso, isso mesmo. Na manhã seguinte, o noivado foi rompido.


- Motivo pelo qual decidiu ligar para mim.


- Ligou para mim também. Você não havia dito que ela era a moça capaz de fazer a felicidade de qualquer homem? Morreu sem saber que você diz isso para todas as mulheres.


- Isso não é verdade!


- Usaria você como desculpa, a de que trocara o Ernesto pelo galante Estevinho.

- Como não me deixei seduzir, ficou sem saída e decidiu matar-se.


- Por aí.


- Por que a carta me incriminando?


- Uma atitude lamentável, que ninguém conseguiu explicar. Talvez um fato policial para despistar os amigos, os parentes e a vizinhança: perder a vida, mas salvar as aparências.


Se entendi corretamente, Regininha quis me usar como noivo. Não deu. Então me usou como boi de piranha, com grande sucesso. Eu, o boi de uma piranha. Sacana, mil vezes sacana. Tenho decididamente cara de panaca, mas, convenhamos, meu santo é forte.


- Quer dizer que você me abordou no bar porque me conhecia?


- Sabia de você e estava à sua procura, mas nunca o vira antes disso.


- Sinto-me aliviado, depois de saber de toda a história... Você me procurou por isso, obrigado.


- E tem mais uma coisa.

- Mais uma coisa? Sobre o quê?


- Sobre a morte do barbeiro...

That’s it. Desandou tudo. Desmaiar, voar, sapatear, uivar, ir à guerra, dar milho aos pombos ou proclamar a república, nada pode salvar-me, pois sou um condenado às aflições e hei de merecê-las rigorosamente até o fim. Jusque au bout. Logo vi que não ia ficar de graça. Para ela, também para ela, eu, Estevinho Pastasciutta, matei o Godô.


- Você veio para me atormentar?

- Muito pelo contrário, vim para informar-lhe que você não matou o barbeiro, como antes não havia matado a Regininha.


- Como assim?


- Estou passando uns tempos com uma tia que mora na Rita Ludolf. Sei, como todos na rua, do conselho que você deu ao Godô e tenho certeza de que você está sofrendo. Por um crime que não cometeu. Por ter desaparecido, sem deixar nenhuma pista, não tomou conhecimento da verdade, que não demorou a surgir: o Godô não morreu enfartado, mas envenenado pela mulher, que já confessou o crime.


- Foi isso, é?



- Você comentou com o Godô sobre o risco de jogar futebol sem autorização médica. Uma observação sensata, claro. Se a morte tivesse decorrido de um ataque cardíaco, estaríamos diante de uma coincidência e nada mais...

- Eu sei, mas nem todo mundo é como você, capaz de...


- Refutar pensamentos mágicos. Você não é assassino, nem de noivas suicidas, nem de barbeiros vítimados pelo veneno de suas consortes.


Pascale, mulher "dia três"

- Bota com sorte nisso!

Pascale, linda maravilhosa, livrou-me naquele instante de todos os meus remorsos, laboriosamente amealhados. Pensei mon amour, je t’aime, com todas as forças do meu despedaçado, combalido e aviltado coração. Olhei-a novamente, senti que era a mulher que eu desejava, abracei-a e disse as palavras mais sinceras da minha vida:


- Pascale, eu te amo!

Ela sorriu, transbordando de ternura. Gostara muito de mim, das minhas histórias, da minha lagosta e da minha cama. Não era por nada não, mas tinha de ir-se. Mulher "dia três" é a que retorna dia quatro para o trabalho ou para os braços do marido. No caso de Pascale retornou para ambos, pois é casada, muito bem casada, e professora da Universidade de Paris.

- Reste avec moi.

- Pas de tout.

Fazer o quê?, foi a pergunta que me ocorreu. Para a qual havia uma alternativa, e somente uma:

- Comprar um descascador de batatas ou escutar uma sinfonia de Mahler.

sábado, 20 de agosto de 2011

INOCÊNCIA PUTATIVA

POR QUE ESTEVINHO DEIXOU DE CIRCULAR



Na boate, Estevinho deparou-se com Regininha, a moça mais bonita da General Artigas. Dançaram como se fossem velhos parceiros, os corpos num só corpo. Aí, deu aquela de fresco:

- Você é deslumbrante, Regininha. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.

Ficou nisso, que Estevinho era assim mesmo, derramado, mesmo quando não estava a fim.
Meses depois, era Regininha ao telefone.

- Vou me casar no sábado. Isto é, eu me caso se você assim decidir.

- Não estou entendendo.


- Vou me casar no sábado, com Ernesto Augusto Palhares de Vidigal, mas só se você autorizar. Você autoriza?

