terça-feira, 28 de junho de 2011

NOTAS DE UM GUARDA-LIVROS (I)

A PONTE E OS GÊNIOS


Hoje tenho por melhor exercício divagar sobre acontecimentos afastados no tempo, pois o passado é a minha matéria. Mais ou menos na linha do doutor Pedro Nava, para quem o futuro é somente uma expectativa da nossa experiência, sujeita a todos os riscos, e o presente não tem dimensão, sendo apenas este ponto da trajetória, que já passou, nem sei se quem me lê percebeu.

- Só o passado existe como realidade objetiva.

Eu era obrigado a seguir para Araruama nos fins de semana, pois na minha família criança não tinha voz, nem vez. Eram horas intermináveis na fila das barcas, até chegar o momento de embarcar o carro e transpor a baía. Imaginei a ponte imensa e, dos seus numerosos profetas, fui dos poucos que tiveram a ambição de construí-la.

Do pensamento à ação, cheguei a frequentar um curso preparatório para o vestibular de engenharia, no longínquo ano de 1960. Meus planos esbarraram, porém, nos obstáculos que o professor Kakaze ia depondo à minha frente. Lembro-me muito bem da satisfação que lhe proporcionavam os seus teoremas e dos problemas que costumava propor, a todo instante, para testar os conhecimentos daquela turma de principiantes. Que só faziam revelar a minha inaptidão e aumentar a minha angústia. Pobre de mim!
Dia importante, nessa fase de ensaio e muito erro, foi o da questão que se colocou para sempre no epicentro das minhas frustrações:

- Utilizando dez consoantes e cinco vogais, quantos agrupamentos de quatro consoantes e duas vogais distintas podem ser formados?

Tremi, perplexo, sem saber como enfrentar o desafio. O Ramiro, lá na primeira fila, levantou-se rapidamente com o resultado:


- 1.512.000 agrupamentos.

A namorada do Ramiro

Não me contive:

- Então, professor, isso é necessário?

- Certamente, meu caro pitecantropo. Passaremos da análise combinatória ao binômio de Newton, que, de tão importante, é citado até nas poesias do Fernando Pessoa. Depois estudaremos o cálculo das probabilidades e a distribuição de Gauss. A qual há de ser sempre
campanular, você sabia? Sem a distribuição de Gauss não se enriquece o urânio, não se gera, não se transmite e não se distribui eletricidade, não se constroem as grandes estruturas, como o Maracanã, nem os canhões necessários à segurança nacional.

- Nem a ponte Rio-Niterói?


-Nem a ponte Rio-Niterói, ora se!


Voltei para casa cheio de desalento. Sem a distribuição de Gauss, não havia nenhuma salvação. Além disso, 1.512.000 agrupamentos!
Algumas semanas ainda insisti, impotente e desamparado, na luta desigual com integrais e polinômios. O desenlace entre mim e a engenharia, cada vez mais inevitável, consumou-se no dia 8 de junho de 1960, quando o Kakaze indagou pelo logaritmo, na base raiz de dois, do logaritmo de 81, na base raiz de três. Um pesadelo dentro do pesadelo. Enquanto o Ramiro dava, lá na frente, seu espetáculo de competência, escapuli sorrateiramente e, desatinado como um ícaro que percebe na queda a ruína das suas ambições impossíveis, abandonei a engenharia, em caráter irrevogável e irretratável.

- Não obstante a ponte Rio-Niterói?

- Não obstante a ponte Rio-Niterói.

Gênios

Cervantes escreveu o “Dom Quixote”, Rembrandt pintou a “Ronda Noturna”, e Einstein, mesmo assoberbado na seção de patentes de Berna, explicou o movimento browniano e o efeito fotoelétrico, entendeu a natureza dual da luz, a um só tempo partícula e onda, e formulou a desconcertante Teoria da Relatividade.

Ronda Noturna

Com certeza se dirá que foram gênios, e eu, óbvio que seja, muito modestamente acrescento: pessoas dotadas de extraordinária aptidão e avassaladora força de vontade.
Exatamente assim eu via o Ramiro, a quem estava reservado o privilégio das grandes edificações, incluindo, quem sabe, a ponte Rio-Niterói. Cervantes, Rembrandt e Einstein, lá atrás, gênios indisputáveis. Ramiro, cá na frente, na expectativa decorrente da minha experiência, era um gênio em plena e decidida elaboração.

