quarta-feira, 31 de março de 2010

TÉDIO

NENHUMAÇÃO RECÍPROCA

Nunca fui capaz de nenhum gesto heroico ou de alguma valentia, nem mesmo de uma bravata. Como o poeta da linha reta, eu me abaixo da pedra, sempre que há uma possibilidade de pedra. Houve, porém, uma exceção. Saindo de uma boate na madrugada inacreditável, percebi um automóvel que se aproximava, muito devagar, na nossa direção. Nem sei como pude ver, num átimo, que alguém do carro mirava contra Cecília; saltei sobre ela, protegendo-a com meu corpo, senti um pesado impacto nas costas e caí, ferido, enquanto o carro desaparecia, cantando os quatro pneus. Um tijolo, simplesmente um tijolo, cujo motivo jamais saberei explicar.

Nada dissemos, nem na hora, nem nunca. Eu teria dado a vida por ela, e acho que me provei isso. Com certeza ela teria feito o mesmo por mim, pois tudo nos unia. Falhar nos prognósticos é, entretanto, a minha matéria, tanto que hoje, decorridos oito anos, somos um casal de... descasados. Isso mesmo, des-ca-sa-dos! Não sei, com efeito, das razões objetivas da nossa separação, se é que existiram. Creio que isso é tarefa para psicólogos e psicanalistas, essa gente que entende de alma e sabe como sondar o que temos de profundo e impenetrável. Nos meus insights amadores, concluí prosaicamente que no casamento cada um entra com sua quota de renúncia; são coisas banais, que incomodam, mas seguem toleradas porque o benefício da união é maior que os custos envolvidos. Ceder espaços, conviver com os pequenos defeitos recíprocos, não ter direito à solidão, discutir o que se quer fazer, e também o que não se quer fazer, são miudezas e futilidades que se acumulam ao longo do tempo e paulatinamente vão alterando a equação do casamento. Cecília se aborrecia quando voltávamos antecipadamente de Cabo Frio, na noite de sábado, para que eu não perdesse meu tênis no domingo de manhã; reclamava das minhas reuniões de trabalho, todas as terças, a varar pela madrugada; e do chope, que eu tomava com os amigos nas noites de quinta-feira.

Ettore Scola ( "Nós, que nos amávamos tanto")

Mas eu também não cedia? Perdi o filme do Ettore Scola para ver Antonio Banderas e, ora pois, a partida final do campeonato para esperar a tia Amália no aeroporto, e muitas vezes aturei intermináveis conversas sobre modas e percorri exposições que não me despertavam nenhum interesse. Ah, tive até de suportar certo estilista americano, que ficou espantado quando percebeu que o Rio de Janeiro está mais para Nova York do que para Floresta Amazônica.

- Floresta Amazônica?

- Sempre pensei que o Brasil fosse uma ilha no rio Amazonas, infestada de índios e jacarés, mas cheia de cafezais, escolas de samba e mulheres de biquíni.

- Sim.

- Ao sul de Buenos Aires e ao norte de Copacabana.

Separation (Edvard Munch)

A isso, tudo acumulado, chamo de fadiga de material, pois não vejo outras razões. Na nossa contabilidade conjugal não relaciono nenhum cristal quebrado, nem mágoas ou ressentimentos fundamentais. Rousseau, se me acudisse com alguma de suas autorizadas explicações, talvez atribuísse essa separação improvável à independência financeira dos parceiros, pois só a necessidade consolida e mantém a família; a não-necessidade opõe-se à sua estabilidade, ao tornar o desenlace fácil e operacional. Não descarto, porém, a hipótese de que eu esteja a malversar o desconcertante Rousseau, cuja obra li, anos atrás, de forma apressada e descomprometida.
Assim foi. Depois de oito anos, Cecília e eu éramos outros, não outros quaisquer e ocasionais, mas outros consumados, consumadíssimos. Até que ela me veio com aquela história de Montgomery Clift e Shelley Winters, um amor que teve de fenecer para ensejar outro amor, maior e renovado; eu merecia, assim também, encontrar a minha Elizabeth Taylor, pois a mim não me faltavam os atributos para um merecido lugar ao sol.