- Olha, a brincadeira é até divertida, mas estou muito ocupado e vou desligar.


- Então, você autoriza?

- Que mané autoriza não-sei-o-quê.

- Ciao.


- Ciao.


No sábado Regininha foi encontrada morta. Ao lado, a carta alucinada.


"Devo informar aos meus familiares, à polícia e a quem mais interessar que fui assassinada
por José Cláudio Antônio Nicola Estradivário Pastasciutta, conhecido como Estevinho, que mora na Visconde de Albuquerque."


Sacana, que Deus a tenha. Revólver na mão, quarto fechado por dentro, tudo indicava um suicídio irrevogável e irretratável, dos categóricos e inapeláveis. Mas a carta, como explicar a carta? Meu nome nos jornais, aquele trabalhão para provar a inocência, a revista interminável do apartamento, os numerosos comparecimentos à delegacia, os risinhos do escrivão, o mau humor do delegado, as despesas impossíveis. Citações, agravo de instrumento, apelação, habeas data, mandado de injunção, preclusão, certidões. Só não me exigiram incunábulos, nem palimpsestos, que vai ver nem se aplicam nesses casos.

- Inocência putativa, sentenciou o juiz.


Putativa!

- Sim, senhor, putativa.

Inocente, mas culpado, passei a viver o sobressalto de ser incomodado a qualquer momento.

Cultura inútil

Estevinho
deixou de circular e passou a ler tudo o que aparecia à sua frente. Às vezes, isolado, dedicava-se a pesquisas idiotas, como a dos nomes do bairro. Cultura inútil, das acachapantes: Ataulfo de Paiva foi um grande jurista e intelectual fluminense do século XIX, que ocupou a cadeira 25 da Academia Brasileira de Letras, fundada por Franklin Dória, cujo escolheu para patrono a Luiz José Junqueira Freire, um poeta que nasceu na Bahia em 31 de dezembro de 1832, uma segunda feira, e faleceu no Rio de Janeiro em 24 de junho de 1855, um domingo; general Venâncio Flores, o presidente do Uruguai que se aliou ao Brasil, na Guerra do Paraguai; general Artigas, um militar que se tornou o grande herói da independência do Uruguai; general Urquiza, o primeiro presidente constitucional da Argentina, empossado em 1854.

- Minha ambição é chegar a Aristides Espínola, quem sabe outro general.


Tudo porque dei uma de babaca:

- Você é deslumbrante, Regininha. A mulher capaz de fazer a felicidade de qualquer homem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

EU, PANACA, MATEI O BARBEIRO

E HAVIA MUITAS TESTEMUNHAS

Era sábado, e o correio estava fechado. Só faltava essa, pensou, atirando a carta na lata do lixo. Sentou num banco da praça, a esmo. Eu tenho o dobro da idade que tu tinhas quando tinha a idade que tudo tens; falta a segunda equação e, portanto, falta tudo. Quem diabo foi Bartolomeu Mitre? Visconde de Albuquerque? Ataulfo de Paiva?


- Antero de Quental? Esta praça poderia muito bem chamar-se Carlos Drummond de Andrade, ora se, mas pouca gente percebeu isso. Estou sem mulher, estou sem discurso, estou sem teogonia, hoje beijo, amanhã não beijo e segunda-feira ninguém sabe o que será.

Antero de Quental

Tinha de fazer alguma coisa, em vez de ficar ali, enxugando gelo, e decidiu caminhar até o barbeiro.

- Godô, cabelo e barba, por favor.

- Deixa comigo, doutor.

O barbeiro assumiu a conversa em caráter de exclusividade, falando tudo e coisa nenhuma. Sou Flamengo, no verão as mulheres ficam mais bonitas, não tenho ido a Itaperuna, Barack Obama é diferente do Bill Clinton, que não respeitava nem papagaio embriagado, os melhores chopes do Leblon são os do Bracarense, Jobi e Clipper e, na cidade, o do Bar Luís, o Ney Matogrosso, que tem tudo para não ser tão modesto, corta cabelo aqui, o João Ubaldo Ribeiro também, o Alceu Valença mora aqui na rua, mas não corta cabelo em lugar nenhum, um dia ainda saberei o que significa crise cambial, a palavra mais sugestiva que conheço é bunda, amanhã vou bater uma bola federal...

- Você joga bola nos domingos?

Jogava. Todos os domingos, disputava duas ou três partidas no campinho da Pavuna, tomava dez latas de cerveja, comia duas horas de feijoada com muita caipirinha e dormia até a manhã de segunda-feira. Estevinho ponderou que era um hábito perigoso, bom seria consultar um cardiologista, fazer um teste ergométrico, pois os atletas de fim-de-semana muitas vezes se surpreendem, vítimas de enfarto, e podem morrer durante o jogo.