Solidão
Eu, que não sou gênio por falta de talento e até mesmo por falta de vontade, estou sempre resolvendo problemas de palavras cruzadas. Não sei explicar por quê. Imagino que a atividade esteja relacionada com a solidão, tratando-se de empreendimento que não carece de parceiros, nem de testemunhas. Quando depôs sobre os anos de chumbo, Ernesto Geisel atribuiu ao general Costa e Silva o apego excessivo às palavras cruzadas. Posso imaginar o general, entre um e outro ato institucional, fazendo a invocação mística dos hindus com a luz que emana da ponta dos dedos e colocando o demônio tibetano no inferno dos malês, antes da noa, que salvo engano é a penúltima hora canônica.

- Indizível solidão...

quarta-feira, 22 de junho de 2011

EPÍLOGO

AS DUAS FACES DE JANO

Estas notas ficariam incompletas se não mencionasse que a Western Exploration and Development, a WED, descobriu recentemente a prevaricação da turma de Sean Forthwhite e me enviou uma carta com um pedido de desculpas e uma proposta para que reassumisse o emprego, que recusei, depois de agradecer.
Ah, enviaram-me também um cheque de 261 mil reais, a quantia correspondente ao bônus de participação que eu lhes havia devolvido, acrescido agora de juros remuneratórios. Meu peito se aqueceu, pois me senti reabilitado, como se tivesse triunfado sobre aquela gente poderosa, que pode muito, mas não pode tudo.

A vida nos propõe um lado afetivo e outro profissional, sendo certo que um se resolve ajudando a resolver o outro, só que as decisões fundamentais começam a ser tomadas quando não temos a necessária maturidade, nem experiência. Ou seja, em regime de incerteza, pois a ninguém é dado aguardar a madureza para escolher sua profissão ou posicionar-se afetivamente.

- Disso decorre que algumas pessoas são bem sucedidas, outras nem tanto, o que introduz a necessidade de considerar uma variável adicional: a sorte.

Sorte foi o que não me faltou. Tive poucas experiências profissionais, mas acredito que me posicionei adequadamente, dedicando-me à atividade que mais se ajustou à minha personalidade, respeitando minhas deficiências e qualidades. No lado afetivo fui mais abundante de peripécias, com a ventura de ter conhecido mulheres maravilhosas, para as quais fui mero coadjuvante e das quais sempre serei inarredável admirador. Não seria o mesmo, nem seria tão feliz, se não as tivesse conhecido, a todas. O melhor é que, a seu tempo, em cada caso tudo se ajustou perfeitamente e, por ter me relacionado antes com elas, as quatro mulheres admiráveis, Cecília, May, Laura e Marisa, pude valorizar ainda mais a querida Melisande, que o destino mirabolante reservou para mim.


O deus Jano, aquele deus romano mencionado pela Hoyle, por seus dois rostos contrapostos pode contemplar lados contrários: passado e futuro, saídas e entradas, direita e esquerda, acima e abaixo, o bem e o mal. Há de saber se houve alguma omissão, ou defeito grave, no relato que acabo de construir sobre meu passado, sendo certo que eventuais imperfeições fariam pouca diferença no resultado final, cujo se reflete na serenidade com que rememoro o que acabo de relatar.

- Afinal, conforme li em Aristóteles, nem Deus consegue modificar o passado.

E o futuro, que pode Jano dizer do meu futuro? Pedro Nava considerava o futuro apenas como uma hipótese, uma mera e incontida expectativa da nossa experiência. O memorialista de Juiz de Fora deve estar com a razão, mas, na inexorável progressão, esse “futuro-hipótese” sempre nos chega, às vezes depressa, às vezes devagarinho, encompridando cada vez mais as nossas memórias. E enriquecendo-as. Hei de receber o que me tocar com tranquilidade, na esperança de que na hora dos desafios me sobrem paixão, para decidir, e serenidade, para reconhecer meus erros com tranquilidade.