Foi assim, civilizadamente assim, que ela me comunicou que nosso casamento já não lhe interessava. Eu me esquivei de produzir uma ironia, a de lembrar que nessa história do lugar ao sol o personagem de Montgomery Clift terminou sendo arrastado para a cadeira elétrica. Achei, isto sim, que estava sendo protegido pela sorte, pois separar-me era tudo o que então desejava e, pelo que conheço de mim, se minha tivesse sido a iniciativa, mais um remorso teria para administrar.
- Pode ficar com a minha parte.
- Claro que não, Carlinhos.
Ela ficou com a nossa casa no Itanhangá, o único bem material que tínhamos em comum, e me compensou com dinheiro bastante para um apartamento no Leblon.
Uma derradeira convivência ainda nos tocou, sem nenhuma animosidade ou irritação. Que nem fariam sentido na nossa história, da qual a separação foi apenas um capítulo necessário. Estranho, porém, foi continuar transitando mais quarenta dias pelos caminhos da casa, pois nenhum cenário permanece neutro, nem impune, em face de um amor exaurido. Até a arte perde o sentido, as cores se esmaecem e, para dizer a verdade, nunca vi a menor graça naquela cortina da sala de visitas, lilás, isso mesmo, lilás, e em momento algum estive de acordo com a moldura que ela escolheu para o Böcklin que arrematamos no leilão da Bartolomeu Mitre. Nem mesmo um telefonema ou um protocolar cartão de despedida. Pois um deixou de existir para o outro, aquele estágio na relação de duas pessoas que, para Otávio Paz, poderia chamar-se de nenhumação.

Nenhuns recíprocos

- Ou melhor, nenhumação recíproca, que é a arte de inexistir daqui para lá e de lá para cá...

sábado, 27 de março de 2010

ONDA OU PARTÍCULA?

Princípio de Cecília Meireles

A Mecânica Quântica gera muitas dúvidas e suscita polêmicas entre os físicos. O maior expoente nesse campo do conhecimento, que foi o físico dinamarquês Niels Bohr, enunciou uma frase que se tornou célebre, mais ou menos na linha do que se segue:

- Quem não tem dúvidas, nem fica perplexo, não entendeu nada.

Niels Bohr

A nossa lógica, a da realidade das coisas que são percebidas e a da necessidade de uma causa para explicar os fenômenos (tudo a ver com Aristóteles), não funciona no mundo das partículas subatômicas, exatamente onde prevalecem o muito pequeno e o muito veloz.

- Vejo um carro andando à velocidade de 60 km/hora como tal porque o carro é relativamente grande e relativamente lento.

Mas a lógica do realismo e da causalidade sucumbe quando se trata de partículas subatômicas, que são diminutas e se deslocam a velocidades anormalmente elevadas.

A luz

A luz é formada por fótons, partículas sem massa, mas com energia, emitidas pelos elétrons. Mas serão mesmo partículas?


- Lembre-se que o ambiente agora é o subatômico.
..

Newton

Isaac Newton dizia que sim - são partículas, como grãos de areia, tanto que a luz de alta energia (ultravioleta), incidindo sobre um metal, desloca elétrons e produz o efeito fotoelétrico. Só uma partícula desloca outra partícula, como uma bola de bilhar chocando-se contra outra.

Christian Huyghens

Não!, respondeu Huyghens, a luz é uma onda. Uma onda é uma linha sinuosa, como se fosse uma cobra, indo para cima e para baixo, configurando o que os matemáticos chamam de senoide. Pois, argumentava Huyghens, um raio de luz incidindo sobre um anteparo com dupla fenda (duas fendas próximas) passa pelas duas fendas, tanto que o observador vê um padrão senoidal de incidência da luz numa tela receptora, colocada para além do anteparo. Só uma linha poderia realizar essa façanha, a de passar ao mesmo tempo em dois lugares diferentes.