- Ora, doutor, faço isso desde os 18 anos, estou com 38, nem sei se tenho coração. Esse negócio de médico não é necessário quando o cabra é macho. Meu pai jogou até os 60 anos e mais não joga porque tem um problema no joelho.

Na saída, dei uma gorjeta generosa e ainda acrescentei, alto e bom som:

- Se fosse você, Godô, só jogaria após exame médico e autorização de um cardiologista, pois você pode morrer em pleno campo.

Havia um pouco de show-offismo nas minhas palavras, mas disse aquilo de boa fé. O Godô estava falando sem parar havia vinte minutos, e eu, absolutamente calado. Sei lá... De vez em quando é necessário falar também, interessar-se, ser solidário. Mas, diabo... Por que não interrompi quando o assunto foi Bill Clinton? Ney Matogrosso? João Ubaldo era também um tema adequado, pois gosto muito daquela do cachorro que se chamava Logoeudigo. Cachorro ou gato? Podia puxar assunto sobre Claire Danes, Jessica Biel... Mas eu decidi dar conselho, cacete. Na segunda-feira recebi a notícia: Godô faleceu jogando futebol, no domingo. Toda a barbearia e a Rita Ludof inteira atestaram que o barbeiro não morreu espontaneamente. Jogava desde os 18 anos e nunca tinha acontecido nada. Aí veio o tal de Estevinho e disse: você pode ter um ataque cardíaco em pleno jogo.


- Todo mundo ouviu, o Ricardinho, o Miranda, o Ernani, o Pintinho e o Zeca Torres. O Quincas não ouviu porque tinha ido à farmácia. Nossos outros clientes, o doutor Zé Moacir, o Terêncio Marques, o Antônio Maciel, todos, todos mesmo, podem confirmar: ele matou o Godô.

- Agourento de uma figa!

O Quincas garantiu que em Baependi tem um alfaiate que bota mau-olhado: se ele olha um passarinho na gaiola, o passarinho amanhece morto, não há escapatória. Se disser vai chover amanhã, sai de baixo que amanhã vem temporal, enchente, desabamento, aflição e morte. Certa vez o celerado afirmou que era certo faltar carne em Baependi, e no mesmo dia os bois de corte comeram ração envenenada e morreram.

- Gente com essa qualidade gosta de fazer o mal, e somente o mal.

- Olho vivo, seu Venâncio, olho vivo.



Seu Venâncio ficou impressionado e, para salvar o negócio, mandou vir o padre, que benzeu a barbearia e derramou água benta na cadeira do Godô. De mãos dadas, todos rezaram com redobrado fervor um Padre-Nosso e um Salve-Rainha. Depois do episódio, Estevinho mudou de barbearia e não teve mais coragem de passar pela Rita Ludolf. A morte de um ciclista, matar ou morrer, morte em Veneza, morte e vida severina, os vivos e os mortos, a morte passou por perto, as sete máscaras da morte, a morte do caixeiro-viajante, disque M para matar, quem matou Baby Jane?

- Eu, Estevinho Pastasciutta, matei o barbeiro.

sábado, 13 de agosto de 2011

MULHERES GENIAIS

HARÉM DE PICKERING
Edward Charles Pickering

Em 1877 o Observatório Astronômico de Harvard, dirigido por Edward Charles Pickering, iniciou um ambicioso programa de fotografia celeste. Um projeto que não poderia falhar. Decepcionado, porém, com a falta de concentração e incapacidade dos homens para dar atenção aos detalhes, Pickering acabou por convocar para auxiliá-lo na empreitada uma numerosa equipe de mulheres, que, para ele, eram mais responsáveis, precisas e meticulosas.
Lideradas por Williamina Fleming, as mulheres engajadas nesse projeto formaram o que ficou conhecido como o "Harém de Pickering", encarregando-se de examinar as fotos colhidas pelos telescópios e fazer os cálculos relacionados com os dados observados.

Williamina Fleming

As mulheres corresponderam plenamente à expectativa de Pickering. Duas delas, em particular, extrapolaram suas atribuições de simples computadoras de dados de estrelas e passaram a ocupar lugar de destaque na história da Astronomia: Annie Jump Cannon e Henrietta Leavitt.

Annie Jump Cannon (1863 - 1941)

Annie Jump Cannon, antes uma professora de Física, ingressou no Harém de Pickering em 1896, onde passou a catalogar cerca de 5 mil estrelas por mês, separando-as por cor, brilho e localização. Ela compensava sua surdez quase total com um extraordinário aumento do sentido da visão. De fato, seu “olho” para estrelas não foi jamais igualado e lhe permitiu examinar cerca de 400.000 estrelas, num trabalho absolutamente individual.