- Paixão e serenidade, mais que isso não devo pedir.

sábado, 18 de junho de 2011

ENFIM, A VERDADEIRA BORBOLETA

O KURTIS, ORA O KURTIS!

Outro dia, Estênio Florão, conversando comigo sobre amenidades, pôs-se a elogiar o Kurtis, para ele uma pessoa de qualidades excepcionais. Àquela altura até eu tinha simpatia pelo cujo, que me legara suas cadeiras na economia.

- Quando deixou a universidade, o Kurtis mudou-se para a Inglaterra, levando consigo uma sobrinha.

- Uma egiptóloga?

- Acho que sim.

- Sobrinha? Era casado com ela?

- Não, claro que não. Casou-se com uma empresária, mas não cheguei a conhecê-la. A sobrinha, que também não conheci, aproveitou a mudança do tio para fazer um PhD em Cambridge. É tudo que sei.



Ora essa! May era sobrinha do Kurtis, não sua amante, e fora a Londres para estudar! Fazia mais sentido... Fosse o que fosse, isso já não tinha importância, pois havia muito May deixara de existir para mim, vulto, apenas vulto, perambulando esmaecidamente nas entranhas de um passado remoto e amarelado.

- O curioso é que duas ex-namoradas minhas estavam ambas na mesma universidade, em Londres.

Trafalgar Square

Pois tudo se confirmou, numa carta que recebi de Laura na semana passada. Isso mesmo, a Laura lembrou-se de mim! Parabenizava-me pelos meus cincos anos com Melisande e comunicava seu casamento com um professor de Cambridge, mas o que queria contar mesmo era que conhecera em Londres duas dezenas de brasileiros, muitos dos quais se reúnem uma vez por semana em algum bar da Trafalgar Square. Numas dessas reuniões, Laura foi apresentada a May, que também se casou com um professor de Cambridge, fez-se sua amiga e por seu intermédio chegou a conhecer Kurtis e sua mulher, que têm um filho de dez anos, o Nicholas. E esta era a empresária de modas Cecília Lafayette de Castro, não menos que minha ex-mulher!

- Kurtis está casado com a Cecília, ora, pois, pois!


Quando meu nome surgiu, Laura, May e Cecília se deram conta de que tinham namorado o mesmo cidadão do Leblon, o degas aqui, Carlinhos Auvergne, o ex-engenheiro que hoje dá aulas de física e de economia.


Cena

Uma cena que me tem vindo à mente, virtual, claro, é a do Kurtis, jantando num restaurante da Oxford Street com essas três mulheres da minha vida. Faltaria incluir a Marisa, mas esta evaporou...

Eu e elas

Espero que sejam muito felizes, pois há em cada uma um pedaço de mim e, em mim, a doce recordação dos momentos felizes que me proporcionaram.


Uma nova versão

Vou reunindo os fragmentos com o objetivo de obter uma versão da minha pessoa com menos dúvidas e lacunas.

- Quero me conhecer...


Sempre achei, pois bem, que Buenos Aires tinha sido determinante na minha vida. Bingo! Cecília e Kurtis se conheceram em Buenos Aires, durante o congresso de energia, agora não tenho disso nenhuma dúvida! O Nicholas completou dez anos, tendo nascido, portanto, pouco depois que dela me separei.

- Antes da separação, ela, mudando sua posição, insinuou que gostaria de ter um filho, que, sei agora, já estava a caminho, mas fabricado pelo Kurtis.

Posso acrescentar um último ponto, num exercício de especulação.
Tenho para mim, muito para mim, que há uma conexão da Cecília com o escândalo do motel, aquele negócio de “minha cachorrinha”... Cecília deve ter achado que seria desconfortável uma situação de proximidade comigo, o que ocorreria se eu continuasse com May, sobrinha do Kurtis, e armou a confusão. Sei não...

- O efeito-borboleta foi ela, exatamente ela!


Finalmente, justiça se lhe faça, terá havido um dedo seu, e decisivo, na indicação do meu nome, pelo Kurtis, para substituí-lo no departamento de economia. Pois ela sempre prepondera, não erra, nem deixa vestígios. Por que penso assim?