Discussão de duzentos anos

Partículas

Quem estava com a razão, já que uma cobra nada tem a ver com um grão de areia? Isso mesmo, quem estava com a razão, Newton ou Huyghens?

- Ambos!, gritou Einstein, num dos seus célebres artigos de 1905. Pois a luz ora é partícula, ora onda.

- Como?

- Quem define se a luz é onda ou partícula é o observador. Na experiência do efeito fotoelétrico o observador, com seu aparato, está preparado para ver partícula; desse modo verá a luz funcionando como partícula. Na experiência da dupla fenda o aparato é para ver a luz funcionando como onda. Não dá outra: a luz é vista funcionando como onda.

Ondas

As outras partículas

As surpresas não terminam nesse ponto. A tese de doutorado de Louis de Broglie, apresentada na França em 1924, tornou-se a mais famosa de todos os tempos, contribuindo decisivamente para o desenvolvimento da Mecânica Quântica, ao postular que toda a matéria (e não apenas a luz) tem um comportamento ondulatório.

- Prótons, elétrons, nêutrons, neutrinos, bósons, mésons etc etc. Tudo, absolutamente tudo, ora é partícula, ora é onda.


Como se a natureza, nos seus fundamentos, tivesse dois modelos (quem sabe não tenha mais de dois!), dos quais apenas um poderá apresentar-se ao observador. Quando átomos e moléculas se reúnem para formar os corpos, estes com suas velocidades civilizadas com as quais se nos apresentam, aí então tudo se torna um modelo só, a partir do qual construímos nossa lógica.

- E tem mais, acrescentou Niels Bohr, quem vê partícula, não vê onda; quem vê onda, não vê partícula.

Cecília Meireles

A afimação acima de Bohr configura o famoso Princípio da Complementaridade, da Mecânica Quântica. O qual poderíamos tranquilamente chamar de Princípio de Cecília Meireles, que não precisou de nenhum experimento fotoelétrico, nem de dupla fenda alguma, para estabelecer que só uma coisa prevalece:

- Ou isto ou aquilo!

Por que não?

Alguns físicos dizem jocosamente que há muitas histórias correndo paralelamente, mas só percebemos uma.

- Numa delas nasci com o talento de Mozart e, em outra, joguei futebol como Pelé.

quarta-feira, 24 de março de 2010

GANHANDO NAS CORRIDAS

A PONTE DOS SUSPIROS


Leda e o cisne (Tintoretto)

Passamos todo o dia vendo Ticiano, Tintoretto e Veronese, mas à noite decidimos sair daquele espaço entre a Praça de São Marcos e Rialto, o roteiro da segurança, e nos pusemos a caminhar aleatória e irresponsavelmente por estranhos becos e vielas, deixando para trás todas as referências e sotopórtegos. A inevitável consequência foi nos perdermos nos contornos recônditos da cidade, a qual, por sinal, sempre me pareceu um categórico labirinto. Na madrugada fria e silenciosa da Veneza aterradora não havia uma única pessoa circulando pelas ruas, que nos socorresse com alguma orientação; rodávamos à busca de um rumo, cada vez mais perdidos e desnorteados; lembrei-me então dos casais assassinados naquelas reentrâncias, o que eu vira repetidas vezes em filmes e documentários. Cecília ria, achando divertido e até romântico estarmos assim perdidos, sem entender por que eu me mantinha tão preocupado.

A Ponte dos Suspiros

Quando, sãos e salvos, desembocamos junto do nosso hotel, que ficava ao lado do Palácio dos Doges, apontou para a Ponte dos Suspiros e exclamou, cheia de alegria:

- Carlinhos, você é o meu Casanova!