Annie Jump Cannon

É dela a divisão das estrelas, por massa e luminosidade, em sete classes espectrais - O, B, A, F, G, K e M - uma sequência que gerações de estudantes americanos desde muitos anos memorizam mediante utilização de uma célebre frase mnemônica:

- “Oh, Be A Fine Girl - Kiss Me!”.

Isso equivale a qualquer coisa como “Ó, Seja Uma Garota Bacana - Beije-Me!”.

Annie foi uma campeoníssima no quesito “primeira mulher”, pois foi a primeira mulher a receber um doutorado honorário da Universidade de Oxford, a primeira mulher a receber um título de membro da Sociedade Astronômica Americana e a primeira mulher a receber a Medalha de Ouro Draper, da Academia Americana de Ciências.


Henrietta Leavitt (1868 - 1921)

A exemplo de Annie Jump Cannon, Henrietta Leavitt era totalmente surda, o que lhe dificultava disputar oportunidades no mercado de trabalho. Em 1895 ela se ofereceu para trabalhar, sem nenhuma remuneração, no Observatório Astronômico de Harvard, onde executou tarefas simples até 1902, quando foi admitida como assessora permanente, com o salário de 30 centavos de dólar por hora.
Henrietta Leavitt interessou-se por estrelas variáveis, que são estrelas que aumentam e diminuem de brilho regularmente, como a estrela de Algol, na Constelação de Perseu, por isso mesmo chamada, às vezes, de Demônio Piscante.


Constelação de Perseu

Henrietta descobriu mais de 2.400 estrelas variáveis, cerca de metade do total então conhecido. Entre as estrelas variáveis, estão as Cefeidas, que variam entre brilho máximo e brilho mínimo em um intervalo de tempo constante; depois de muito pesquisar, ela fez uma descoberta revolucionária, correlacionando o brilho de uma Cefeida com o logaritmo do tempo em dias entre o brilho aparente máximo e o brilho aparente mínimo da Cefeida considerada.
Bastava determinar o tempo que decorre entre brilho máximo e brilho mínimo, por inspeção visual, para ter o brilho real de uma Cefeida mediante a utilização da correlação obtida por Henrietta, em contraposição ao seu brilho aparente percebido desde a Terra.

Essa descoberta permitiu aos astrônomos, a partir da década de 1920, calcular a exata distância que nos separa de qualquer estrela Cefeida e, em consequência, descobrir que nossa galáxia não era única do Universo, mas apenas uma no meio de cem bilhões de galáxias, sendo certo que há Cefeidas em todas as galáxias.

Henrietta Leavitt

Henrietta Leavitt morreu de câncer em 1921, quase sem ser percebida, mas hoje muitos a consideram a “mais brilhante mulher que já passou por Harvard”. Onde, é bom repetir, trabalhou cerca de sete anos sem receber nenhum salário, assoberbada por problemas de saúde e pelas suas obrigações domésticas.
As denominações do Asteroide ""5383 Leavitt" e da Cratera Lunar "Leavitt" foram dadas em sua homenagem.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

MARIE CURIE (PARTE 2/2)

Escândalo

Como cientista importante, desempenhando um papel reservado aos homens, Marie Curie era um alvo preferencial. Pois a emancipação das mulheres era vista, na França do início do século XX, como indicação de decadência nacional e até como sintoma de desvirilização dos homens.

- Quando se trata dos direitos da mulher, comentou então a líder feminista Hubertine Auclert, unem-se, em oposição, revolucionários e reacionários, crentes e ateus.

Marie Curie

Este o pano de fundo, quando Marie Curie envolveu-se amorosamente com o físico Paul Langevin, um professor, como ela, da École de Physique et Chimie, e também um físico de talento, autor de uma importante teoria sobre elétrons e eletromagnetismo.
Langevin, que vivia um tumultuado casamento com Emma Jeanne Desfosses, com quem se casara em 1898 e com a qual teve quatro filhos, aproximou-se de Marie Curie pouco antes de 1910, após a morte de Pierre Curie. Ao comentar esse episódio, escreveu a biógrafa Susan Quinn:

"O que tornava perigosa a ligação entre Paul Langevin e Marie Curie era o fato de não atender às convenções da Belle Époque. Admitia-se, e até se esperava, que os homens burgueses tivessem uma amante; mas a amante permanecia nos bastidores, permitindo à esposa ficar ao lado do marido, na sociedade educada. Desde que o homem casado fosse discreto e escolhesse esposa e amante que desempenhassem zelosamente seus papéis, ele podia manter um caso, com impunidade. O Código Napoleônico, que endossava o privilégio masculino, era, em tais casos, tolerante com o marido."