- Cecília e eu temos um pacto de lealdade e generosidade, desde um proveitoso estágio em Austin, capital do Texas, mais de quinze anos atrás.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

ESQUECIMENTO PROVIDENCIAL

PARA MELISANDE, COM AMOR

Outro dia, comemorando cinco anos de casamento, convidamos alguns amigos para uma pequena reunião. Éramos cerca de vinte pessoas, e alguém me pediu que contasse um fato curioso sobre algum cientista. Adquiri, não sem razão, a fama de professor que explica a ciência sem esquecer dos cientistas.

- Tudo bem, vou narrar-lhes um fato engraçado de Wolfgang Paoli.

Rutherford

Comecei relatando que há físicos, preconceituosos, que têm o hábito de desdenhar dos profissionais de outras áreas. O neozelandês Ernest Rutherford, pai da Física Nuclear, disse certa vez: “ciência é física. O resto, coleção de selos.” Só por ironia, Rutherford, que era um brilhante experimentador, ganhou o Prêmio Nobel de química, em 1908.

- Não o de física, mas o de química!

Wolfgang Pauli, o gênio que fez a façanha de descobrir a existência de uma partícula atômica chamada neutrino, com apenas fazendo continhas, pautava-se por sentimentos análogos aos de Rutherford em relação aos outros profissionais. Até nas suas desilusões amorosas. Ao saber que sua esposa, Käthe Margarethe Deppner, trocara-o por um químico, reagiu com as seguintes palavras:

- Se tivesse escolhido um toureiro, tudo bem. Mas, um químico... Não posso entender!

Pauli

Mas a festa era para comemorar meu casamento com Melisande, pela qual eu estava cada vez mais apaixonado. Não estávamos ali para tratar de temas destinados à sala de aula. Na emoção do momento, pensei então nos versos que fizera para May nos meus tempos de solidão e, no estalo, decidi recitá-los para Melisande. May não existia mais na minha vida, e os versos nunca mostrados seriam para a minha desde sempre Melisande. Mudou a mulher, pensei, mas os meus sentimentos são os mesmos.
Reuni os convidados e, com voz embargada, declamei-os fervorosamente, olhando fixamente para ela. Abraçou-me, emocionada, e todos me aplaudiram.

- A única poesia da minha vida, que fiz para comemorar nossos cinco anos de casamento.

Irene não se conteve e exclamou:

- Vocês merecem toda a felicidade do mundo!


Foi então que me lembrei do jantar no Humphrey’s, aquele que ensejou a ventura do meu primeiro encontro com Melisande.

- Irene, minha querida amiga, já que Melisande e eu estamos comemorando cinco anos de um feliz casamento, aproveito o ensejo, neste momento para mim solene, para agradecer-lhe por ter idealizado nosso primeiro encontro, iniciativa nota dez, tanto em planejamento quanto em execução.

- Mas eu não idealizei...

- Não idealizou, como?

- Amigo, permita que confesse a verdade, neste momento para mim igualmente solene. Não premeditei seu encontro com Melisande. Quando me lembrei do compromisso, trinta minutos antes da hora marcada, estava assistindo a um concerto do Rostropovich, no Quitandinha, a 80 quilômetros do restaurante. O recurso foi telefonar para Melisande, que, gentil, compareceu em meu lugar, e estou feliz, muito feliz mesmo, que o evento tenha tido consequência importante na felicidade de vocês. O problema que me impediu de comparecer foi portanto o esquecimento, uma falta grave, gravíssima, que nunca tive coragem de lhe confessar.

Esquecimento providencial...

- Chamo seu esquecimento de “efeito-borboleta”, dos maravilhosos e definitivos. É por isso que sempre digo...

- O quê?

- Já reparei que, quanto mais me esforço, mais sou ajudado pela sorte.

sábado, 11 de junho de 2011

PRECONCEITO CONTRA A MULHER

EU, PARCEIRO DE MELISANDE

Certa vez Melisande deu uma palestra,“Psicologia do Preconceito”, dirigida a profissionais médicos e sociólogos, para a qual fui solicitado a dar uma modesta contribuição. A certa altura da exposição, convidou-me à frente do auditório para falar sobre Sophie Germain, uma das cientistas que eu pesquisara para minhas aulas.