Ri, muito aliviado, mas decidi contar-lhe o perigo que havíamos passado, ao alcance de maníacos que trucidavam casais que se perdiam na madrugada escura de Veneza.

- Veneza, como Veneza? Ora, Carlinhos, isso é lá em Florença!

Florença

Eu me enganara. Não era a primeira vez, nem seria a última. Veneza passou a ser uma espécie de senha, e, toda vez que eu errava, ela me advertia com autoridade:

- Lembre-se de Veneza.

Certa vez tive de dar uma palestra em Ouro Preto, e Cecília decidiu me acompanhar. Terminado o compromisso, ficamos na cidade para conhecer igrejas, ver obras do Aleijadinho, visitar o Museu de Mineralogia e percorrer os sítios históricos, como as casas de Tiradentes, Marília de Dirceu, Cláudio Manoel da Costa e Tomaz Antônio Gonzaga. Corremos algumas lojas, e Cecília se encantou com um colar de granada, que custava dez mil e novecentos reais. Quando eu preenchia o cheque, Cecília interrompeu a compra, movida por uma das suas intuições. Fomos a outras lojas e encontramos um colar em tudo semelhante àquele por escassos trezentos e vinte reais.

Sua iniciativa implicou uma economia superior a dez mil reais, mais do que logo depois nos custou um mês de férias na Califórnia. "Granada" tornou-se outra senha importante para os avisos recíprocos diante de qualquer preço irrazoável.

- Granada.

- Sim, granada.

Ouro Preto

E o episódio das corridas de cavalo? Expliquei-lhe como era o jogo, cada cavalo correndo na sua turma, e tudo que eu sabia sobre pista, distância, cânter, o partidor australiano, rateio, duplas e placês. Ah, expliquei também sobre o totalizador das apostas. Eu estudava o programa e jogava, e Cecília, sem jogar, só observava. No último minuto das apostas do oitavo páreo, ela decidiu jogar mil reais em Full Advantage, um cavalo que não tinha nenhuma chance, segundo todos os retrospectos e prognósticos. Que muitas vezes falham, falham sim, e esse foi o caso, pois Full Advantage ganhou a corrida facilmente. Cecília recebeu no guichê seis mil e oitocentos reais.


Full Advantage

- Como você descobriu esse Full Advantage?

- Você se preocupou com o retrospecto dos cavalos, e eu, que não entendo nada disso, com o dinheiro.

- Com o dinheiro?

- Sim, com o dinheiro. Fiquei de olho no totalizador, ao longo de todos os páreos anteriores.

- Sim, a evolução das apostas...

- Tive a clara percepção de que há pessoas que sabem qual será o cavalo ganhador.

- Como assim?

- Ganha o cavalo cujas apostas crescem desproporcionalmente nos três minutos que antecedem à largada; quando vi crescer o volume jogado no Full Advantage, decidi assumir o meu risco.

- Coincidência, Cecília.

- Pode ser, mas funcionou.

Nesse dia perdi 700 reais, mas o saldo familiar foi positivo.

Cecília

sábado, 20 de março de 2010

GIORDANO BRUNO



MÁRTIR DA CIÊNCIA

Por que Deus, sendo infinito e todo-poderoso, não criaria um mundo infinito, com outros sóis e outras humanidades? Eis o que costumava perguntar
Giordano Bruno (1548-1600), filósofo, astrônomo e matemático italiano, antes de afirmar sua crença de que o Sol seria apenas uma estrela no meio de uma infinidade de estrelas.
Nas suas concepções, o Universo, assim infinito, seria povoado por milhares de sistemas solares, integrados por planetas, muitos dos quais com vida inteligente.


-
Deus e o Universo são uma única e mesma coisa. Tudo é Deus, e Deus está em todas as coisas.