Marie Curie
era, com efeito, uma amante que discrepava do modelo tolerado, pois estava longe de ser uma mulher a ser escondida, sem recursos, sem aspirações, sem nome, nem personalidade. Configurava-se, desse modo, uma situação em que Paul Langevin deveria renunciar a uma das duas mulheres, sob pena de submeter-se a um vexame, pois, se os casos reservados eram tolerados, os que chegavam ao conhecimento público enxovalhavam todos os envolvidos.

Paul Langevin e Albert Einstein

Muito provavelmente por causa dos filhos, Langevin não teve coragem de separar-se de Emma Jeanne, que passou a chantageá-lo com a ameaça de repassar à imprensa cartas que ele escrevera para Marie Curie e, finalmente, entrou com um processo contra ele, por abandono do lar. No dia 4 de novembro de 1911, "Le Journal", um dos diários de maior circulação de Paris, publicou matéria de primeira página, com uma foto de Marie Curie e a manchete :

UMA HISTÓRIA DE AMOR: MADAME CURIE E O PROFESSOR LANGEVIN

No dia seguinte, o "Le Petit Journal" falava de Emma Jeanne como uma mãe em prantos, a defender desesperadamente seu lar, mortificada pela opinião pública, desejando perdoar e esquecer, pois estava a processar o marido apenas por causa dos filhos.
Estavam edificadas as bases para uma campanha de difamação e agressões contra Marie Curie, que numa manhã de 1911 levou uma multidão enfurecida para diante de sua residência, a gritar:

- Abaixo a estrangeira, ladrona de marido!

Foi a festa da imprensa sensacionalista, na qual não faltaram insinuações, mentiras, chacotas e até pressões de figuras importantes para que Marie deixasse o país. As discussões do episódio provocaram nada menos que cinco duelos na França, um dos quais envolvendo o próprio Langevin, contra o jornalista Gustave Téry, e no qual nenhum dos dois contendores quis disparar contra o outro.

Selo polonês: Maria Sklodowska

Foi nesse contexto que, em 7 de novembro de 1911, a Reuters noticiou que Marie acabava de conquistar o Prêmio Nobel de Química de 1911, adicionando-se, este, ao Prêmio Nobel de Física de 1903. Ocorreu então o inusitado: um silêncio quase total da imprensa francesa, que seis dias depois iria celebrar como gloriosa a conquista do Prêmio Nobel de Literatura por parte do belga Maurice Maeterlinck, estabelecido na França desde 1896. Um membro da Academia de Ciências, Svante Arrhenius, escreveu-lhe uma carta com a recomendação de que desistisse de aceitar o prêmio. Isso mesmo, uma recomendação para que renunciasse ao Prêmio Nobel!
Marie Curie
mereceu, porém, muitas manisfestações de apoio por parte de cientistas, como Albert Einstein e Ernest Rutherford, e recebeu seu prêmio em Estocolmo, em 11 de dezembro de 1911.

Desfecho

Emma Jeanne e Paul Langevin reconciliaram-se em 1914, e o escândalo terminou. Mais tarde, Langevin teve outra amante, com aquiescência da mulher, mas escolhida segundo o modelo tradicional: uma obscura secretária, sem condições de ultrapassar sua condição de amante.

Marie Curie

Marie Curie

Durante a primeira Guerra Mundial, Marie Curie, sem reclamar nenhuma remuneração, comandou um serviço para uso do raio X em intervenções médicas e cirúrgicas, com postos radiológicos móveis, que salvaram a vida de milhares de franceses. Mais que isso, Marie doou o dinheiro do Prêmio Nobel para o esforço de guerra francês.
Depois da guerra, fundou o Instituto do Rádio de Paris, tornando-se uma benfeitora da Humanidade.

Em 28 de abril de 1921, pouco antes de sua viagem triunfal aos Estados Unidos, as pessoas mais importantes da França compareceram ao teatro da Ópera, de Paris, para prestar-lhe uma homenagem, comandada pelo presidente Aristide Briand, na qual a atriz Sarah Bernhardt leu uma "Ode a Madame Curie":

Você nunca liderou um exército,
Nem jamais emitiu ordens severas.
Mas seu ardor sincero, penetrante,
Brilha mais que todas as chamas.