Trata-se de uma francesa, nascida em 1776, que tinha extraordinária aptidão para a matemática, mas teve de se passar por homem, com o nome de Antoine-August Le Blanc, para estudar na Escola Politécnica de Paris, que, no alvorecer do século XIX, ainda era uma academia de ciências reservada para homens. Numa época em que as mulheres eram proibidas de estudar temas científicos, Sophie lia escondidamente sobre a Física, de Newton, e a Matemática, de Euler, à noite, depois que seus pais se recolhiam para dormir.

Antoine-August Le Blanc

Seu talento era, entretanto, tão grande que os maiores matemáticos europeus, como o francês Joseph-Louis Lagrange e o alemão Carl Friedrich Gauss, correspondiam-se com esse ""Le Blanc", sem saber que “ele” era ela.
A verdadeira identidade de Monsieur Le Blanc foi descoberta quando Napoleão invadiu a Prússia, em 1806. Pois Sophie Germain enviou uma carta ao general francês que comandou a invasão, pedindo-lhe que Gauss não fosse molestado.


Gauss

- Por que me poupam?, perguntou o matemático.


- A pedido de uma moça francesa, respondeu o general.

Na sequência desses eventos, descobriu-se a verdadeira identidade de Antoine-August Le Blanc. A correspondência de Sophie com o matemático Adrien-Marie Legendre trouxe uma contribuição importante para a Teoria dos Números.

Legendre

Ela também se destacou nos estudos da Matemática Pura, da Matemática Aplicada e sobretudo no campo da elasticidade dos materiais, tendo sido a única pessoa a submeter um trabalho no concurso organizado pelo Instituto Francês de Ciências, em 1808, para responder ao seguinte desafio: “Formular uma teoria matemática para as superfícies elásticas, demonstrando sua compatibilidade com os dados experimentais.”


Um quiilograma de ouro era o prêmio do vencedor, mas Sophie recusou-se a comparecer à cerimônia de premiação. Antes de morrer, escreveu um ensaio sobre a filosofia da ciência, que foi elogiado pelo filósofo Augusto Comte. Gauss queria que a francesa recebesse um grau de doutora honoris causa da Universidade de Göttingen, na Alemanha, mas a morte de Sophie Germain, em 1831, impediu que a honra lhe fosse conferida.


Quando encerrei o relato sobre a francesa, Melisande reassumiu a palestra e acrescentou que na estrutura da Torre Eiffel foram gravados os nomes de 72 sábios que de algum modo contribuíram para sua construção. Sophie Germain foi ignorada, não obstante seus estudos sobre resistência dos materiais, sem os quais a obra monumental não poderia ter sido erigida.
Seu atestado de óbito registrou que se tratava de “mulher solteira, sem profissão”, em vez de “matemática” ou “cientista”.
A mulher teve de superar preconceitos deste tipo, até sair da posição de inferioridade a que foi relegada desde a Antiguidade. Melisande adicinou nesse ponto quatro citações de acachapante preconceito:

(a) Para Platão, “os homens covardes, injustos durante sua vida, serão provavelmente transformados em mulheres quando reencarnarem”.

(b)Diderot escreveu que "a mulher é propriedade do homem."

(c) Schopenhauer colocou-a entre o homem e o animal, dizendo que “cabelos longos implicam inteligência curta”.

(d) Para Proudhon, uma mulher que trabalhava era uma ladra que roubava o trabalho de um homem.

Mas a mulher dos nossos dias decidiu ignorar esses juízos preconceituosos e está progressivamente alterando seu papel nas relações com os homens, igualando-se a eles ou, mesmo, sobrepujando-os.

- O que exige esforço, dedicação e rebeldia, pois, como afirmou Maria Shriver, “mulheres bem-comportadas não fazem história”.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

UMA MULHER ADMIRÁVEL

MELISANDE

Nos meus tempos de estudante, achava Melisande inalcançável. Foi por causa dela que comecei a ler poesia, minha primeira incursão, a única, no terreno da cultura. Uma espécie de preparação para o encontro impossível, na pressuposição de que uma moça daquela classe devia gostar de poesia e conhecer tudo dos melhores poetas. Drummond, Bandeira, João Cabral, Vinícius...
Decorei, para dizer-lhe então, estes versos de Vinícius, com "Melisande" no lugar de "Maria":

- Eu te amo, Melisande, eu te amo tanto que o meu peito me dói como em doença; e, quanto mais me seja a dor intensa, mais cresce na minha alma teu encanto.