A ambição de Bruno era construir um embasamento filosófico que se coadunasse com as grandes descobertas científicas de sua época. Por sua intuição extraordinária, estava séculos adiante de seu tempo e é considerado um pioneiro da filosofia moderna, tendo influenciado Descartes, Espinosa e Leibniz.

Espinosa

Giordano Bruno rejeitou a teoria geocêntrica e pelas suas ideias avançadas colocou-se até à frente da teoria heliocêntrica de Copérnico, na qual o Universo ainda se considerava limitado por uma esfera de estrelas fixas, como afirmado vinte séculos antes, de então, por Aristóteles. Para Giordano, que deu aulas em universidades da Itália, França, Suíça e Inglaterra, as ideias de Aristóteles deveriam ser abandonadas sempre que fossem incompatíveis com a realidade observada. O mesmo pensamento que trinta anos depois colocou Galileu no centro da maior controvérsia havida entre religiosos e cientistas, cujo desfecho foi paradoxal, pois o derrotado Galileu saiu-se amplamente vitorioso perante a humanidade.
Quando o advertiam da incompatibilidade de suas ideias com o que se preconizava nas Escrituras, Giordano Bruno respondia que os textos religiosos não eram referências infalíveis ou obrigatórias, tanto que neles se omitiam completamente as Américas e seus povos, cuja existência dizia ser incompatível com o relato bíblico da Arca de Noé. Ou seja, a Biblia deveria ser observada por seus ensinamentos religiosos, não por suas declarações sobre Astronomia.

Bellarmino

Por essa ousadia do pensamento, Giordano Bruno teve de pagar um preço elevado: foi feito prisioneiro do Santo Ofício e levado a julgamento perante o Tribunal da Inquisição. Em sua defesa, Giordano Bruno apelou para a sua condição de filósofo, tal como Aristóles e Platão, cujas ideias nem sempre coincidiam com o que se continha nos textos sagrados.
O cardeal Roberto Bellarmino, consultor do Santo Ofício, propôs-lhe que se retratasse de suas ideias, para, desse modo, escapar da condenação.
Giordano Bruno declarou que não tinha nada de que retratar-se e que nem sabia de que se esperava que ele se retratasse. O resultado foi sua condenação à morte, na fogueira.
Alguns dias antes da execução, Giordano Bruno teria dito aos seus carrascos:

- Essa sentença, pronunciada em nome do Deus da misericórdia, assusta mais a vocês do que a mim!

Queimado vivo, aos 52 anos de idade, em Roma, no Campo das Flores, no ano de 1600, Giordano Bruno tornou-se um mártir do livre-pensamento. Morreu sem olhar o crucifixo colocado à sua frente para infligir-lhe uma derradeira humilhação. Com ele, entretanto, a filosofia começaria a se libertar da religião, favorecendo o nascimento da ciência moderna.

quarta-feira, 17 de março de 2010

UMA MULHER ESPECIAL

AS DOAÇÕES RECUSADAS

Todo o tempo Cecília esteve sob minha proteção econômica, pois eu, que recebia uma elevada remuneração na WED, representava o seu seguro. A cujas coberturas, a bem da verdade, nunca precisou recorrer, pois fez nesses oito anos uma carreira vitoriosa, tanto do ponto de vista profissional como financeiro. Ela percebe as oportunidades e administra seus projetos de forma sempre competente, o que, aliás, explica amplamente por que uma arquiteta interessada em modas decidiu tomar cursos de estatística e de econometria no Department of Business da Universidade do Texas.
Cecília planeja, controla, coordena e comanda tudo, como se fosse um Ford, um Fayol, sei lá. Esforço e muito talento igual a êxito, eis uma lei que justifica muito bem os vencedores do mundo.
Em pouco tempo, era natural, passou a ganhar mais do que eu.