Ode a Madame Curie

Recebeu extraordinária consagração nos Estados Unidos em 1921: foi aclamada nas ruas, nas universidades, saudada pela imprensa, pelos cientistas e pelas organizações feministas.
Em 1922 foi eleita para a Academia Francesa de Medicina, da qual foi a primeira mulher.
Em 1923 passou a receber uma pensão vitalícia do governo francês.

Vigésima sexta cientista da História...

Em 4 de julho de 1934, faleceu, num hospital de Saint-Gervais, de leucemia, resultante de seu contato com material radioativo, ela, que muitos consideram a mulher mais importante do século XX, e que o historiador John Simmons, autor do livro "Os 100 Maiores Cientistas da História", situou em vigésimo sexto lugar, em ordem de importância, imediatamente após Max Planck e à frente de Huyghens, Gauss, Mendeleiev, Euclides e Fleming.


sábado, 6 de agosto de 2011

MARIE CURIE (PARTE 1/2)

Genialidade e preconceito

Marie Curie

Marie Curie (1867-1934), cujo nome de batismo era Maria Salomea Sklodowska, nasceu na Polônia, filha de um professor de física, num momento em que o país estava sob domínio da Rússia.
Após concluir o curso secundário, trabalhou como governanta, em Varsóvia, até juntar o dinheiro da passagem para a França. Naquele ano de 1891, a Sorbonne era frequentada por 1.800 estudantes, dos quais apenas 23 eram mulheres, quase todas estrangeiras.
Aplicada às mulheres, a palavra "estudante" tinha na França do fim do século XIX uma conotação rebaixadora e depreciativa. Maria Sklodowska, que tinha 24 anos, matriculou-se na Universidade de Paris, tornando-se a primeira mulher a obter um título de física pela Sorbonne, em 1893, tendo um ano depois recebido também um diploma de matemática.
O casamento de
Maria Sklodowska com o professor Pierre Curie, em 1895, a partir do qual a polonesa passou a ser conhecida como Marie Curie, deu início a uma excepcional parceria científica, pois, trabalhando em conjunto, conseguiram isolar dois elementos radioativos, o rádio e o polônio, a partir de uma rocha chamada uranita, o que lhes valeu, a ambos, o Prêmio Nobel de Física, de 1903.
Atropelado por uma charrete, Pierre Curie faleceu em 1906, o que não impediu Marie Curie de dar prosseguimento aos trabalhos pioneiros na área da radioatividade, com os quais conquistou também o Prêmio Nobel de Química, de 1911. Marie Curie foi a primeira pessoa a ser contemplada duas vezes com o Prêmio Nobel. A outra foi o químico americano Linus Pauling, que ganhou o Nobel de Química em 1954 e o Nobel da Paz em 1962, este último por sua oposição ao uso de armas atômicas.
Marie foi, porém, a única pessoa a ser laureada duas vezes por trabalhos na área científica. Foi também a primeira mulher a dar aula na Sorbonne, nos 600 anos da instituição, quando sucedeu ao marido na cadeira de Física Geral, a partir de 1906.

Pierre e Marie Curie

A filha de Marie Curie, Irene, e o marido desta, Fréderic Joliot, foram laureados com o Prêmio Nobel de Química, de 1935, pelos seus trabalhos sobre a produção artificial de radioatividade. Cinco Prêmios Nobel na mesma família!

Preconceito

Por sua condição de mulher, e estrangeira, Marie Curie muitas vezes despertava sentimentos hostis na sociedade francesa. Isso ficou claro quando foi indicada pela primeira vez ao Prêmio Nobel, juntamente com o marido Pierre Curie e com o físico Henri Becquerel, não por acaso os três pioneiros da radioatividade. Para impedir que Marie fosse premiada, quatro membros da Academia Francesa de Ciências (a saber, Henri Poincaré, Éleuthère Mascart, Gabriel Liepmann e Gaston Darboux) redigiram uma moção de apoio aos nomes de Pierre Curie e Henri Becquerel, ignorando propositadamente o nome de Marie Curie. Os signatários eram sabedores de que Pierre, em termos de radioatividade, sempre fora um assistente de Marie, ele, sem dúvida, um físico bem conceituado, que em 1880 havia descoberto o efeito piezoelétrico (propriedade dos cristais de produzirem eletricidade, quando submetidos à pressão), para além de ter dado importantes contribuições para a interpretação do magnetismo.