Pois é, muitos anos depois eu a conheci, de fato, e nos casamos oito meses após aquele primeiro encontro no restaurante. Ou seja, o impossível aconteceu. Esse casamento foi a melhor coisa que me ocorreu, e por isso fiquei muito grato à Irene, que certamente planejou nosso encontro no restaurante. Pois não acredito que tenha sido um encontro casual...

Melisande e eu nos damos muito bem e nos completamos, cada qual contribuindo com sua meia-completude para a completude total do nosso casamento. Gostamos das mesmas coisas, cinema, artes e poesia, além de ópera, que vemos sempre, seja em casa, seja nas reuniões da senhora Stokes.

Nos meus devaneios de estudante, fizera várias suposições erradas a seu respeito, como a de que seu pai era um rico industrial, de que fosse estudante de biologia ou participasse de competições hípicas em Paris. Nada disso era verdadeiro, uma confusão de informações, por causa de outra Melisande, uma francesa, que também morava na Delfim Moreira.

- Muitas Melisandes existem, por causa do Debussy...

O pai da minha Melisande tem apenas a participação na produtora cinematográfica, com a Irene. E, mais, ela estudou filosofia e sociologia, não biologia, embora tenha real interesse por Darwin.


- Lembro-me de ter aprendido teoria da evolução para estar à altura dela!


Teatro Mariinsky, São Petersburgo

Outro fato curioso foi que não viu a ópera de Tchaikovsky, pois comprou o DVD do Eugene Onegin para dar de presente a uma amiga, ou seja, meus sessenta e três reais não ensejavam nenhuma possiblidade de emparelhamento. Outro tiro na água... Contei-lhe a história, que achou muito divertida: ficou decidido entre nós que veremos Eugene Onegin um dia, seja em Londres, Nova York, Milão ou San Petersburgo.

Tatiana

- A Tatiana, dessa ópera, é a personagem que mais me enternece.

Melisande foi a melhor aluna da universidade, cujos professores souberam premiar seu desempenho com troféus e diplomas variados. Já formada, tirou o primeiro lugar num concurso internacional de conhecimentos sobre a Itália, o que lhe valeu uma viagem de seis meses pelas principais cidades daquele país, às expensas do governo italiano.

Bergson

No quesito profissional, ela se equipara à Cecília em termos de sucesso, embora seja mais discreta e mais culta.
Desde sempre Melisande tem sido solicitada a dar palestras muito bem remuneradas sobre temas variados, que incluem filosofia, arte, história e comportamento social. Outro dia foi contratada para dar um curso sobre “a natureza do tempo”, comparando concepções de Santo Agostinho, Kant, Nietzsche e Bergson.

- Já leu Bergson?

- Não me faltará a oportunidade.

Foi tudo o que me ocorreu responder.

sábado, 4 de junho de 2011

REI DO PONTO

MITRIDATISMO

A ópera “Mitridate, Rei do Ponto”
desenvolve-se mediante uma sucessão de árias no mais puro estilo de Mozart, que a compôs durante um passeio pela Itália, quando tinha apenas quatorze anos. O libreto, em italiano, é de Vittorio Amadeo Cigna-Santi, que tomou por base um romance de Racine.

Mozart

A ópera estreou em 1770, no Teatro Regio Ducal, de Milão, e na ocasião foi exibida 21 vezes. Enquanto Mitridate, o rei, luta lá fora contra os romanos, em casa, seus filhos, Sifare e Farnace, fazem a corte a Aspásia. Cuja é, nada mais, nada menos, que a noiva de Mitridate. Isso mesmo, Mitridate e seus dois filhos estão apaixonados pela mesma mulher. Mitridate, ao regressar, descobre o imbróglio familiar e decide matar a noiva e os filhos, o que não se concretiza porque tem de voltar à guerra. Segue-se que o rei é mortalmente ferido em combate, de modo que Sifare fica com Aspásia, e Farnace, com Ismênia, filha do rei de Pártia.
- Todos se reconciliam perante o rei moribundo.