Sempre haverei de reconhecer, com exemplos fartos, que Cecília é uma pessoa diferenciada, e ganhar dinheiro com maestria e dedicação é apenas uma das muitas manifestações da sua inteligência superior. Ela prepondera, esta palavra diz tudo, não importa se a causa é grande, influindo na conta bancária ou no destino das pessoas, ou se irrelevante, como na escolha de um guarda-chuva ou na elaboração de uma lista de convidados.
Com muito dinheiro afluindo de ambos os lados, compramos a mansão do Itanhangá e assumimos uma vida de muito conforto material, que incluía carros importados e constantes viagens à Europa. O importante, porém, é que nós nos bastávamos, pois tudo em volta parecia ser, e era, mero complemento na paisagem colorida da nossa existência.

Itanhangá

Cecília sempre terá a minha admiração. Lembro-me, e muito bem, da madrugada inesquecível de Veneza, do colar de Ouro Preto e da vitória do Full Advantage, aquela vez no Jóquei Clube.
Ah, houve também a história dos cobertores, inesquecível... Os que não morreram tentavam salvar suas miudezas, que a correnteza ia arrastando de maneira decidida. As pessoas, se quisessem ajudar, poderiam enviar dinheiro ou levar suprimentos e agasalhos ao depósito da Rua da Constituição, lá no centro da cidade.

- Vamos ajudar essa gente, Carlinhos.


Compramos dez dúzias de cobertores, que, de carro e com algum embaraço no trânsito, levamos à Rua da Constituição. Tivemos uma recepção fria e burocrática, quase grosseira, e fomos instruídos a deixar os cobertores num pátio muito sujo, onde desordenadamente se amontoavam outros donativos. Tudo seria removido para um depósito nos fundos e distribuído aos flagelados, mas a seu tempo.
Um mês depois, superada a urgência da catástrofe, Cecília quis voltar à Rua da Constituição.

- Tenho ordens para abrir o depósito, disse ela ao vigia.

- Abrir o depósito? Ordens de quem?

- Do general Esperantino Tinoco.

Esperantino Tinoco

Lá dentro estavam os nossos cobertores, embrulhados como os deixáramos no dia da tragédia. Por ordem do general Tinoco, nós os resgatamos e os encaminhamos a uma instituição de caridade.


- Não conheço esse general Tinoco, Cecília.

- Nem seria possível conhecê-lo, simplesmente porque ele não existe. Foi a minha maneira de pressionar o vigia.

- Ótima, essa. Por que será que pediram donativos e não os enviaram para as vítimas?

- Esse o ponto. Embolsaram o dinheiro piedoso, esquecendo-se do resto, pois não tinham intenção nenhuma de ajudar ninguém; os suprimentos só entravam na história para dar
credibilidade ao apelo.

- Agora entendo; os outros donativos não lhes interessavam.

- Mas há os chatos, como nós, Carlinhos.

E, entre estes, os espertos, como Cecília.



quarta-feira, 10 de março de 2010

UMA PRIMAVERA NO TEXAS

CECÍLIA

Universidade do Texas (Austin)

Era a minha primeira aula na Universidade do Texas. O professor Burford, comentando o teste de admissão, revelou que dois alunos haviam se confundido na interpretação da terceira questão. Pelo mesmo e prosaico motivo: dificuldades com o idioma inglês. Ambos brasileiros, ambos recém-chegados a Austin.

- Um deles é este aqui, disse Burford, apoiando a mão sobre o meu ombro, e ele se chama Carlos Auvergne de Carvalho. The quick brown fox jumps over the lazy dog e, não obstante, o senhor não sabe o significado de dummy variable. Veja só!

Um vexame que nem cheguei a padecer, pois o professor, deslocando-se para o outro lado da sala, apontou para a bela jovem de calça jeans e casaco branco. Foi naquele momento que a vi pela primeira vez.


- Cecília, Cecília Lafayette de Castro.

O
aplauso de toda a turma era uma demonstração de solidariedade, que ela agradecia cheia de modéstia, mas com sorriso cativante. Sem dúvida, um tributo à sua extraordinária beleza, pois, se assim não fosse, teriam me aplaudido também, por que não?