Henri Poincaré

Prevaleceu, entretanto, o bom-senso e Marie Curie foi premiada, com o Nobel, pela Academia de Ciências da Suécia, juntamente com os outros dois, em novembro de 1903. Ao prêmio, seguiu-se uma espécie de perplexidade nacional francesa: uma mulher entre as ganhadoras do Prêmio Nobel! O jornal "Paris Sport" fez então a seguinte observação:

"(...) a mulher a abandonar, de agora em diante, suas tradicionais ocupações com o lar, para se entregar aos estudos concretos ou abstratos, que, até aqui, foram privilégio do homem... "


Outra manifestação de preconceito ocorreu com sua candidatura à Academia de Ciências da França. Tudo porque era uma mulher pleiteando um lugar entre os imortais franceses. Marie Curie, porém, não podia ser descartada sem mais nem menos, in limine, ganhadora que fora de um Prêmio Nobel e membro, já então, das academias sueca, holandesa, tcheca e polonesa, da Sociedade Filosófica Americana e da Academia Imperial de San Petesburgo.

O Institut de France datava do século XVII, quando Richelieu fundou a Académie Française, e na ocasião da candidatura de Madame Curie era integrado por cinco academias (uma das quais a Academia de Ciências). Em 4 de janeiro de 1911, por 85 votos a favor e 60 votos contrários, o Institut de France, com 163 membros reunidos em assembleia conjunta, decidiu recomendar à Academia de Ciências que mantivesse "a tradição imutável de não permitir a eleição de mulheres para o Instituto." (Essa "tradição imutável" incluía até a proibição da presença de mulheres nas dependências do Institut de France.)
A Academia de Ciências não acatou a recomendação e aceitou a candidatura de Marie Curie, o que suscitou um intenso debate nacional; para concorrer com ela, foi lançado o nome do físico Edouard Branly (1844-1940), que fizera invenções na área do telégrafo sem fio, utilizadas por Marconi na construção do rádio.

Edouard Branly

Há uma correlação interessante do episódio de Marie Curie versus Branly com o caso Dreyfus, um oficial judeu do exército francês, condenado à prisão perpétua em 1894, sob a acusação de haver passado segredos militares aos alemães, e deportado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Tudo no âmbito de uma onda de nacionalismo e antissemitismo que assoberbou a Europa no fim do século XIX. Em 1898, Émile Zola assumiu a defesa de Dreyfus, publicando na primeira página do jornal Aurore a famosa carta aberta "J' accuse!" ao presidente Félix Faure, de 13 de janeiro de 1898. O caso dividiu a França entre dreyfusistas, associados aos esquerdistas, republicanos e anticlericalistas, e os antidreyfusistas, tidos como conservadores, monarquistas e clericalistas, epítetos que perduraram por alguns anos, mesmo depois de oficialmente decidida a questão. Descobriu-se em 1906 que Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy, outro oficial francês, era o verdadeiro espião a serviço dos alemães, o que ensejou a libertação de Dreyfus e sua reintegração ao exército.

Alfred Dreyfus

Muitos associavam Marie Curie ao capitão Dreyfus, situando-a do lado dos dreyfusistas, ela que era mulher cientista, aspirante audaciosa à Academia de Ciências, ateia, estrangeira e "apontada" como judia. Tanto que no dia da votação da Academia Francesa de Ciências, que iria escolher entre Marie Curie e Branly, o expoente do conservadorismo Léon Deaudet fez publicar na primeira página do jornal L'Action Française uma (hoje) curiosa matéria com o título "Dreyfus contra Branly":

"Sim, sim... Dreyfus contra Branly. Tal é, de fato, a luta bizarra que se esconde sob esta disputa de Marie Curie versus Branly... Os imbecis que acreditam estar encerrado o caso Dreyfus deveriam entender: a luta épica do gênio nacional contra o demônio estrangeiro está presente em cada ocasião, seja esportiva, literária, teatral, musical, científica, social, política e econômica, sob mil formas, disfarçando sempre os mesmos atores... No presente caso, os irados dreyfusistas ainda insistem em apoiar Marie Curie."

Alguns jornais, sem coragem de assumir seu preconceito de forma direta, esmeraram-se em produzir argumentos eufemísticos contra Marie Curie: "sua candidatura é uma trama de protestantes e israelitas contra o católico Branly", conforme o jornal "L'Action Française". Uma romancista popular, Madame Regnier, deu então a sua opinião:

- Não se deve tentar... tornar a mulher igual ao homem! "Igual ao homem", como essas palavras soam terríveis!

Cinquenta e oito acadêmicos compareceram para a votação histórica, no dia 24 de janeiro de 1911. O resultado da eleição, que foi acompanhada por uma multidão excepcional, foi a vitória de Branly por 30 votos, contra 28 dados a Marie Curie. Em 31 de janeiro daquele ano, a "Compte Rendus", publicação semanal da Academia, fez o seguinte comentário:

- Monsieur Branly, a convite do Monsieur Président, ocupou um lugar entre seus confrades.
(continua)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A PENSÃO DA TIJUCA

OBSERVANDO OS INSENSATOS

É divertido vê-los chegar, assim humildes, como o Araújo, que ontem aqui aportou de mala quase vazia, trazendo nas mãos um espelho, um cavaquinho e dois cabides de arame.