Ismênia

- Mozart tinha apenas quatorze anos? Eu não era capaz de nada quando tinha essa idade...

- Não soltava pipa, nem jogava pião?

- Jogava futebol, muito mal, tanto que ia sempre para o gol.

- Farnace é um papel para “alto castrato".

- Pensei que esse negócio de cantor castrado era coisa do passado...


- Você tem razão. Desde o início do século XX, não há mais cantores castrados. O papel a eles correspondente é hoje confiado a um contratenor, cantor masculino, adulto, que canta, em falsete, numa tessitura correspondente à do soprano, como o alemão Jochen Kowalski, a que acabamos de assistir. No passado, porém, eram cantores castrados, mesmo, como Farinelli, o maior cantor de ópera do século XVIII, com sua voz de soprano ligeiro.


Farinelli



- Melisande...

- Sim?


- Muito interessante, tudo isso. E surpreendente... Para mim esse negócio de "rei do ponto" sempre foi um epíteto para bicheiros.


- Com certeza. Mas o Ponto a que se refere a ópera é uma região da Anatólia, que se destacou pelas guerras contra os romanos. Mitridate temia morrer envenenado e se acostumou a ingerir doses não letais dos venenos mais conhecidos, que aumentava gradativamente até que fosse capaz de tolerar até mesmo uma quantidade mortal. A isso se chama de "mitridatismo".
-Eu, hein!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ELA, EXATAMENTE ELA!

A SURPRESA DA MINHA VIDA

Não me lembro de ter tido surpresa maior em toda a minha vida: quem me aguardava no restaurante era... Melisande. A moça inatingível, que na juventude fizera o meu encantamento e para a qual me preparara com tantos emparelhamentos impossíveis, estava diante de mim, como sempre linda e maravilhosa. Ela, exatamente ela!


- Muito prazer em conhecê-lo, que meu nome é Melisande. A Irene teve um problema de última hora e solicitou-me que viesse em seu lugar.

- Muito prazer, Melisande. Espero que o problema da Irene não seja grave e muito lhe agradeço pela gentileza da sua presença. De onde você a conhece?

- Ela é sócia de meu pai numa produtora cinematográfica.

Era muita coincidência! Enviá-la em seu lugar era, sem dúvida, uma armação da Irene. O que senti, porém, foi a sensação de estar sendo ajudado pela sorte. Considerei-me em estado de graça, pois naquele mês fora eleito paraninfo dos alunos da economia e diante de mim estava agora a Melisande dos meus sonhos de rapaz. Quase perdi o rumo, de puro contentamento.


- Já reparei que, quanto mais me esforço, mais sou ajudado pela sorte.


- O quê?

- Nada, não.


O restaurante estava menos cheio do que habitualmente, aos poucos voltei ao estado normal e pudemos conversar longamente. Não houve oportunidades de emparelhamento, que nem teriam sido necessárias.
Muito culta, Melisande sabia discorrer sobre temas variados, Borges, Machado de Assis, Caravaggio, Norberto Bobbio, coisas assim. Dou muita sorte com mulheres preponderantes.
Resolvi falar também e terminei fazendo uma digressão meio inconsequente sobre Pascal e a família Bernouilli, misturando ciência e filosofia.

Fui salvo pela chegada do florista, com as rosas que eu comprara para a Irene.

- Para você, Melisande. As quatro forças fundamentais da natureza combinaram-se para que estas flores chegassem agora à nossa mesa, a fim de que pudesse oferecê-las a uma pessoa especial, como você.


Terminado o jantar, levei-a à sua residência, no Itanhangá. Foi quando me convidou para assistir a uma ópera, na semana seguinte, na casa de Elvira Stokes, que exibia em reuniões de amigos o que importava de Nova York.


- Mitridate, de Mozart. Não se preocupe, que sou muito amiga da Elvira e posso levá-lo à sessão, sem constrangimentos de nenhuma natureza.


Lembrei-me dos Palhaços, de Laura, e do Eugene Onegin, da própria Melisande. Mulheres maravilhosas gostam de ópera, pensei, quando regressava ao Leblon.

- Mas, convenhamos, a Irene planejou tudo muito bem!