Cecília

O importante é que eu já não estava só naquele mundo estrangeiro, cujo sotaque decifrava com dificuldade e ouvido incompetente. No Union´s, o restaurante do campus universitário, ela me explicou que era arquiteta por formação, mas tinha a ambição de ser estilista.


- The quick brown fox jumps over the lazy dog, o que Burford quis dizer com isso?


- A ligeira raposa marrom salta sobre o cão preguiçoso. É uma frase que contém todas as letras usadas no idioma inglês, utilizada nos testes relacionados com as máquinas de telégrafo. Essa frase faz parte do show do Burford, que viu em nós, estrangeiros, o pretexto para dizer que a língua inglesa se espalha galhardamente por aí, em todas as bibliotecas do mundo, usando não mais que escassas 26 letras. Daí a estranheza com alunos graduados que não sabem o que é dummy variable. Já pensou na tragédia que será alguém morrer sem saber o significado de dummy variable?

- Ou seja, isso de não saber inglês é pura negligência... Devemos reconhecer, todavia, que foi carinhoso conosco, pois, seja como for, fomos apresentados à turma.

- Sem dúvida... Mas, voltando à raposa, será que o Burford sabe português? São também 26 letras, as mesmas, se não estou enganada.

- Suficientes para escrever os Lusíadas.

- E as crônicas do Rubem Braga...


- Mudando de assunto, Cecília, por que uma estilista tem de estudar estatística?


- Porque trabalha com moda.

- Um trocadilho?


- Não, não mesmo. Onde você acha que os estatísticos foram buscar a sua noção de moda? A moda, a das roupas, tem tudo a ver com amostragem, média, mediana, momentos, desvio padrão...


- É, basta ter uma distribuição de frequências.

Moda, mediana e média

- E você, por que está aqui, na Universidade do Texas?

- Bem, sou engenheiro recém-formado e cumpro um treinamento de três meses, a serviço da WED.


- WED?


- Sim, W-E-D, Western Energy Development.


Cecília e eu decidimos estudar juntos e, entre histogramas, regressões e números-índices, tive a percepção de que estávamos construindo uma parceria vitoriosa, que iria para além de uma primavera universitária no Texas. Acertei, pois logo estávamos namorando, e morando juntos, perfeitamente integrados um ao outro.
Terminado o curso, visitamos Nova Orleans, San Francisco e Nova York, antes de voltar para o Rio de Janeiro.

- Se você quiser, Cecília, podemos duas coisas.

- Acho que podemos mais do que duas coisas, Carlinhos.


- Sem dúvida, mas quero me referir a duas delas, muito específicas e fundamentais. A primeira é estabelecer um binômio para nós: lealdade e generosidade.

- Muito justo e pertinente. E a outra?

- É a gente se casar, assim que chegarmos ao Brasil.

E assim aconteceu, pois na semana seguinte estávamos casados.

quarta-feira, 3 de março de 2010

MINHA PROFESSORA DE ETIQUETA

EU E SOFIA LOREN

- Elisa vai lhe ensinar maneiras. Depois você aprenderá sobre cepas e investimentos.


- Como assim?, perguntei, assustado.


- Ora, Thales, você participará de inúmeros encontros internacionais, de grave responsabilidade. Por isso, é essencial que você saiba o que os outros não sabem. Imagine-se no Castelo Sforza, em Milão, à mesa com Silvio Berlusconi, Diane Keaton e Sofia Loren, e, por hipótese, ....

Sofia Loren

- Eu, exatamente eu?