- Quanto custa o quarto mais barato?

Depois, integrados, desinibem-se e esparramam-se pensão afora, com seus malogros e ambições, grandes defeitos e poucas qualidades. São, como eu, perdedores, vultos, apenas vultos, e, deles, o pouco que sei considero demasiado.

A pensão

Servir na Bósnia

Eu os vejo diariamente, na hora das refeições. Nenhuma importância há de haver no guarda-livros, que estuda canto, na esperança de representar o Otelo; na Ivonete, que era caixa de farmácia no Largo da Segunda-Feira e agora, mesmo desempregada, usa perfumes caros e só traja vestidos importados, nas suas caminhadas suspeitas pela Conde de Bonfim; no Sargento Castro de Paula, cujo sonho é servir na Bósnia, por alguns dólares da ONU, e na sua mulher, dona Eulália, a portuguesa branquicela, que tudo tempera com azeite de oliva, até a sobremesa; no Sebastião Valadares, que ateou fogo no armazém vazio após esconder as mercadorias num depósito de Caxias e, em vez de receber a indenização reclamada, está a enfrentar um adverso processo judicial; no Zé Terra, um pernambucano enfezado que bate na mulher, a Jupira; e no Sorianito Gonzalez, que é mexicano e apanha da sua todas as noites.

Incêndio do inexistente

Reversão dialógica

Ah, antes que me escape, Carlos Arruda de Proença é, dos hóspedes, o mais extravagante, com sua mania de usar expressões complicadas, das quais não me esqueço de "mateologia holística", "reversão dialógica" e "tmeses ataviadoras". Ele se recusa a esclarecê-las, mesmo não sendo entendido por ninguém.

- Louçanias, senhores, meras louçanias de linguagem. Não existem para ser explicadas, nem me cabe nenhuma obrigação de dar milho aos pombos.

Outro dia, quando se conversava sobre decisões políticas controvertidas, deixou escapar alguma coisa em Latim, "beati monoculi in regione caecorum", provocando reações irônicas do Zé Terra e de dona Eulália.

- Na minha terra quem fala bonito é o prefeito.

- Em Portugal a lei da vida é muito outra, pois escreveu, não leu, o pau comeu. Lá o pau come solenemente!

- Vocês são estupefativos, rebateu o Proença.

- O quê?

- Gente de visão plúmbea, ímproba e mitigada.

E não é só

Há também na pensão um Licurgo dos Santos Reis, alfaiate de roupas militares, que às vezes inicia suas refeições com rezas assim:

Profanaste os vasos santos
Nas torpezas de um festim.
Teus dias estão contados
Como os da bela Seboim.
Não sabias, ò cão danado,
Que tenho o corpo fechado?
Tu fizeste e pagarás,
Vade retro, Satanás.

Rezas ou pragas, nem sei direito.

Praga

No mês passado apareceu aqui o Abdmelaus Karuche de Alicante, conhecido como Abdias, um estudante profissional que se gaba de sempre conseguir generosas bolsas de estudo, de acordo com trâmites que conhece com exclusividade. Polpudas e sumarentas bolsas, garante ele, que as acumula, a todas, na maior desfaçatez. Estudou engenharia, literatura e geografia, mas seu interesse atual está na filosofia, que orgulhosamente chama de a ciência de Platão.
Justiça seja feita, esse Abdias realmente estuda, e estuda muito, adquirindo informações a serviço de coisa nenhuma, a fundo perdido, pois disse repetidas vezes que não trabalhará jamais.

Assassinou o sono
Ts'ai Lun

Sentado em meu canto, na maior parte do tempo desligo-me desse ambiente, que em certas ocasiões se torna inóspito e agressivo. Eles falam da ONU, das companhias de seguros, de Otelo, das mulheres que gostam de apanhar, do azeite de oliva, das bolsas de estudo e das louçanias de linguagem, e eu, fingindo que os ouço, viajo infinito afora, imaginando por que Einstein assumiu-se com a velocidade da luz para estabelecer as bases da teoria da relatividade, se é verdade que o eunuco chinês Ts'ai Lun inventou o papel ou como Macbeth, o nobre escocês que assassinou o sono, houve de morrer pelas mãos daquele que não nasceu de mulher, quando as florestas se puseram a caminhar.

(Adaptado do livro "O Homem Horizontal")