... a você é dado escolher um vinho para acompanhar o prato sugerido por Sofia Loren:
pato selvagem da região de Trentino. Como fazê-lo, sem conhecer sobre fenólicos e taninos ou ignorando a diferença entre um varietal italiano e um magnífico bordeaux, mis en bouteille à la propriété? Da mesma forma, você não poderá errar nos talheres. Nem ignorar o teorema das forças vivas, as concepções de Demócrito e de Empédocles de Agrigento ou, enfim, por que Tony Blair sustentou várias vezes na Câmara dos Lordes que a Inglaterra sempre se manteve acima do benchmark.

- Benchmark?


- Sim, um nível básico que serve para referência e comparação dos resultados alcançados por um país ou por uma empresa.

Benchmark competente...

Saber o que é benchmark, onde já se viu? Hei de arranjar uma maneira de avisar a esse pessoal que nasci em Cascadura, pois com certeza estão cometendo um descomunal erro de pessoa. Morrer, dormir, sonhar, renascer em Copacabana, quem sabe?


- Aprender tudo isso, eu, euzinho, que, embora Thales, não sou de Mileto? Você está falando sério?

- Seriíssimo. O homem moderno distingue-se pelo estilo e, principalmente, pelo nível de suas informações.

- Tudo bem, tudo bem.

- Elisa está esperando por você. Preste muita atenção, para não ser reprovado.

- Reprovado?

Etiqueta

É melhor receber aulas de etiqueta, e até ser reprovado, do que pedir dinheiro emprestado, contrair malária ou penar na fila dos doentes irreversíveis. Não importa, nada importa, pois, reprovado que seja, a História vai acabar me absolvendo. Ela se chama Elisa e vai me ensinar etiqueta, mais do que isso não sei.

- Os etimologistas afirmam que, na época do Absolutismo, os burgueses, de pouco refinamento, recebiam na forma de bilhetes (”etiquettes”), acostados aos respectivos convites, as regras de comportamento a serem observadas nos eventos da Corte. Essa a origem da palavra “etiqueta”.

- Muito interessante...

- Todavia, fica melhor pensar que a etiqueta é uma extensão da ética, uma eticazinha, como norma comportamental de respeito ao outro, dissociando-a das concepções preconceituosas que a relacionam com gestos de submissão, cerimoniais, salamaleques, frases feitas, talheres de prata, uso de luvas, fraques ou cartolas. Ser gentil com caixas de supermercado, não usar telefone celular em ambientes fechados ou ceder a vez a uma senhora na fila é mais importante do ponto de vista social do que segurar corretamente o garfo ou saber como dirigir-se a um garçom. A pessoa precisa saber como recusar um convite, comportar-se perante idosos e portadores de deficiências físicas, corresponder a um favor recebido, organizar uma lista de convidados ou agradecer por um presente de casamento. Não comentar sobre defeitos de outros, não ufanar-se, permitir que as outras pessoas também se manifestem e tomar em consideração opiniões e posições alheias. Não exibir-se, nem mostrar o que não sabe...

- Sempre faço muita força para isso, professora.

- Aprenda a dizer “bom dia”, “por favor” e “muito obrigado”. Se não quer, diga “não”. Se não sabe, diga “não sei”. Se tiver dúvida, peça todos os esclarecimentos. Seja assertivo, impondo-se sempre, mas sem grosseria, que esta nunca rendeu nenhum dividendo em favor de ninguém.

Linda, linda, a Elisa. Acho que ela está flertando comigo. Não, não, não, claro que não. Não posso dar nenhuma bandeira. Se dou um fora, ela amanhã me reprova, perco tanto o emprego quanto os banquetes com a Sofia Loren e fico com a só opção de voltar para Cascadura...

Noite de verão

Elisa

Acordei no meio da noite e percebi que Elisa estava deitada a meu lado. Seminua, linda. Voltei a dormir e, quando acordei, ela já não estava, como pode? Não foi sonho, não, pois ela segurou a minha mão carinhosamente e até conversou comigo.

- Thales?

- Sim, Elisa.

- Você foi aprovado.

Considero-me aprovado, aprovado para sempre!